Uma resenha da obra de Paulo Bonavides: do Estado liberal ao Estado social

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1. Apresentação e considerações iniciais

Esta singela resenha pretende esboçar as ideias mais importantes contidas na obra cinquentenária do professor Paulo Bonavides (Do Estado social ao Estado liberal) e mais, incentivar os leitores a, o quanto antes, “mergulharem” nas páginas de um livro que está a superar com facilidade os anos, sem perder a atualidade e o valor científico.

A obra objeto da presente resenha possibilitou ao professor Bonavides a conquista do título de professor catedrático na Universidade Federal do Ceará.

Desde os prefácios, passando por seus diversos capítulos, poder-se-á constatar como foram profundos e meticulosos os estudos do professor cearense, produto da combinação de sua invejável inteligência com o que de melhor foi escrito sobre o assunto na doutrina internacional.

Paulo Bonavides conseguiu sistematizar, com destreza sem igual, as questões sociais, políticas e jurídicas que permearam a transição do Estado liberal para o Estado social, promovendo importante reflexão e fazendo uma adequada proposição sobre qual forma de Estado poderá cumprir melhor os objetivos que dele se espera.

Doravante, em capítulos próprios, segue o que de mais relevante os autores julgaram conveniente pormenorizar.

 

2. Notas do editor e prefácios da obra

Já nas notas do editor, bem assim nos prefácios às três últimas edições da obra, são ressaltadas as visões do autor sobre o Estado e sobre a reforma do Estado, sobre a transição do Estado Liberal para o Estado Social, a seu ver, uma forma de conciliar os anseios individuais com os sociais, bem assim uma forma de se proteger o Estado brasileiro contra os avanços do dito “neoliberalismo”.

Conforme descrito no final do prefácio à 8ª edição, Bonavides vê, no Estado social, a única saída honrosa e humana que ainda resta para a crise política e social dos povos que habitam a grande bacia atlântica.

Ainda no prefacio à 8ª edição, de 2008 (edição comemorativa dos cinquenta anos da obra) Paulo Bonavides pondera que o Estado social acaba sendo uma decorrência do dirigismo que a tecnologia impôs, relativamente às ideias de colaboração entre os seres humanos, e alerta que está a distinguir o seu estudo em duas modalidades principais: a) o Estado social do marxismo – na verdade, o Estado socialista (dirigismo imposto “de cima para baixo” – supressão da infraestrutura capitalista e apropriação social dos meios de produção; b) Estado social das democracias (dirigismo socialmente consentido, “de baixo para cima” – conservação da infraestrutura capitalista).

 

3. Introdução da obra

Na introdução, Bonavides ressalta o fato de que o mundo, nos séculos XVIII ao XX, atravessou duas grandes revoluções: a) a revolução da liberdade e da igualdade; b) a revolução da fraternidade (inicia-se tomando como objeto o “Homem concreto”, a “ambiência planetária”, o sistema ecológico, a “pátria-universo” e, na sua vertente mais recente, focasse na revolução do Estado Social, na concretização constitucional tanto da liberdade quanto da igualdade).

Em uma sequência cronológica, tem-se que, primeiro, foram rompidas as amarras dos regimes totalitaristas para se sustentar a necessidade de um Estado liberal. Depois, como oferta de contraponto, o Estado socialista. Em seguida surgiu o Estado social com a sua constituição programática, eivada de conceitos abstratos, de declaração formal da existência de direitos. Por último, o Estado social, sob nova roupagem, o “Estado social dos direitos fundamentais”, aparelhado da juridicidade e da concreção dos preceitos e regras garantidoras desses direitos.

Em suma, Bovavides afirma que o Estado social, idealizado após a Segunda Guerra Mundial, e sob os valores da dignidade da pessoa humana, despontou para conciliar de forma duradoura e estável a Sociedade com o Estado, consubstanciando, assim, a única e razoável alternativa para as democracias do futuro.

 

4. Das origens do liberalismo ao advento do Estado Social

Segundo ensinamento de Bonavides, o Estado, conforme a doutrina liberal, era visto como oponente da liberdade. Já para as doutrinas contratualistas, o Estado seria a criação deliberada e consciente da vontade dos indivíduos que o compõe, necessário para a organização das várias vontades individuais.

Com a revolução promovida pela burguesia, surgiu a noção de Estado de Direito, de Estado “como armadura de defesa e proteção da liberdade”, noção com manifestos traços de Direito Natural. O erro da burguesia foi tentar fazer da doutrina de uma classe a doutrina de todas as classes. E a revolta das classes excluídas proporcionou uma evolução, passando da ideia da liberdade do homem para uma ideia mais democrática, de participação total e indiscriminada desse mesmo homem na formação da vontade estatal.

O rompimento com o dito “absolutismo burguês” rendeu ensejo, também, à criação e ao desenvolvimento das teorias de divisão do poder (Montesquieu – mais concretamente e de maneira mais prática, com a efetivação da divisão de poderes entre titulares que não se confundem; Locke – de uma maneira mais abstrata, centrada na limitação dos dirigentes, se de seus atos não se vislumbrasse a busca do interesse público) em ambos os casos, como uma forma de conter os poderes absolutistas e preservar as liberdades individuais.

Paulo Bonavides lembra, ainda, que nesse processo surgiram também as ideias de Rousseau, que revestiu o poder de caráter jurídico, fundado no contrato social que consubstancia a transmutação dos direitos naturais em direitos civis.

A partir dessa evolução de conceitos e de ideias é que o professor cearense arremata que o liberalismo dos dias atuais deve ser um liberalismo não apenas jurídico, na forma, mas econômico e social, para que seja efetivamente um liberalismo que contenha a identidade do Direito com a Justiça, enfim, um liberalismo que se aproprie das conquistas humanistas e dos ideais de justiça social.

 

5. O Estado liberal e a separação dos poderes

O sustentáculo do liberalismo foi a doutrina da separação dos poderes, admitida como verdadeiro dogma.

A Declaração dos Direitos do Homem (1791) rezava que “toda sociedade que não assegura a garantia dos direitos nem a separação de poderes não possui constituição”. A separação dos poderes era, portanto, condição para o rompimento com o Estado então absolutista, enfim, com a ingerência do dito soberano nos cursos das vidas dos cidadãos.

Com o passar dos anos, constatado o fato de que a revolução da burguesia consubstanciou, apenas, um regime de consagração formal de direitos individuais e sociais (e não um sistema de efetiva concretude desses direitos) na verdade, a mera substituição de classes dominantes (dos senhores feudais para a burguesia) a doutrina da separação dos poderes teve certo declínio, ante a necessidade de acomodação dos regimes aos esquemas constitucionais que já não mais propugnavam por um sistema de mera garantia formal, mas pela concretização dos direitos sociais reconhecidos.

Na realidade, a separação dos poderes, elevada a dogma, estava a frustrar em grande medida a concreção dos direitos sociais, de sorte que se impuseram algumas correções do sistema então em voga para que à concretização em questão não se opusessem grandes obstáculos.

Impunha-se, para a realização da citada correção, não somente a declaração formal dos direitos fundamentais do homem (princípio liberal) mas o resguardo da participação do homem na formação da vontade do Estado (princípio democrático) ou seja, conferir-se a esse Estado a capacitação necessária para a concessão dos favores de que a sociedade necessitava.

Paulo Bonavides, quanto ao tema em questão, afirma que “a teoria da divisão de poderes foi, em outros tempos, arma necessária da liberdade e afirmação da personalidade humana (séculos XVIII e XIX). Em nossos dias é um princípio decadente na técnica do constitucionalismo. Decadente em virtude das contradições e da incompatibilidade em que se acha perante a dilatação dos fins reconhecidos ao Estado e da posição em que se deve colocar o Estado para proteger eficazmente a liberdade do indivíduo e sua personalidade”5. E, demonstrando predileção pelo sistema parlamentarista (para ele, o sistema presidencialista inclina-se mais ao ideário liberal da separação dos poderes) advoga a necessidade atual da redução dessa separação de poderes, a revitalização do ideal de colaboração, isso para que haja no país, de fato, ação estatal promotora de justiça social.

 

6. O pensamento político de Kant

Segundo Bonavides, Kant veio apresentar ao mundo uma alternativa à filosofia até então basicamente helenística. Em sua Metafísica dos Costumes, Kant minudenciou sua teoria do Estado e do Direito.

Para a compreensão da idéia kantiana de liberdade é essencial fazer a distinção que Kant faz de noumenon (a coisa em si, no seu interior) e phaenomenon (a coisa como ela se apresenta ou se manifesta no mundo). Este, sob o prisma da finitude da coisa, aquele, sob a ótica de seu horizonte transcendental. É por essa distinção que o homem, para Kant, será “homem noumenon” (ser inteligível) e ou “homem phaenomenon” (ente empírico): como ser empírico, o homem se submete às leis psicológicas e, como ser racional, inteligente, como “coisa em si”, movido pela consciência do “dever-ser” (o imperativo categórico) ele se move independentemente de toda realidade empírica ou objetivo determinado (vontade autônoma).

Para Kant, o Direito é o conjunto de condições mediante as quais a vontade de cada um pode coexistir com a vontade dos demais, segundo uma lei geral da liberdade. Estado, para ele, é a união de uma multidão de homens sob as leis do Direito.

Kant encerra seu conceito de Direito em um cenário de “limitação das liberdades”, isso para ensejar a coexistência de liberdades particulares discrepantes. Ele vê, no Estado, uma necessidade racional para a convivência humana: o homem abandonou a idéia de uma liberdade feroz e anárquica para reavê-la sob nova roupagem, intacta, dependente da lei, que é a expressão da vontade coletiva.

A grande contribuição de Kant para as questões atinentes à organização estatal, segundo Paulo Bonavides, foi, sem dúvida, a apologia que fez à liberdade do ser humano, como contraponto às ingerências indevidas dos detentores do poder (sempre quando o Estado, independentemente da ótica sobre a qual é visto – liberal ou social, tolher a liberdade do cidadão, as reflexões de Kant servirão, por certo, para se buscar uma solução de superação do estado de crise).

 

7. O pensamento político de Hegel

Hegel, no que respeita à separação de poderes, não repudia o princípio clássico de Montesquieu. Submete-o, porém, aos corretivos de determinada interpretação: vê o poder de maneira una, interdependente e coordenada, dentro de uma organicidade estatal (Estado como organismo vivo, articulado).

Hegel é contrário à visão de separação de poderes mediante técnicas de limitações recíprocas, uma vez que essa situação engendra animosidades entre os poderes e, ao cabo, a própria desintegração do Estado.

Segundo BONAVIDES, “Hegel reelaborou as bases do princípio da separação dos poderes, fundou-o na ideia organicista de interdependência e, reconciliando a tese dos poderes que se excluem com a tese dos poderes que se coordenam, deu, por último, ao poder a base ética necessária, que o liberalismo extremado do século XVIII solapara”6.

A originalidade de Hegel consistiu, segundo Paulo Bonavides, “em haver-se afastado de Rousseau, Kant e Montesquieu, dos filósofos mecanicistas, que inundaram a Europa com um novo catecismo de liberdade individualista; em não haver aderido servilmente ao princípio autocrático das coroas absolutistas e em haver indicado, no terreno político, os rumos que havia de preparar as revoluções do século XX”7.

 

8. A liberdade antiga e a liberdade moderna

A crise entre as denominadas “liberdade antiga” (caracterizada, especialmente, pelo sistema vigente nas cidades helênicas, pela efetiva e direta participação do povo nos destinos do Estado e, por via transversa, em uma certa negação das individualidades) e “liberdade moderna” (reflexa do ideário liberalista, da não intervenção estatal, da democracia representativa e de uma autoridade não coativa) permanece atual. O Estado Moderno propugnava uma “liberdade-autonomia” e o Antigo uma “liberdade-participação”.

A “liberdade antiga” residia na resultante da submissão do indivíduo ao Estado, já que o cidadão, coletivamente, decidia os rumos deste. Entretanto, essa liberdade representava, sob a ótica dos modernos, efetiva coação (para estes, conforme ensinanças de Benjamin Constant, liberdade seria, por exemplo, o direito de não se sujeitar senão às leis, de não ser preso, detido, condenado à morte, maltratado sob qualquer pretexto decorrente de arbítrio de um indivíduo, de manifestar livremente uma opinião, entre outras coisas).

Ernest Barker, analisando o pensamento político grego, cuidou de observar, entretanto, que na ideia de liberdade antiga, malgrado a sujeição do indivíduo ao Estado, havia, na Grécia, “algo de diferente”, não se assemelhando ao despotismo havido no Oriente (ali, ninguém se sobressaía, senão o déspota – não havia a noção de “interesse comum”). No tocante à liberdade dos gregos, ensinou Baker que eles reivindicavam a liberdade como um direito que lhes era inato, compreendendo-a como o direito de alguém viver como lhe aprouvesse em assuntos sociais, bem como a soberania majoritária em assuntos políticos. Para eles, a igualdade era um lema, e significava isonomia (igualdade da lei para todos) isotimia, ou idêntica consideração (idêntico respeito) tributada a todos e isagoria, ou igual liberdade de palavra”. Assim, segundo Baker, não é correto sustentar-se que, na Grécia, houve a absoluta negação do indivíduo (talvez isso tenha se verificado unicamente no oriente, dada a característica despótica do poder que ali se exerceu).

Na verdade, para Platão e Aristóteles, a missão do Estado era a promoção do bem-estar geral (função positiva). Para os modernos, a função do Estado é negativa: remoção de obstáculos para a consecução da vida moral. Os antigos detinham uma certa “independência de fato”; os modernos, uma independência de caráter jurídico (“feição constitucional de liberdade reconhecida”).

O declínio do liberalismo, bem assim o debate democrático levam as pessoas a continuarem a discussão sobre a questão da liberdade e sobre as funções do Estado. Esse debate há de passar, necessariamente, pela afirmação e pela conciliação das ideias dos direitos sociais (que faz lícita uma maior intervenção do poder estatal na esfera econômica e cultural) e pelos ideários do individualismo (que pede a segurança e o reconhecimento de certos direitos fundamentais da personalidade).

 

9. As bases ideológicas do Estado Social

Segundo Bonavides, antes e depois de Rousseau, a reação ao poder estabelecido foi sempre a reação de uma classe: no liberalismo, a reação da burguesia capitalista; no marxismo, a reação da classe operária.

A contribuição de Rousseau residiu na maneira precisa de ele situar, entre esses dois polos (liberalismo e marxismo) a democracia como ação política não fragmentada, que não distingue classes e se integra na dita volonté générale. Para Rousseau, todo poder deve ser entregue ao seu legítimo titular, que não é o indivíduo, nem uma parte da sociedade, mas o povo todo. Contrariando, por assim dizer, a ideia de proteção e tutela do indivíduo perante o poder estatal (ou ausência dessa proteção) Rousseau propõe idéia não dual (ou de confronto entre os valores do poder estatal e da liberdade individual) mas um esforço de integração entre liberdade e poder, integração essa que seria a essência de seu contratualismo, cuja síntese seria a efetiva democracia.

Paulo Bonavides, analisando a obra rousseauniana, afirmou que uma leitura do Contrato Social leva à peregrinação do pessimismo (homem como escravo pela perda de certa liberdade individual) para o otimismo (a volonté générale como resgatadora da liberdade perdida).

Marx, igualmente a Rousseau, iniciou suas reflexões a partir de sua visão de um Homem escravizado. Nada obstante, para a busca da liberdade humana, Marx centrou-se no aspecto econômico, na realidade material dos homens e das relações destes com as várias estruturas de poder.

Bonavides sustenta que a liberdade política do Homem (apregoada por Rousseau) não se incompatibiliza com a proposta da liberdade econômica de Marx, já que ambos, Marx e Rousseau, mais do que claramente, detestavam os privilégios de classe. Ambos buscam uma sociedade igualitária, nada obstante por caminhos distintos. De Rousseau, o Estado social propugnado por Bonavides deve aproveitar-se de toda a sua instrumentação política, que tem bases populares, fundadas essencialmente no consentimento, via democracia, que nada mais é que o acordo de classes, de energias humanas, de colaboração mútua e livre, entusiasmada, com boa vontade e mediante o sufrágio universal (socialismo moderado). De Marx, ainda que ele apregoasse a conquista do poder por revoluções violentas, o Estado social beneficia-se das conquistas que da revolução havida advieram: sem elas, o mundo não teria amadurecido em sua consciência alguns postulados importantes de justiça social (soluções mais brandas retardariam, e muito, as conquistas sociais do proletariado).

 

10. O Estado social e a democracia

O Estado social admite as bases capitalistas. É, na verdade, um produto da transformação estrutural do antigo Estado liberal.

Na busca da superação da contradição entre a igualdade política e a desigualdade social, surge, sob distintos regimes políticos, a idéia desse Estado, um estado de todas as classes, um Estado de conciliação, um Estado mitigador de conflitos sociais, um Estado pacificador entre o “trabalho” e o “capital”.

Um Estado social é, também, produto da pressão das massas. É um ente que cria direitos do trabalho, de previdência social, de educação, um Estado “que intervém na economia como distribuidor, dita o salário, que manipula a moeda, regula os preços, combate o desemprego, protege os enfermos, dá ao trabalhador e ao burocrata a casa própria, controla as profissões, compra a produção, financia as exportações, concede crédito, institui comissões de abastecimento, provê necessidades individuais, enfrenta crises econômicas, coloca na sociedade todas as classes na mais estreita dependência de seu poderio econômico, político e social, em suma, estende sua influência a quase todos os domínios que dantes pertenciam, em grande parte, à área de iniciativa individual8.

O Estado social é, assim, um Estado intervencionista que busca prover certas necessidades existenciais mínimas dos cidadãos (estes, por fatores alheios à sua vontade, veem-se na impossibilidade de, por si, proverem essas necessidades e, portanto, têm no Estado, mediante sua ação política, o elo de garantia dessa proteção).

O Estado socialista, em uma transição mais drástica, não admite a ordem capitalista. Intui a remoção do sistema do capital, o alargamento do número das empresas sob seu poder e a inteira supressão da iniciativa privada.

A implantação do Estado social demanda um processo bastante difícil porquanto, pela sua própria natureza conciliadora de segmentos distintos da sociedade, acaba oscilando no “drama do poder”, nas contradições entre os interesses sociais divergentes, alguns de cunho material, outros de cunho ideológico.

Todavia, essa realidade, diante da luta de classes do Estado liberal, foi um imperativo, uma vez que a diminuição dos poderes da burguesia então dominante, e a sua correspondente dação às classes por ela oprimidas, salvou e preservou ideologicamente o que de melhor havia no Estado liberal: a idéia de liberdade moderna, uma liberdade como valoração da personalidade humana, desta feita, sob o pálio de uma democracia calcada no sufrágio universal, vinculada a um Estado dito social.

Segundo Bonavides, com “a reconciliação entre o capital e o trabalho, por via democrática, todos lucram. Lucra o trabalhador, que vê suas reivindicações mais imediatas e prementes atendidas satisfatoriamente, numa fórmula de contenção do egoísmo e de avanço para formas moderadas de socialismo fundado sobre o consentimento. E lucram também os capitalistas, cuja sobrevivência fica afiançada no ato de sua humanização, com o despojo daqueles privilégios de exploração impune, que constituíam a índole sombria do capitalismo, nos primeiros tempos em que se implantou9”.

A superação das dificuldades de consolidação do Estado social passa pelo caminho da democracia. E a democracia não pode, absolutamente, ir contra as massas. Cabe-lhe, antes, educá-las, mediante a politização das pessoas, para que a razão prevaleça, e não fiquem à mercê de demagogos.

Na lição de Paulo Bonavides, “o constitucionalismo democrático emancipou politicamente as massas com o sufrágio universal. Mas não soube ainda conquistá-las. Urge que seu voto, como sucedeu na Itália e na Alemanha, não seja de tal modo pervertido, que uma faculdade democrática se converta em arma antidemocrática”.

As massas, no Estado jurídico, já têm o poder de intervir na formação da vontade estatal. Cumpre evitar apenas que esse poder se demude em poder de destruir o Estado social da democracia, porque, se assim for, estariam atraiçoadas não as instituições democráticas, senão as mesmas massas, que haveriam solapado inconscientemente os seus mais caros interesses, vendo cair das mãos o poder do voto, ou seja, a maior arma de libertação política e social que o Homem moderno já conheceu”10.

Em síntese:

a) o Estado organizava-se de maneira liberal, fundado em uma concepção individualista de liberdade e de personalidade humana; havia um esquema de contenção da ação estatal, que inspirou a ideia dos direitos fundamentais e da divisão de poderes;

b) numa evolução necessária (dado o fato de que o Estado liberal, materialmente, atendia somente o interesse da “classe burguesa”) uma nova idéia de liberdade surgiu, uma liberdade calcada na idéia do social, abrindo rumos para uma nova teoria do Estado (Estado social); o Estado social, em tese, admite tanto a forma totalitarista como a forma democrática de governar, uma vez que, em última análise, o Estado social traduz-se em Estado intervencionista e paternalista; impõe-se, entretanto, um cuidado maior para que essa sorte de Estado trilhe caminhos democráticos, uma vez que, sob a feição jurídico-constitucional, salvaguarda a tutela eficaz e equilibrada dos direitos da personalidade (pela democracia consegue-se equilibrar as forças dos ideais sociais do constitucionalismo com os ideais da independência das personalidades humanas).

 

11. A interpretação das revoluções

Para Paulo Bonavides a grande revolução que se verificou nos últimos tempos foi a revolução do Estado social. Essa forma de Estado é, para ele, sob o prisma democrático, a melhor escolha que se pode fazer, especialmente quando os mesmos conflitos havidos nos séculos XVIII e XX pululam, sob novas roupagens, na sociedade contemporânea (desordem e guerra de mercados; barreiras protecionistas; economias recessivas). Com o Estado social, ensina o professor cearense, a revolução pode ser feita sem “derramamento de sangue”.

A proposta do Estado social é a de enxergar o Estado como um produto tanto da revolução francesa quanto da revolução socialista. Essas revoluções, segundo Bonavides, legitimaram-se pela história por conta dos frutos que produziram, inaugurando a necessidade do Estado social e de uma nova visão de homem (o homem cidadão do universo) justamente em razão dos direitos que lhe foram outorgados e reconhecidos: a Revolução Francesa deu ensejo ao Estado de Direito, à legitimidade republicana, à monarquia constitucional, ao regime representativo, às liberdades públicas, aos direitos individuais, à majestade da pessoa humana; já a Revolução Russa serviu de inspiração para o mundo ocidental, para a construção de um Estado comprometido com as questões de justiça social (“não fora a Revolução Socialista do século XX, o mundo estaria ainda atado à cruel liberdade individualista do capitalismo selvagem do século XIX, da mesma forma que, sem a Revolução Francesa, continuaria o gênero humano vivendo debaixo do cetro daqueles reis e rainhas, diante de cujo despotismo o povo se prostrava, coisificado e genuflexo, sem direitos, sem liberdade, sem participação”11).

 

1 BONAVIDES, Paulo. Do estado liberal ao estado social. 8. ed. São Paulo, Malheiros, 2007.

5 BONAVIDES, Paulo. Do Estado social ao Estado liberal. 8. ed. São Paulo, Malheiros, 2007, p. 86.

6 Op. cit., p. 138.

7 ibid., p. 128

8 op. cit., p. 186.

9 Op. cit, p. 189.

10 Op. cit, p. 200.

11 Op. cit. p. 211.

Lillian Ponchio Silva

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