A constitucionalização do processo e a nova amplitude do princípio constitucional da ampla defesa: uma análise da alteração promovida pela lei 10.352 no recurso de embargos infringentes

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RESUMO

Após mais de duas décadas sob os maus auspícios dos governos ditatoriais, a Constituição Federal de 1988 chega com a promessa de grandes inovações no ordenamento jurídico pátrio. Nessa esteira, a constituição passou a ser, efetivamente, a fonte de todo o saber jurídico. Passou a delimitar uma gama de direitos que inclusive possuem vínculo umbilical com o direito processual civil. Assim, dada a deferência com que a lei fundamental vigente passou a tratar dos direitos fundamentais, o princípio constitucional da ampla defesa ganhou mais amplitude. Dessa forma, todas as legislações processuais editadas a partir dessa nova ordem ficam vinculadas a observância desse preceito. Nesse sentido, a Lei 10.352, que trouxe novo requisito de admissibilidade para o Recurso de Embargos Infringentes, é manifestamente ilegítima, porquanto fere de morte o princípio da ampla defesa.

PALAVRAS-CHAVE: constitucionalização do processo; constituição; princípios; princípio constitucional da ampla defesa.

 

ABSTRACT

After over two decades under the bad auspices of dictatorial governments, the 1988 Federal Constitution rose as a promise of great innovations for our legislation. In this manner, the Constitution came to be effectively the source of all juridical knowledge. It gave boundaries to an array of rights, including some that have umbilical bond with civil procedure. Thus, given the deference through which the current fundamental law came to deal with the fundamental rights, the constitutional principle of extensive defense was amplified. This way, all the procedural rules edited since this new order are attached to the observance of that precept. Therefore, Law 10.352, which establishes a new admissibility requirement to the Infringing Attachments Appeal, is manifestly illegitimate, for it lethally hurts the principle of extensive defense.
Keywords: constitutionalization of procedure; constitution; principles; constitutional principle of extensive defense.

INTRODUÇÃO

Após a positivação de diversos direitos fundamentais na carta magna de 1988, observou-se uma verdadeira revolução no direito brasileiro, possuindo sempre como norteador o princípio da dignidade da pessoa humana. O princípio da ampla defesa, elencado juntamente com o contraditório, passou a ser de extrema importância dentro do processo civil brasileiro. Não obstante o dever de se observar, também e sempre outros princípios constitucionais como a celeridade e o acesso à justiça, o legislador pátrio foi vinculado pela ordem constitucional, a promover alterações e/ou inovações no direito brasileiro tendo como ponto de partida a promoção dos referidos princípios.

Neste artigo, pretendemos, (a) visualizando a mudança de paradigmas observada desde a Constituição de 1988, (b) demonstrar a nova amplitude que foi atribuída ao princípio constitucional da ampla defesa, para então, (c) avaliar de modo crítico a alteração promovida pela Lei 10.352 no recurso de Embargos Infringentes enquanto extratora de um dos requisitos mais idôneos para a propositura do referido recurso. Para tanto, a método utilizado foi o dedutivo, através da pesquisa bibliográfica em livros e artigos científicos de doutrinadores jurídicos e aplicadores do direito, por meio de seus posicionamentos e divergências.

1. A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO PROCESSO COMO CARACTERÍSTICA MARCANTE DA CONSTITUIÇÃO DE 1988: a positivação dos direitos fundamentais.

Fruto de intensa discussão, após mais de vinte anos sob os maus auspícios da ditadura militar, a Constituição Federal de 1988 surgiu como um marco para o Estado brasileiro, não apenas por ter introduzido um Estado Democrático4 de Direito, mas principalmente pela relevância com que veio a tratar os direitos fundamentais5.

Até que fosse promulgada a constituição de 1988, não se tinha notícia no direito constitucional positivo de Lei Fundamental brasileira que produzisse tamanha inovação e efetivamente desse aos direitos fundamentais a deferência que desde sempre mereceram6.

Nesse passo, o que antecedeu a promulgação da presente Constituição foi um intenso debate que contou inclusive com a participação direta do povo.7 Ademais, não se poderia pensar, naquela época, em uma constituição advinda da imposição de um governante, pois, como já referido, a Carta Constitucional fez parte de um importante movimento de redemocratização8 do país após mais de duas décadas de ditadura.

Não obstante toda a apreensão que circundava a confecção de uma nova constituição e o afã do povo em ver-se novamente investido dos direitos fundamentais que antes lhe haviam sido tolhidos, o constituinte surgiu com uma resposta à altura. E a resposta foi a Constituição Federal de 1988.

Através da análise desse breve histórico, qualquer leigo poderia inferir que a nova constituição traria algo diferente, algo que fizesse dela uma lei fundamental de fato insólita.

Desta forma, antes de partir para as considerações acerca da constitucionalização do processo, cabem algumas delimitações também no campo conceitual, haja vista a necessidade de se partir de um conceito de constituição para, então, se poder tratar do próprio evento constitucionalização e também dos princípios constitucionais.

A palavra Constituição é utilizada com diferentes conceitos pelos doutrinadores, tendo assim um conceito equívoco. Nesse ínterim, para José Afonso da Silva,

a constituição do Estado, considerada sua lei fundamental, seria, então, a organização dos seus elementos essenciais: um sistema de normas jurídicas, escritas ou costumeiras, que regula a forma do Estado, a forma de seu governo, o modo de aquisição e o exercício do poder, o estabelecimento de seus órgãos, os limites de sua ação, os direitos fundamentais do homem e as respectivas garantias. Em síntese, a constituição é o conjunto de normas que organiza os elementos constitutivos do Estado9.

Já Uadi Lammêgo Bulos, tem para si o seguinte conceito de constituição:

constituição é o organismo vivo delimitador da organização estrutural do Estado, da forma de governo, da garantia das liberdades públicas, do modo de aquisição e exercício do poder.

Traduz-se por um conjunto de normas jurídicas que estatuem direitos, prerrogativas, garantias, competências, deveres e encargos, consistindo na lei fundamental da sociedade10.

Note-se que os conceitos trazidos por Silva e Bulos são conceitos puramente de uma constituição estatal, sendo que existem vários sentidos em que podem ser concebidas as constituições11. No entanto, independentemente do sentido em que é conceituada a constituição, todos os conceitos trazem a idéia de ela ser algo fundamental para a sociedade.

Nesse passo, por caminho um pouco diferente nos levam os ensinamentos de Ferdinand Lassale, este que defende que a Lei Fundamental de um país, quando positivada e para que não passe de uma folha de papel, deve “corresponder à constituição real e ter suas raízes nos fatores do poder que regem o país12”. As lições desse renomado jurista é que embasam o famoso conceito sociológico de constituição.

Parece que, a Constituição Brasileira de 1988, vai de encontro com aquilo que Lassale acredita ser uma Constituição boa e duradoura, na medida em que ela emana a vontade do povo, dos fatores reais de poder, haja vista toda a discussão que se estabeleceu e que contou com a participação do povo até que fosse realmente implementada a atual constituição.

Ademais, apesar de rotulada por alguns como prolixa, essa crítica fica em segundo plano quando se analisa a vastidão de direitos fundamentais positivados pela Carta Magna de 1988. Outrossim, dita positivação dos direitos fundamentais veio a fomentar a cada vez mais crescente constitucionalização do direito e, por óbvio, do processo.

Nessa esteira, Canotilho, assevera que a constitucionalização do direito é um processo lógico e imprescindível quando se quer fazer da constituição uma lei efetivamente fundamental e real, haja vista que

a constitucionalização do direito revela a fundamentalidade dos direitos e reafirma a sua positividade no sentido de os direitos serem posições juridicamente garantidas e não meras proclamações filosóficas, servindo ainda para legitimar a própria ordem constitucional como ordem de liberdade e de justiça. Uma outra dimensão deve, porém, ser revelada: não basta a consagração de direitos numa qualquer constituição. A história demonstra que muitas constituições ricas na escritura de direitos eram pobres na garantia dos mesmos. As <<constituições de fachada>>, as <<constituições simbólicas>>, as <<constituições álibi>>, as <<constituições semânticas>>, gastam muitas palavras na afirmação de direitos, mas pouco podem fazer quanto à sua efectiva garantia se os princípios da própria ordem constitucional não forem de um verdadeiro Estado de direito. Isto conduz-nos a olhar numa outra direcção: a dos princípios, bens e valores informadores e conformadores da juridicidade estatal13.

Não obstante toda movimentação pública que gerou a confecção da Constituição em vigor, a colocação dos princípios no interior da carta, dando condições de efetivação dos direitos e liberdades neles contidos, foi o primeiro passo do legislador constituinte para que a CRFB/88 não passasse de mera “folha de papel”, sem refletir os fatores reais do poder, indo sim de encontro com o que defende Lassale14.

Note-se que ao proceder dessa maneira, o Constituinte teve por objetivo efetivar a Constituição como lei fundamental e espelho dos fatores reais do poder. Outrossim, se diferente fosse, não estaríamos convivendo hoje com amplas e salutares discussões no âmbito acadêmico e jurídico tratando dos direitos fundamentais e dos princípios constitucionais, discussões estas que têm causado verdadeira revolução dentro dos foros, tribunais e universidades.

Nessa seara, o Direito Constitucional, como base de todo o direto estatal, lança sua normatividade a todas as demais áreas do direito, informando a sua maneira de proceder conforme os ditames constitucionais, para que assim todas as legislações e regramentos sempre possuam validade.

Com o direito processual, não é diferente, pois

todo o direito processual, como ramo do direito público, tem suas linhas fundamentais traçadas pelo direito constitucional, que fixa a estrutura dos órgãos jurisdicionais, que garante a distribuição da justiça e a efetividade do direito objetivo, que estabelece alguns princípios processuais; e o direito processual penal chega a ser apontado como direito constitucional aplicado às relações entre autoridade e liberdade15.

Hodiernamente, tem se falado muito nesse processo de constitucionalização, haja vista que através da CF/88 os direitos fundamentais ganharam aplicabilidade ímpar até mesmo em outros ramos da ciência jurídica que não exclusivamente o constitucional, fazendo deste um movimento insólito no ordenamento jurídico pátrio.

Nessa esteira, a antiga divisão dicotômica existente entre Direito Processual Civil e Direito Constitucional e até mesmo entre Direito Civil (material) e Direito Constitucional, foi aos poucos sendo solapada pela profícua e efetiva constituição de 1988, haja vista esse processo não ter iniciado antes pelo fato de as constituições que a precederam terem sido amplamente desrespeitadas e terem se apresentado pouquíssimo efetivas, dada a exígua estabilidade política e o curto período em que vigeu o regime democrático.

Assim, conforme referido alhures,

era muito comum, pelo menos há até bem pouco tempo, interpretar-se e aplicar-se determinado ramo do direito tendo-se em conta apenas a lei ordinária principal que o regulamenta. Assim, o civilista via no código civil a única norma que deveria ser consultada na solução de problemas naquela área, o mesmo ocorrendo com o processualista (civil, penal e trabalhista), com o penalista, com o comercialista16.

À esteira do que assevera Nelson Nery Junior, Jorge Renato dos Reis, ao tratar da constitucionalização do Direito Privado, assevera que

por força da Carta Constitucional de 1988, que determinou diversas inovações no Direito Privado, seja por obediência aos princípios constitucionais, muito especialmente o da dignidade da pessoa humana e o da igualdade material, seja pela normatização, pela Constituição, de temas eminentemente privados, tornou-se necessário uma reforma estrutural do diploma civil, o que efetivamente ocorreu com o advento do novo Código Civil, Lei 10.406 de 200217.

Conforme averbado por Reis, e assim como ocorreu com o processo civil a partir da década de 90, o Código Civil teve de passar por ampla reformulação, o que culminou na criação de um novo código, que passou a viger no ano 2003.

Os processualistas Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, tratam desse viés constitucional existente dentro do processo aduzindo que

alguns dos princípios gerais que o informam são, ao menos inicialmente, princípios constitucionais ou seus corolários: em virtude deles o processo apresenta certos aspectos, como o juiz natural, o da publicidade das audiências, o da posição do juiz no processo, o da subordinação da jurisdição à lei, o da declaração e atuação do direito objetivo; e, ainda, os poderes do juiz no processo, o direito de ação e de defesa, a função do Ministério público, a assistência judiciária18.

Pode-se inferir, desta forma, que o fenômeno da constitucionalização do processo vem sendo um processo automático a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, haja vista nela estarem contidos uma série de princípios e dispositivos que foram positivados justamente para dar orientação aos processos nas mais diversas áreas. Não se pode mais pensar, assim, em um processo sem a observância dos ditames constitucionais.

Nessa esteira, consoante demonstrado, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 foi de tal forma inovadora que acabou por transformar toda a visão de processo que se tinha até então. Ademais, pelo próprio fato de a Carta Magna ser bem mais recente do que o Código Processual Civil, sua superveniência culminou em uma considerável mudança nos olhares lançados sobre este, gerando inclusive diversas modificações e reformas em seu teor, a exemplo das diversas legislações criadas principalmente na década de 90 que vieram a modificar inúmeras situações dentro do processo civil.19

Impera destacar, por oportuno, que referido processo tem suas bases fixadas na existência dos princípios constitucionais. Dessa forma, para se aquilatar a essencialidade dos princípios constitucionais, basta perquirir o lugar que eles ocupam dentro do ordenamento constitucional. Podem ser encontrados dentro do capítulo que trata dos direitos e garantias fundamentais, pelo que assumem papel ainda mais relevante na jurisdição.

Por isso, a partir de então, passar-se-á a análise dos princípios constitucionais e processuais, principalmente no que diz respeito à sua conceituação, para então se chegar ao ponto nevrálgico do presente artigo, qual seja, o Princípio Constitucional da Ampla Defesa e a sua amplitude dentro do Direito Processual Civil.

 

2. DA IMPORTANTE CONCEITUAÇÃO DE PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS.

Já argumentava José Joaquim Gomes Canotilho que “o Estado de Direito é um Estado de Direitos Fundamentais20”. Partindo dessa premissa é que foram inseridos na Carta Política de 1988 uma série de direitos fundamentais, a maioria deles com status de princípios constitucionais.

Nessa esteira, deveras importante se faz conceituar princípios, iniciando pelo princípio jurídico, que é o

mandamento nuclear do sistema, alicerce, pedra de toque, disposição fundamental, que esparge sua força por todos os escaninhos do ordenamento. Não comporta enumeração taxativa, mas exemplificativa, porque além de expresso, também pode ser implícito. Seu espaço é amplo, abarcando debates ligados à Sociologia, à Antropologia, à Medicina, ao Direito, à Filosofia, e, em particular, à liberdade, à igualdade, à justiça, à paz, etc. Exemplo: CF, art. 5º, II (princípio da legalidade – dele se extrai o princípio implícito da autonomia da vontade)21.

A respeito do conceito de princípios jurídicos, a professora Mônia Clarissa Hennig Leal, coloca que são eles os norteadores dos fins a serem perseguidos pelos entes estatais, dizendo o modo de se fazer a sociedade:

[…] os princípios são os elementos que expressam os fins que devem ser perseguidos pelo Estado (em sua acepção mais ampla), vinculando a todos os entes e valendo como um impositivo para o presente e como um projeto para o futuro que se renova cotidianamente, constituindo-se numa eterna construção da humanidade22.

Nessa linha, importante ainda trazer a conceituação de princípio defendida pelo jurista catarinense Ruy Samuel Espindola:

pode-se concluir que a idéia de princípio ou sua conceituação, seja lá qual for o campo do saber que se tenha em mente, designa a estruturação de um sistema de idéias, pensamentos ou normas por uma idéia mestra, por um pensamento chave, por uma baliza normativa, donde todas as demais idéias, pensamentos ou normas derivam, se reconduzem e/ou se subordinam23.

À esteira dessas conceituações, sinala-se, por oportuno, que são esses princípios jurídicos, progênie de todas as demais idéias, pensamentos ou regras jurídicas que, ao serem positivados na Carta Magna, ganham o status de princípios constitucionais.

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 foi extremamente inovadora. Ao elencar diversos princípios e direitos fundamentais de natureza processual no texto da carta magna. O legislador, de forma inaudita, trouxe aos operadores do direito a responsabilidade de analisar o processo sob a luz das garantias fundamentais24. A este fenômeno, deu-se o nome de constitucionalização do processo, nomenclatura esta que decorre justamente da vinculação cada vez mais estreita existente entre o processo, a práxis forense e as disposições constitucionais.

Novamente Bulos, nos traz brilhante conceito, desta vez, de princípio constitucional, senão, vejamos:

enunciado jurídico que serve de vetor de interpretação. Propicia a unidade e a harmonia do ordenamento. Integra as diferentes partes da constituição, atenuando tensões normativas. Quando examinado com visão de conjunto, confere coerência geral ao sistema, exercendo função dinamizadora e prospectiva, refletindo a sua força sobre as normas constitucionais. Apesar de veicular valores, não possui uma dimensão puramente axiológica, porque logra o status de norma jurídica. Violá-lo é tão grave quanto transgredir uma norma qualquer, pois não há gradação quanto ao nível de desrespeito a um bem jurídico. O interesse tutelado por uma norma é tão importante quanto aquele escudado em um princípio25.

Destarte, pode-se inferir como conceito de princípio constitucional aquela disposição que, constante na Constituição, expande sua orientação para todas as demais normas, dando diretrizes básicas a serem seguidas por estas, servindo inclusive como vetor de interpretação de todo o sistema.

Nessa esteira, a Constituição Federal, cúspide da pirâmide normativa de Hans Kelsen, é o ordenamento que lança sua luz sobre todas as demais espécies normativas abaixo. Os princípios nela expressos, e também aqueles implícitos, trazem arraigados a si também esse potencial de legalidade.

Como se pôde perceber, os princípios são a base de todo sistema jurídico e, não obstante, servem também como vetores de interpretação, sendo, por vezes, fundamentais para o deslinde dos problemas que surgem no campo hermenêutico, onde os operadores do direito têm se mostrado cada vez mais proficientes.

Por fim, antes de adentrar no conceito específico de princípio da ampla defesa, forçoso referir o conceito de princípio atribuído por Juarez Freitas, no qual ele faz referência, inclusive, à importância dos princípios para solução de questões hermenêuticas, in verbis:

por princípio ou objetivo fundamental, entende-se o critério ou a diretriz basilar de u sistema jurídico, que se traduz numa disposição hierarquicamente superior, do ponto de vista axiológico, em relação às normas e aos próprios valores, sendo linhas mestras de acordo com as quais se deverá guiar o intérprete quando se defrontar com antinomias jurídicas […]26.

Ato contínuo, passa-se então a afunilar a conceituação de princípios, debruçando-se, a partir daqui, na procura por um conceito profícuo para o princípio constitucional da ampla defesa.

 

3. DA CONCEITUAÇÃO E AMPLITUDE DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA AMPLA DEFESA: a Lei 10.352 e o cerceamento de defesa no recurso de Embargos Infringentes.

Preliminarmente, para adentrar à matéria atinente ao princípio da ampla defesa, deve-se atentar que esta é uma garantia fundamental, elencada juntamente com o contraditório no art. 5º, LV27, da CRFB/88 e que, também por isso, não deve ser considerada mera generosidade concedida pelo legislador constituinte aos particulares.

No que pertine a essa amplitude da ampla defesa, calha transcrever as palavras de Rui Portanova, in verbis:

a defesa não é uma generosidade, mas um interesse público. Para além de uma garantia constitucional de qualquer país, o direito de defender-se é essencial a todos e qualquer Estado que se pretenda minimamente democrático. A defesa plena é garantida pela nossa Constituição Federal […]28.

Mais uma vez, Rui Portanova, dessa vez tratando da ampla defesa, assenta que esta não pode ser assim considerada, como “ampla”, pela simples redação constitucional, deve sim efetivamente ocorrer:

[…] Não basta só o direito de defender-se; é indispensável, para que a defesa seja plena, que a parte tenha a liberdade de oferecer alegações e meios de uma defesa efetiva. Só assim ter-se-á certa paridade de partes no processo29.

Theobaldo Spengler Neto, busca em Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra da Silva Martins um conceito de ampla defesa, aduzindo que “por ampla defesa deve-se entender o asseguramento que é feito ao réu de condições que lhe possibilitem trazer para o processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade30”.

Daí pode-se dizer que o princípio da ampla defesa nada mais é que a garantia constitucional de que todos temos o direito de nos defender, sempre e da forma mais ampla, seja na esfera administrativa, seja na esfera judicial. Ademais, pode-se dizer ainda, que o princípio da mais ampla defesa é condição sine quan non para um país ver reconhecida a sua busca pela justiça e a igualdade das partes enquanto no litígio, haja vista que se apenas a uma das partes for possibilidade uma defesa ampla, haverá desigualdade entre elas enquanto no processo, fato que culminaria, por conseguinte, em uma injustiça derivada das parcas e insuficientes provas produzidas por um os litigantes, seria uma espécie de “processo unilateral”.

Conceito bastante pedagógico de ampla defesa é o que nos traz o ilustre Cassio Scarpinella Bueno (2009, p.115), tratando de sua relação com o contraditório:

[…] garantia ampla de todo e qualquer acusado em sentido amplo (que é nomenclatura mais utilizada para o processo penal) e qualquer réu (nomenclatura mais utilizada pelo processo civil) ter condições efetivas, isto é, concretas de se responder às imputações que lhe são dirigidas antes que seus efeitos decorrentes possam ser sentidos. Alguém que seja acusado de violar ou, quando menos, de ameaçar violar normas jurídicas tem o direito de se defender amplamente. […] a ampla defesa desempenha, na Constituição Federal, o papel que tradicionalmente era reservado para o contraditório, quase que confundido, desta forma, com a “ampla defesa31”.

Não há razão para deixar de entender a ampla defesa, a partir das palavras de Bueno, como a garantia de haverem condições efetivas de o réu ou acusado, conforme menciona o autor, argüirem as suas razões. Nesse sentido, vale lembrar que também as figuras do Defensor Público e do Advogado dativo são “meios” para que o jurisdicionado que fora acionado judicialmente, tenha a assistência de profissional apto a fazer da sua defesa realmente ampla e efetiva, assim colaborando para que se encontre a justiça no caso a caso.32

Nessa esteira, Bulos, ao tratar da ampla defesa, o faz, também, sob o prisma da exigência da defesa técnica no âmbito penal:

princípio da ampla defesa é o que fornece aos acusados em geral o amparo necessário para que levem ao processo civil, criminal ou administrativo os argumentos necessários para esclarecer a verdade, ou, se for o caso, faculta-lhes calar-se, não produzindo provas contra si mesmos.

[…]

Seja como for, insere-se no princípio constitucional da ampla defesa a chamada defesa técnica – aquela exercida pela atuação profissional de um advogado.

Chama-se defesa técnica a defesa necessária, indeclinável, plena e efetiva33.

Salienta-se, por oportuno, que, em que pese a referência do autor à defesa como direito dos acusados, este pesquisador se filia à idéia de ampla defesa como a possibilidade de as partes envolvidas no litígio terem ao seu alcance todos os meios necessários para provar suas alegações, mediante o auxílio e assessoria de profissional apto a fazê-lo, ou seja, de defesa/acusação técnica. Tal entendimento amplia o conceito de ampla defesa para além do que se pode inferir através de um entendimento literal destas duas palavras.

Com isso, quer-se dizer que a ampla defesa, dentro do que salientado até aqui, há de ser observada em quase todos os embates que envolvam ou a assistência do Estado como um terceiro imparcial com o dever de julgar a quem compete o melhor direito – e aqui se está falando na figura do juiz, a quem cabe resolver os litígios na esfera judicial – ou a resolução administrativa do conflito, onde também deverá ser implementada e possibilitada uma defesa ampla no decorrer da apuração dos fatos.

Dentre tantos momentos processuais que exemplificam o direito à amplitude de defesa, tem-se um que vem sendo substancialmente combatido por meio de alterações legislativas. O recurso de Embargos Infringentes34, que até o advento da Lei nº 10.352/01 exigia como pressupostos de admissibilidade tão somente a sucumbência (pressuposto subjetivo geral) e a existência de decisão colegiada por maioria de votos.

O referido recurso buscava proporcionar a revisão do julgado colegiado sempre que um dos decisores manifestasse decisão contrária aos demais. À partir desse dissenso, novo julgamento ocorreria com a participação do Grupo Cível (assim considerando a composição dos Tribunais de Justiça). O racional lógico-legal possibilitador desse novo julgamento era a existência de posição jurídica divergente da maioria, já devidamente externada nos autos.

A Lei nº 10.352/200135 trouxe ao contexto legislativo pátrio elemento complementar à exigência possibilitadora de admissibilidade do Recurso de Embargos Infringentes. Passou a ser fundamento essencial a alteração da decisão de primeiro grau, no todo ou em parte, sem prejuízo da decisão não unânime.

Destarte, infere-se que a nova exigência contraria o conceito básico de amplitude de defesa já estudado. Não há que se falar em objetivo procrastinatório, protelatório, da parte que interpõe o referido recurso, na medida em que um dos julgadores do colegiado compartilha com a linha racional-jurídica defendida. A existência de posicionamento diferido da maioria, por si só, demonstra, no mínimo, possibilidade de alteração do julgado ante as argumentações ainda viáveis de presença.

O conceito constitucional de ampla defesa perpassa também pelo esgotamento das possibilidades recursais que demonstram viabilidade de alteração da decisão. E, fundamentalmente, existente posição dissonante já lançada nos autos, a viabilidade está presente. Impedi-la acarreta em evidente cerceamento de defesa e fraude ao artigo 5º, LV, da Carta Magna.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Visualizamos, pois, que o processo de constitucionalização que atingiu todo o ordenamento jurídico pátrio a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, fortificou ainda mais o princípio constitucional da ampla defesa, promovendo um alargamento da sua amplitude.

Destarte, a observância dos ditames constitucionais e, sobremaneira, da necessidade de se promover a ampla defesa das partes em qualquer procedimento judicial ou administrativo, não pode ser tolhida por qualquer legislação que tenha por escopo retirar do ordenamento jurídico pátrio momentos processuais meramente protelatórios, haja vista que, no que pertine aos Embargos Infringentes, tem-se a figura de um recurso que serve de forma profícua para o aperfeiçoamento da prestação jurisdicional e a perfectibilização das decisões judiciais.

 

1 O presente artigo é fruto da pesquisa de monografia desenvolvida pelo acadêmico e primeiro autor Adam Hasselmann Teixeira sob a orientação do segundo autor Theobaldo Spengler Neto. Da mesma forma, é resultado das pesquisas e estudos realizados pelo grupo de pesquisa intitulado “Políticas Públicas no Tratamento dos Conflitos”, filiado ao CNPQ, do qual o primeiro autor faz parte como pesquisador e o segundo autor como pesquisador e vice-líder.

2 Acadêmico do 9º semestre do curso de Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas intitulado “Políticas Públicas no Tratamento dos Conflitos”, vinculado ao CNPQ. Endereço eletrônico: adam.hasselmann@hotmail.com

3 Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC- RS, docente dos cursos de Graduação e Pós Graduação lato e stricto sensu dessa e de outras Instituições de Ensino Superior, Integrante do Grupo de Pesquisas “Políticas Públicas no tratamento dos conflitos”, vinculado ao CNPq e bolsista no Projeto de Extensão intitulado “A crise da jurisdição e a cultura da paz: a mediação como meio democrático, autônomo e consensuado de tratar dos conflitos”, ambos sob a coordenação da Prof.ª Drª. Fabiana Marion Spengler, ex-Coordenador e Chefe do Departamento do Curso de Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul, RS, professor de Cursos de Especialização, assessor jurídico empresarial, advogado.

4 Para Jürgen Habermas, “a idéia de democracia, apoiada no conceito do discurso, parte da idéia de uma sociedade descentrada, a qual constitui – ao lado da esfera pública política – uma arena para a percepção, a identificação e o tratamento de problemas de toda a sociedade”. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2 ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 24.

5 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.

6 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.

7 Nesse sentido, ver SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p.64

8 Para melhor compreensão do assunto, ver BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. A Rio de Janeiro: Campus, 1992. P.01

9 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27 ed. São Paulo: Malheiros, 2006. P.37-38.

10 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 28.

11 Trata desse assunto com proficiência SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27 ed. São Paulo: Malheiros, 2006. P.38-39.

12 LASSALE, Ferdinand. A essência da constituição. 7 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 33.

13 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado de Direito. Lisboa: Gradiva, 1999.p. 57-58.

14 LASSALE, Ferdinand. A essência da constituição. 7 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

15 CINTRA, A. C. de A.; GRINOVER, A. P.; DINAMARCO, C. R. Teoria Geral do Processo. 25 ed. São Paulo, SP: Malheiros, 2009.p.84.

16 NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. P.19.

17 REIS, Jorge Renato dos. A constitucionalização do direito privado e o novo código civil. In: LEAL, Rogério Gesta (Org.). Direitos Sociais e Políticas Públicas: Desafios Contemporâneos. Tomo 3. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2003. P.786.

18 CINTRA, A. C. de A.; GRINOVER, A. P.; DINAMARCO, C. R. Teoria Geral do Processo. 25 ed. São Paulo, SP: Malheiros, 2009. P.84-85.

19A exemplo disso, pode-se citar a criação dos Juizados Especiais Cíveis, trazidos pela Lei 9.099/95, o Código de Proteção e Defesa do Consumidor (instituindo a inversão do ônus da prova para situações caracterizadas pela hipossuficiência processual) e a previsão da antecipação dos efeitos da tutela (art. 273, CPC), dentre outros.

20 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado de Direito. Lisboa: Gradiva, 1999. P.54.

21 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2008. P. 387.

22 LEAL, Mônia Clarissa Hennig. A Constituição como princípio: Os limites da jurisdição constitucional brasileira. Barueri: Manole, 2003. p. 50.

23 ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de Princípios Constitucionais. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. P. 53.

24 Nesse mesmo sentido, ver DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Teoria Geral do Processo e Processo do Conhecimento. 6 ed. Salvador: JusPODIVM, 2006.

25 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2008. P. 387.

26 FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 1998. P.47.

27 LV aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

28 PORTANOVA, Rui. Princípios do Processo Civil. 4 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. P.125.

29 PORTANOVA, Rui. Princípios do Processo Civil. 4 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. P.127.

30 SPENGLER NETO, Theobaldo. Condições e Possibilidades do Princípio Constitucional da Ampla Defesa no Processo Civil Brasileiro. 2001. 154 f. Dissertação (Programa de Pós Graduação em Direito – Mestrado) – Universidade de Santa Cruz do Sul, Santa Cruz do Sul, 2001. P.55.

31 BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2009. P.115.

32 Nesse sentido, ver BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2009. P.115.

33 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2008. P. 536-537.

34 O recurso de Embargos Infringentes está previsto no art. 530 do Código de Processo Civil Brasileiro.

35 Com a modificação impressa pela lei 10.352/01, o Art. 530, CPC passou a ter a seguinte redação: Art. 530. Cabem embargos infringentes quando o acórdão não unânime houver reformado, em grau de apelação, a sentença de mérito, ou houver julgado procedente ação rescisória. Se o desacordo for parcial, os embargos serão restritos à matéria objeto da divergência.

Theobaldo Spengler Neto

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