Direito, Moral e intersubjetividade

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1. Introdução

A distinção entre Direito e Moral é conhecida como o “cabo das Tormentas da Filosofia do Direito”, pois foi responsável pelo “naufrágio” de muitas teorias jurídicas. Todos os grandes filósofos do Direito, desde Kant, dedicaram parte de suas reflexões a essa questão, motivados por duas razões principais: a) Moral e Direito são os dois sistemas normativos mais importantes na regulação da vida social; b) a distinção, além de diferenciá-los, define suas essências (como são espécies do mesmo gênero – o das ordens normativas de conduta – o ato de distingui-los ressalta a diferença específica de cada um).

A questão, porém, não deve ser vista como meramente acadêmica, sem consequências para a prática jurídica, porque sua elucidação pode fixar com clareza os limites do Direito: quais ações o Direito deve regular? Quais devem ficar reservadas ao campo moral? Aquilo que hoje é uma obrigação moral pode amanhã tornar-se uma obrigação jurídica?

Estas são sub-questões cuja solução passa pelo esclarecimento da questão principal, a distinção entre Direito e Moral.  Neste artigo, pretendo expor brevemente a história do problema e os principais critérios que, ao longo do último século, foram propostos para sua solução.

 

2. Breve história da questão

Nos primórdios da civilização humana, inexistia uma clara distinção entre os campos da conduta humana. Nas sociedades arcaicas, havia somente um costume indistinto (Del Vecchio, 1979, p. 366), um composto indiferenciado de normas com conteúdos ao mesmo tempo morais, jurídicos e religiosos. Foi aos poucos que o Direito adquiriu contornos próprios. Em Roma já havia uma percepção da autonomia do jurídico face ao moral, com a aparição de um campo de estudos dedicado especialmente ao Direito (a chamada “Jurisprudência”). A intuição do problema pode ser notada em algumas passagens de jurisconsultos famosos, como Paulo, que afirmava que “nem tudo o que é lícito é honesto”, aludindo ao fato de que, às vezes, o Direito sanciona coisas que são consideradas por muitos como imorais. Os romanos, embora tenham tido uma percepção da questão, não chegaram a teorizá-la adequadamente, o que só iria acontecer em tempos modernos.

Christian Thomasius, no começo do século XVIII, foi o primeiro jurista a enfrentar diretamente o problema, motivado por razões de ordem política. Seu objetivo era restringir a esfera de atividade do Estado, delimitando um campo de atuação impenetrável, onde o indivíduo pudesse determinar sua conduta com exclusividade, sem ingerências do Poder Público. Para ele, esse campo era a Moral, ou “foro interno”, que não se confundia com o “foro externo”, o Direito. As regras jurídicas, elaboradas pelo Estado, são externas ao indivíduo, determinando “de fora” sua conduta, ao contrário das regras morais, que são criadas e aplicadas pelo indivíduo sem nenhuma interferência estatal. Sendo criação do Estado, o Direito está sujeito à coerção (uso da força física para adimplemento das suas obrigações), ao passo que a Moral, elaborada pelo sujeito individual, é por natureza incoercível. Nas palavras de Miguel Reale:

“A ação humana é distinta por Thomasius em dois momentos ou fases: uma interna, que se passa na vida interior ou no plano da consciência, e outra externa, que se projeta para fora, relacionando-se com outros membros da sociedade. No primeiro caso, quando a ação se desenrola apenas no plano da consciência, o homem é o único juiz de sua conduta: não existe outro foro a que recorrer senão o foro interno, que é o da Moral. Quando, porém, a ação se exterioriza e provoca o enlace moral com outros indivíduos, surge a possibilidade de verificação e de tutela por parte da autoridade superior, incumbida de harmonizar o agir de um com o agir dos demais. O foro externo, portanto, é o foro que toca ao Direito” (Reale, 2009, p. 654).

Para Giorgio Del Vecchio, Thomasius intuiu o ponto capital da distinção entre Moral e Direito: a primeira diz respeito à consciência subjetiva e o segundo ao ordenamento objetivo da consciência (1979, p. 369). Em outras palavras, as normas morais nascem da consciência de um sujeito, ao qual sempre farão referência, ao passo que as jurídicas pressupõem a coordenação das condutas de dois ou mais sujeitos (daí a chamada “sociabilidade” do Direito).

Partindo das ideias de Thomasius, Kant fala em autonomia e heteronomia. A autonomia expressa a necessidade de adequação entre a regra moral e a vontade pura do sujeito: esta vontade precisa estar direcionada ao fim moral, sob pena de não ser reconhecida como pura, e o ato que a realiza, como moralmente válido. Assim, se alguém ajuda outra pessoa por vaidade, ou para se mostrar caridoso, e não simplesmente por dever, sua ação não possui valor moral. Este valor só está presente quando a vontade é pura, isto é, adequada à regra moral. Neste sentido, a regra moral é autônoma porque o agente a reconhece como sua, aplicando-a por dever. O Direito, por sua vez, prescinde desse reconhecimento: basta ao Estado que as pessoas cumpram suas regras jurídicas, mesmo que não conformem suas intenções a elas. Como diz Reale: “A Moral deve ser autônoma, enquanto o Direito se contenta com a conformidade exterior à regra, sem envolver necessariamente a adesão da consciência: o Direito é heterônomo ou de legalidade extrínseca” (Reale, 2009, p. 659).

Após essas sucintas considerações, vejamos os principais critérios apresentados pela teoria jurídica para distinguir o Direito da Moral.

 

3. Interioridade/exterioridade

O Direito é definido, com base neste critério (o mais comum), como um conjunto de normas destinadas à regulação externa da conduta, ao passo que à Moral preocuparia o foro interno, o plano da consciência humana. Devidamente matizado, este critério pode ser aceito, pois certamente ao Direito interessam primordialmente os atos externos do homem, e à Moral os pensamentos e as intenções. Contudo, ele não deve ser exagerado, porque ao Direito também interessam as intenções, quando estas motivam determinados atos, e à Moral também interessam os atos, pois as regras morais são criadas em função da sua exteriorização.

O Direito Penal, por exemplo, pune com mais rigor o crime cometido por meio do dolo (quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo) do que o causado pela culpa (inobservância de um dever de cuidado objetivo), o que mostra que o Direito preocupa-se com os atos externos, mas sem descurar das intenções que os movem. No campo moral, podemos imaginar a seguinte situação: alguém estabelece para si, como regra, sempre ajudar pessoas carentes. Esta norma moral, nascida das intenções exclusivas da pessoa, obviamente só fará sentido se aplicada, isto é, se dela resultarem atos concretos, o que evidencia que a Moral também existe em função da exteriorização.

O critério, portanto, pode ser considerado válido, mas desde que seja interpretado da seguinte maneira: o Direito parte dos atos exteriores, levando em conta também a intenção, e a Moral parte de intenções que se concretizarão em atos. Sobre isso, diz Gustav Radbruch:

“Da natureza do Direito enquanto ordenação da convivência humana parece sobressair, antes de tudo, a exterioridade do Direito por oposição à interioridade da moral, já que somente com sua conduta externa o homem participa da convivência. Mas é evidente que o Direito transcende também a vida interior do homem, como ocorre, por exemplo, quando discerne a boa-fé ou indaga sobre o dolo ou a culpa” (Radbruch, 1998, p. 53-54).

Radbruch afirma também que a exterioridade não é o objeto sobre o qual o Direito incide (pois a Moral também se liga aos atos externos), mas “aquilo a que se endereça o seu interesse” (1998, p. 54). Deste modo, as intenções e os pensamentos interessarão ao Direito quando se conectarem com atos, e os atos externos interessarão à Moral quando forem os veículos das intenções.

 

4. Autonomia/heteronomia

Este critério, de matriz kantiana, parte da fonte de produção das normas. As normas jurídicas são consideradas heterônomas por derivarem do Estado e não da consciência de um sujeito. As normas morais são ditas autônomas por nascerem da consciência do indivíduo (são auto-produzidas). A principal conseqüência da adoção desse critério está na coercibilidade das normas. As normas jurídicas podem ser impostas pelo Estado, fazendo este atuar a coerção quando houver descumprimento. Para a norma moral, isso não existe: sua imposição só pode derivar da consciência individual. Afinal, ninguém pode impor regra moral a outrem, nem ser forçado a cumprir norma moral que não escolheu.

Críticas, porém, foram dirigidas a esse critério. Radbruch rejeita-o com veemência, alegando que “obrigação heterônoma” é uma contradição lógica, pois o que obriga não é a norma externa em si mesma, mas sua aceitação. Em outros termos, uma norma jurídica só possuirá validade quando aceita pelas consciências individuais como imperativa. O que implica dizer que ela, de algum modo, precisa ser convertida em “autônoma”. Segundo ele, “a heteronomia do Direito significa somente que a consciência aceita como próprio um complexo de normas desenvolvido de forma desvinculada à suas próprias leis” (Radbruch, 1998, p. 55).

Também se poderia alegar que nem sempre a Moral é autônoma, pois em muitas ocasiões a consciência individual aceita como própria uma regra moral criada por outra pessoa ou fruto de uma longa tradição. Um cristão, por exemplo, cuja moral é adequada à sua religião, não criou suas próprias regras, mas as extraiu da sua religião. Neste sentido, poder-se-ia arguir que a Moral, em algumas situações, também tem traços de heteronomia.

Parece-me que o critério não resta prejudicado, contanto que se entenda que a heteronomia expressa o fato da norma jurídica ser fruto da vontade coletiva, pois o Direito busca regular a convivência social, e não ações individuais de um sujeito. Se os indivíduos dão seu assentimento psicológico à norma, é algo irrelevante para o Direito. O fato é que as normas jurídicas são sociais: sua validade provém de uma objetivação (o Estado, a cidade, a sociedade), não da consciência subjetiva. Por outro lado, a autonomia não indica que a norma moral nasça sempre da consciência individual, mas que ela só terá validade para o sujeito que aceitá-la como sua norma moral. Assim, a proibição jurídica do aborto, pela sua origem social, é heterônoma, mesmo que muitos a rejeitem como imoral. E a regra de “amar ao próximo” tem valor moral quando alguém a aceita como sua, como a sua norma.

 

5. Unilateralidade/bilateralidade

De acordo com Del Vecchio, a distinção entre Direito e Moral funda-se na diferente posição lógica das duas categorias. A Moral impõe ao sujeito uma escolha entre diversas ações possíveis. Assim, diante de um mendigo que lhe pede ajuda, um homem pode agir de vários modos: dar-lhe dinheiro, negar-lhe a ajuda, ignorá-lo etc. Estas ações referem-se a um único sujeito, o homem interpelado pelo pedinte. Apenas ele tem poder para decidir como agirá, e o mendigo não lhe pode exigir nada. Conclui-se que a ação moral é unilateral: embora se realize com referência a outra pessoa, esta nada pode impor. A escolha fica inteiramente com o agente.

Algo diverso ocorre com o Direito, que confronta atos de pelo menos dois sujeitos. A regra jurídica, ao regular o comportamento de um sujeito, tem sempre em mira o comportamento de outro sujeito, cuja ação está entrelaçada à do primeiro. A norma jurídica, destarte, regula um comportamento em função de outro comportamento. Ela é, então, bilateral. Afirma o autor italiano:

“A moral indica um dever, cuja observância poderá eventualmente ter efeito para outras pessoas além da do agente, mas não dá normas às mesmas. O comportamento destas não é por ela definido, e só a determinação do comportamento do sujeito entra no seu conteúdo. A norma define tão só o comportamento daquele que deverá cumprir o dever por ela estabelecido. Com o Direito já não é assim. Na esfera por ele regida, o comportamento de um sujeito é sempre considerado em relação ao comportamento de outro. De um lado, impõe-se uma obrigação; do outro, atribui-se uma faculdade ou pretensão. Mas, com esta imposição e com esta pretensão, em vez de coisas distintas, temos uma só determinação jurídica que, conjuntamente, fixa a obrigação de um sujeito e a pretensão de outro. Podemos afirmar que a bilateralidade é a pedra angular do edifício jurídico” (Del Vecchio, 1979, p. 371-372).

 

6. Bilateralidade/bilateralidade atributiva

Partindo das ideias de Del Vecchio, Miguel Reale procurou reformulá-las em busca do melhor critério para a distinção: não a bilateralidade, mas a bilateralidade atributiva. Para o professor brasileiro, toda a vida prática, com suas normas e condutas, está marcada pela bilateralidade (ou alteridade). Como toda ação é social (no sentido de que se projeta em direção aos outros), tanto as ações jurídicas quanto as morais devem ser consideradas bilaterais.

No plano social, contudo, há situações nas quais a instância valorativa reside na pessoa do agente, que é a medida do seu ato (Moral); em outras situações, a validade da relação deriva do nexo comum, do liame que envolve dois sujeitos (Direito). Apenas neste caso ocorre a bilateralidade atributiva, que é então a nota distintiva do Direito.

Assim, diversamente do que ocorre na relação moral, onde o agente determina sozinho (por suas próprias regras) como se comportará em face de outras pessoas, a relação jurídica diz respeito a um “nexo de polaridade e de implicação” (Reale, 2009, p. 692) entre dois ou mais sujeitos. Deste modo, se a relação moral é subjetiva (pois determinada somente pelo agente), a relação jurídica é transubjetiva ou objetiva: a ligação entre as partes que a compõem não é determinada pelo querer arbitrário de nenhuma delas, mas pelo valor objetivo incorporado pela norma que a instaura e protege.

Logo, se a Moral é bilateral (e não unilateral, como pensa Del Vecchio), o Direito, além de bilateral, é também atributivo, pois liga pessoas por meio de um vínculo objetivo, independente do querer subjetivo de cada qual. Por causa disso, Reale afirma que “o Direito é, em última análise, o Espírito como intersubjetividade objetiva” (Reale, 2009, p. 692). Em outra passagem, procura esclarecer:

“Poder-se-ia dizer que a bilateralidade atributiva se caracteriza por sua estrutura axiologicamente binada, de tal modo que a correlação entre posse e debere, entre pretensão e prestação, graças a ela se exprime de maneira objetiva, ficando superado o plano da relação empírica entre dois sujeitos, visto se referir a algo de essencial à vida do espírito: à possibilidade e à necessidade ética de obrigar-se o espírito também em virtude e em razão de algo transubjetivo. Este campo de vinculação é o campo próprio do Direito, enquanto que a Moral só rege as ações vinculadas ao âmago da subjetividade. Daí termos dito que é só no Direito que o espírito se realiza, em sua plenitude, como intersubjetividade” (Reale, 2009, p. 694).

 

7. Considerações finais

Dos critérios apresentados, nenhum é irracional, destituído de boas razões. Eles apresentam visões distintas para a elucidação da mesma questão, e sua composição não seria despropositada, como muitos juristas admitem. A proposta do professor Reale, porém, é a que mais se aproxima da realidade: os vínculos jurídicos realmente derivam de normas objetivas, irredutíveis às vontades vinculadas, fato que as torna capazes de gerar uma exigibilidade completamente ausente no campo das relações morais.

Sua menção à intersubjetividade recorda-nos que o Direito existe para coordenar condutas de pessoas que, por serem igualmente dignas, precisam compatibilizar suas liberdades por meio de vínculos que reconheçam o outro como igualmente digno. A intersubjetividade, portanto, não é simplesmente o vínculo entre sujeitos, mas o vínculo que transcende a subjetividade pelo reconhecimento da dignidade comum.

 

Bruno Amaro Lacerda[1]

 

 

Referências:

DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito. Coimbra: Armênio Amado, 1979.

RADBRUCH, Gustav. Introducción a la Filosofía del Derecho. México: Fondo de Cultura Económica, 1998.

REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009.  

 


[1] Doutor em Filosofia do Direito pela UFMG.

 

Bruno Amaro Lacerda

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