O fundamento material do ilícito-típico à luz da compreensão onto-antropológica do direito penal de faria costa: a ofensividade e os seus distintos níveis

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SUMÁRIO: Introdução. 1. A síndrome funcionalista e o excessivo predomínio da política criminal: a necessidade de um argumento de validade a frear a Zweckrationalität. 2. A compreensão onto-antropológica do direito penal de Faria Costa: a ofensividade como fundamento material do ilícito-típico. 3. Ilicitude versus(?) tipicidade. 4. A ofensividade e os seus distintos níveis. Considerações Finais. Referências.

Resumo: O presente artigo tem por objetivo (re)discutir e (re)pensar os fundamentos do direito penal. Rechaçando as premissas que movem as teses funcionalistas hoje predominantes, o estudo em questão, a partir da adesão à compreensão onto-antropológica do direito penal desenvolvida por Faria Costa, busca encontrar um argumento de validade capaz de legitimar a intervenção penal e limitar as pretensões político-criminais. Pretende, ademais, demonstrar que a ofensividade, ancorada na referida compreensão, pode ser estruturada em diferentes legítimos níveis.

Palavras-chave: Ofensividade; Compreensão onto-antropológica do direito penal; Funcionalismo; Perigo.

 

Abstract: This article aims to (re)discussed and (re)think the fundamentals of criminal law. Rejecting the premise that move the functionalist theories prevalent today, the study in question, from the accession to the onto-anthropological understanding of criminal law developed by Faria Costa, attempts to find a valid argument can legitimize criminal intervention and limit the political pretensions -criminal. Intends, moreover, demonstrate that the offensiveness, grounded in that understanding, can be structured in different levels legitimate.

Keywords: Offensive; Onto-anthropological understanding of criminal law; Functionalism; Danger.

 

INTRODUÇÃO

Vivemos um tempo de efemeridades, de transitoriedades. Um tempo que nos faz refém da circunstância. Um tempo que glorifica o instante e que, talvez por isso, conceba o futuro como uma simples sucessão ininterrupta de muitos presentes. Um tempo que muito se aproxima, ou que até se confunde, com a temporalidade. Um tempo, enfim, que podemos dizer tempo breve, que não consegue conviver com o tempo longo (3). E se as coisas são, realmente, assim, não podemos negar, no seguimento de Faria Costa, que “estes são tempos de ‘razão débil’ e que quando se ousa ir contra o tempo, de duas uma: ou se não tem razão ou se tem razão para outro tempo” (4).

A despeito disso, se bem que cientes do risco inerente a uma tal postura, acreditamos que o tema de que cuidaremos a seguir demanda a adoção de uma razão, de um pensamento que se pretende forte (5). Mesmo que o caminho escolhido nos leve a andar, de certo modo, na contramão do pensamento reinante, ainda assim é nossa firme convicção de que se trata do caminho mais consentâneo à realidade. Falamos da necessidade de se (re)pensar e (re)discutir o fundamento do direito penal, hoje tão permeado por compreensões utilitaristas (6), e da conseqüente necessidade de se estabelecer um seu argumento de validade, capaz de conferir-lhe legitimidade.

A fim de cumprirmos os objetivos estabelecidos para o presente estudo, iniciaremos com uma análise crítica do atual cenário da ciência penal, no qual a política criminal afigura-se como a vertente mais poderosa. Uma vez manifestada nossa antipatia em relação às teses funcionalistas hoje predominantes, falaremos sobre a necessidade de se encontrar um argumento de validade capaz de legitimar a intervenção penal e de limitar as pretensões político-criminais, o que faremos a partir da adesão à compreensão onto-antropológica do direito penal desenvolvida por Faria Costa. Finalmente, após algumas breves considerações acerca da relação entre tipicidade e ilicitude, encerraremos abordando a noção a ofensividade e os seus distintos níveis.

1. A síndrome funcionalista e o excessivo predomínio da política criminal: a necessidade de um argumento de validade a frear a Zweckrationalität

A ordem jurídico-penal pode ser estruturada a partir de duas realidades dinâmicas e indissociáveis: o crime e a pena (7). Essas realidades dão origem a duas distintas formas de pensar o direito penal: de um lado, podemos fundamentá-lo com base nas consequências da norma, isto é, na pena; de outro lado, podemos explicá-lo a partir do objeto da norma, ou seja, do ilícito (8).

Limitemo-nos, por ora, à primeira perspectiva, a qual serve de base às orientações de cunho funcional, cuja feição mais extremada pode ser vislumbrada no funcionalismo-sistêmico de Jakobs (9), para quem ao direito penal cabe a tarefa de manutenção das expectativas normativas juridicamente fundadas, não havendo, por conseguinte, espaço para a noção de bem jurídico-penal, ou melhor, bem e norma acabam por se fundir num único elemento ou objeto jurídico (10). Partindo do mesmo radical, ou seja, da pena como elemento estruturante do direito penal, podemos surpreender os pensamentos de Roxin (11) e de Figueiredo Dias (12), sensivelmente mais racionais e moderados em comparação à postura de Jakobs, sobretudo em razão de não prescindirem – como regra – da noção de bem jurídico-penal como limite à intervenção punitiva. Tentemos explicar melhor.

Desde v. Liszt, a dogmática penal, a política criminal e a criminologia formam o modelo tripartido denominado ciência conjunta (total ou global) do direito penal (die gesamte Strafrechtswissenschaft) (13). Se no início as duas últimas podiam ser consideradas ciências auxiliares da primeira, hoje, ao que parece, as coisas são vistas de outra maneira (14). São perceptíveis a disseminação e o predomínio das orientações de cariz funcionalista no campo do direito (15). Pensamento que se guia por uma “racionalidade estratégica, não discursiva, orientada por um princípio de optimização na realização de um certo objectivo, em que a escolha da solução ou da acção entre as soluções ou acções possíveis se determina pelos efeitos, lográveis nas circunstâncias, que melhor realizem esse objectivo” (16).

Em termos penais (17), a crescente absorção de tais orientações talvez explique a hoje costumeira atribuição, à política criminal, de uma “posição de domínio e mesmo de transcendência face à própria dogmática” (18) (19). A legitimação da intervenção penal parece estar se desapegando da necessária fundamentação axiológica e se aproximando, cada vez mais, de argumentos funcionais, a exemplo da utilidade social (20). O nosso tempo parece perceber o político como protagonista absoluto e as leis como meros instrumentos disponíveis à realização da sua intencionalidade (21), que outra não é senão alcançar a finalidade político-criminalmente estabelecida. Esta, de modo sutil, pode ser expressa na contenção da criminalidade, se a mantendo dentro de níveis socialmente toleráveis (22) ou, dito de modo mais impressivo, o fim último da política criminal é o de “dominar ou, à la limite, o de fazer desaparecer a criminalidade” (23).

É certo, porém, que o Estado, impulsionado por uma racionalidade finalística (Zweckrationalität) (24), deve elaborar estratégias e definir táticas para alcançar as finalidades que lhe são inerentes (25) – no nosso preciso recorte, isto é, tratando-se de política criminal, a contenção da criminalidade –. De fato, a política criminal é uma atividade cuja “concretização se leva a cabo através de actos intencionados, previamente definidos, que, por seu turno, pressupõem uma racional utilização dos meios adequados à prossecução daqueles objectivos” (26), ainda que este último aspecto, o da racional utilização, seja muitas vezes descurado. Nesse contexto, o tipo legal de crime emerge como principal – ou, pelo menos, o mais utilizado – mecanismo ou instrumento para o atingimento das referidas intencionalidades, vez que é inegável que a norma de direito penal expressa uma escolha política por meio da qual se pretende proteger um determinado bem jurídico (27).

Entretanto, a possibilidade de tipificação de condutas com o intuito de satisfazer interesses ou finalidades político-criminais, enquanto poder que é, detém uma característica própria dos gases, nomeadamente a expansibilidade , de tal modo que é necessário impor limites rígidos ao seu exercício (28). Por outras palavras, como Castanheira Neves precisamente observa, “o direito só o temos verdadeiramente, ou autenticamente como tal, com a instituição de uma validade e não como mero instrumento social de racionalização e satisfação de interesses ou de objectivos político-sociais” (29). Em suma, é imprescindível o encontro de um argumento de validade, de um sentido normativo (30) apto a legitimar (31) a opção política de criminalização (32).

Se bem visualizamos as coisas, um tal limite, um tal argumento de validade não pode ser buscado no seio da própria política criminal, sob pena de condescendermos com uma auto-legitimação. Deve, sim, ser buscado no âmbito da normatividade penal. Naturalmente, uma dogmática penal que não pode ser concebida a partir de uma estéril matriz positivista – já que desta, evidentemente, nada ou pouco de valorativo poderíamos extrair –, calcada em juízos meramente silogístico-formais, mas uma “dogmática penal revista, uma ciência normativa que, ao aproximar-se da Constituição, ressurge como lugar, por excelência, de convergência de direitos e garantias fundamentais” (33).

Como bem observa D’Avila, em um Estado Democrático de Direito, “a delimitação do espaço de legitimidade propiciado pela análise normativa deve, necessariamente, preceder a reflexão em termos de adequação e utilidade por parte da política criminal” (34). Por outras palavras, um interesse político-criminal somente poderá ser perseguido se, e somente se, respeitar os limites de legitimidade estabelecidos pela normatividade penal e constitucional (35). Com isso, opera-se o resgate de uma conhecida e importante ideia de v. Liszt – adequada, evidentemente, à realidade da nossa época –, no sentido de que o direito penal é a barreira intransponível da política criminal (das Strafrecht ist die unübersteigbare Schranke der Kriminalpolitik) (36). A dogmática penal não é, nesse preciso contexto, apenas “o instrumento prioritário de que se serve a política criminal para o seu derradeiro objectivo (contenção da criminalidade) mas é outrossim o limite insuperável da própria política criminal” (37). Apenas assim, cremos, a ratio iuris poderá superar a ratio legis (38).

Pois bem. Uma vez afirmada a necessidade de se fixar um sentido ou limite normativo aos anseios político-criminais, tentemos definir tal limite iluminados por aquela que entendemos ser a forma mais adequada de se compreender o direito penal. De forma clara e impressiva: falemos um pouco da compreensão onto-antropológica do direito penal e da ofensividade como fundamento material do ilícito-típico.

2. A compreensão onto-antropológica do direito penal de Faria Costa: a ofensividade como fundamento material do ilícito-típico

Falávamos sobre a necessidade de se estabelecer um argumento de validade, um sentido normativo que se anteponha às pretensões político-criminais, hoje tão à flor da pele em razão da disseminação das teses funcionalistas. Quanto a nós, adiante-se, tal sentido normativo pode ser vislumbrado na noção de ofensividade. Para que cheguemos a tal conclusão, porém, é necessário que percorramos um sinuoso caminho, cujo trajeto passa, inarredavelmente, pela discussão do fundamento do direito penal.

Nesse sentido, vimos que o direito penal pode ser estruturado a partir de dois elementos fundamentais – a pena e o crime –, os quais dão origem a duas diferentes formas de pensá-lo. Se no tópico anterior discorremos sobre a primeira delas, a partir de agora, ao invés, cuidaremos da segunda perspectiva, que, a nosso juízo, é a mais correta e da qual, ademais, pensamos ser possível extrair o tal argumento de validade, capaz de se colocar como pressuposto de legitimidade a ser preenchido por todo e qualquer desejo político-criminal.

Com efeito, se pensarmos a ordem jurídico-penal a partir do crime, estaremos diante das construções de base ontológica, dentre as quais podemos destacar a fundamentação onto-antropológica do direito penal formulada por Faria Costa (39) e, entre nós, assumidamente adotada por D’Avila (40) (41). Seja-nos permitido sufragar tal compreensão, sobretudo porque, segundo opinião nossa, ela detém o mérito – um deles, é claro – de reconhecer que “a âncora deve estar no presente” (42), ou de forma mais precisa, no passado que se faz presente, isto é, no passado-presente. Com o que queremos insinuar – para dizer o mínimo – nossa antipatia para com as teorias exclusivamente preventivas (43) que permeiam, de um modo geral, as teses funcionalistas, cujo pecado principal, cremos, está no fato de não compreenderem que “o homem e o mundo são mais do que a sua estreita utilidade, e o Direito, mais do que uma ordem de otimização das vivências de um mundo funcionalizado” (44). Ademais, as posturas consequencialistas incidem em condenável inversão metodológica: ao conferirem caráter proeminente à pena, esquecem-se de que esta somente tem acesso ao mundo jurídico através de uma única entrada, cuja inquebrantável vigília é realizada pela categoria crime. Por outras palavras, a pena erigir-se-á como categoria juridicamente relevante se, e somente se, forem preenchidos todos os requisitos próprios da noção de delito.

Trata-se, o direito penal de base onto-antropológica, de uma orientação que compreende o “desvalor de resultado como pedra angular do ilícito-típico” (45) e que, sob uma perspectiva dogmática, “traduz uma concepção de ilícito penal estabelecida fundamentalmente na ofensa a interesses objetivos, no desvalor que expressa a lesão ou pôr-em-perigo a bens juridicamente protegidos” (46). Ilícito-típico que, por conseguinte, não se contenta com o mero preenchimento dos requisitos formais da tipicidade, antes constitui uma categoria dogmática que deve ser materialmente informada pelo requisito da ofensividade (47). Deixemos, porém, as considerações dogmáticas temporariamente de lado e voltemo-nos, antes, para um outro ponto.

O Direito, e em especial, por ser nosso foco, o direito penal, enquanto ciência essencialmente normativa (48), pertence à dimensão do real-construído (49). Como tal, não pode constituir um fim em si mesmo, nem tampouco buscar seus fundamentos ou razão de ser dentro da sua própria realidade, intra-sistematicamente, não obstante se tenha tentado fazê-lo com alguma insistência – o funcionalismo sistêmico é prova disso –, o que talvez explique o seu cada vez maior alheamento em relação a outras áreas do saber. Se pensarmos que os fenômenos jurídicos não existem por si mesmos, que não encerram em si a característica da juridicidade, mas que, em realidade, certos fenômenos apenas recebem interpretações jurídico-normativas (50), constataremos a bondade do que foi dito. E, conseguintemente, chegaremos à conclusão de que é necessária uma interessada aproximação entre o direito penal e outras áreas do saber, em especial, a filosofia, ambiente fértil para o encontro dos fundamentos íntimos da ciência jurídico-penal. Tentemos fazê-lo, pois.

Ao enveredarmos para a dimensão filosófica, veremos que “o direito penal encontra a sua razão de ser e o seu fundamento […] na dimensão onto-antropológica de uma relação de cuidado-de-perigo” (51), a qual é marcada por uma matriz ontológica, por “um ‘ontologismo social’ de raiz heideggeriana” (52). Essa compreensão do direito penal, que “pretende também corresponder à ressonância, em âmbito normativo-dogmático, do modo mais íntimo de ser do homem em comunidade” (53), obriga-nos, como dissemos, a uma percepção interessada de um elemento da filosofia, nomeadamente da Sorge de Heidegger (54).

Essa aproximação é possível, como observa Stein, porquanto “Heidegger abre com a fenomenologia existencial, simbolizada com a alegoria da cura, um espaço não metafísico, isto é, uma dimensão posta no espaço reservado pelo encurtamento hermenêutico. As ciências humanas se determinam a partir do cuidado” (55). Se bem que não possa resolver-se objetivamente, a questão do ser permite uma vigia de sua manifestação inesgotável, o que pode ser feito a partir de uma leitura interessada do homem como ser-no-mundo, em uma ontologia social qualificada pela construção heideggeriana (56).

Ao reconhecermos que o fundamento do direito penal encontra-se na “primeva relação comunicacional de raiz onto-antropológica, na relação de cuidado-de-perigo” (57), somos obrigados, por fio de lógica, a perscrutar o sentido do ser e a sua relação com o cuidado, a relação do ser do homem com o cuidado originário (die Sorge) (58). Heidegger explica essa interação por meio da Fábula de Higino (59), cuja importância podemos expressar pela seguinte passagem de Stein: “é, portanto, com esta alegoria que Heidegger encerra a apresentação do seu trabalho da analítica existencial: a definição do estar-aí como cuidado” (60).

A fábula com que Heidegger ilustra o cuidado possui uma riqueza de desdobramentos. O Cuidado foi o formador do homem, de modo que constitui a origem do ser do homem. Como D’Avila afirma, “é nas mãos e pelas mãos do Cuidado que o homem alcança o ser-homem, de modo que, por justiça, em uma irremediável vinculação à origem primeira, o Cuidado irá possuí-lo enquanto ele viver” (61). Mas a importância do Cuidado não está na matéria que constitui o ser – isto é, no humus que lhe dá o nome –, antes está no ser do ser-aí. Isso explica o porquê da escolha de Saturno, o tempo, para dirimir o conflito: ao impor ao ser a inafastável vinculação ao Cuidado, opera-se o chamamento da historicidade, a que “o ser do ser-aí estará irremediavelmente preso, como ser-para-a-morte” (62).

O homem é, portanto, “criatura do Cuidado” (63). Percebida de forma interessada, esta ideia permite o encontro do fundamento do direito penal. É bem verdade que o Cuidado de Heidegger constitui uma categoria existencial, o que não o impede de ser percebido como elemento essencial do existir para, a exemplo do que Faria Costa (64) faz, “buscar a sua dimensão relacional que apenas na pessoa do outro, na relação que a partir do outro se torna possível, ganha sentido” (65).

De fato, se é verdade que somos seres comunicacionais, “toda a nossa existência, todo o nosso mais profundo modo-de-ser é ser com os outros” (66), de sorte que esse cuidado somente encontra o seu sentido no momento em que se projeta no seio das relações sociais. O que demonstra que “é o cuidado para com o ‘outro’ que nos responsabiliza, porque só também por esse acto o ‘meu’ cuidado tem sentido quando se vira sobre si mesmo” (67). Ou seja, “a incompletude faz de nós seres frágeis. Seres de cuidado. Seres de cuidado-de-perigo. O ‘eu’, por isso, para ‘ser’, exige o cuidado do ‘outro’” (68).

Assim, são palavras de Faria Costa, “o cuidado individual, isto é, o cuidado do “eu” sobre si mesmo, só tem sentido se se abrir aos cuidados para com os outros, porque também unicamente desse jeito, unicamente nessa reciprocidade, se encontra a segurança (69), a ausência de cuidado, a carência de perigo” (70), em uma comunidade que se desenvolve, inegavelmente, em meio a perigos de variadas ordens (71).

O cuidado e o perigo são, dessa forma, duas projeções da mesma realidade (72). É no perigo e pelo perigo que o cuidado encontra a sua razão de existir, motivo pela o qual o cuidado é, sempre, cuidado-de-perigo (73). No seguimento de Faria Costa, é possível afirmar que “o perigo e o cuidado são uma matriz ontológica do ser-aí-diferente comunitariamente inserido […], [de tal modo que] o ser-aí-diferente e a comunidade jurídica que lhe subjaz assumem-se (são) como estruturas ontológicas de cuidado-de-perigo” (74). E dessa estrutura ontológica, desses entrecruzamentos de aberturas do eu para com o outro e do outro para com o eu, é que podemos inferir a existência de uma teia de relacionações, de uma teia de cuidados recíprocos (75).

Isso é verdade. Mas não apenas isso. Dita estrutura ontológica também é capaz de fornecer o próprio fundamento ontológico do direito penal, mediante sua ressonância jurídico-normativa. Com efeito, a uma relação onto-antropológica de cuidado-de-perigo “corresponde, no patamar da dimensão fenomênica, pura e dura, a relação ético-existencial de um ‘eu’ concreto, de carne e osso, que, precisamente, pela sua condição, só pode ser se tiver o ‘outro’, cuidar do outro, cuidar de si cuidando o ‘outro’ e cuidando esse cuidar de si” (76). Entretanto, tal relação de cuidado admite – aliás, só assim ela tem sentido – rupturas. E é precisamente “este lado negativo da relação que constitui o elemento ou segmento fundante para a existência de um crime” (77). Por outras palavras, o ilícito penal extrai seu fundamento e é, simultaneamente, a expressão jurídico-penal da “prejudicial oscilação dessa teia de cuidados, […] da desvaliosa oscilação da tensão originária da relação onto-antropológica de cuidado-de-perigo” (78). Mas não basta qualquer oscilação, pois “a comunidade politicamente organizada só se sente na necessidade de intervir penalmente quando a repercussão socialmente relevante […] do rompimento da relação de cuidado-de-perigo é tida como insustentável” (79). Eis, portanto, a forma como o crime deve ser, materialmente, compreendido.

É nossa tarefa, agora, entender como se dá a transposição desse desvirtuamento da relação onto-antropológica de cuidado-de-perigo para o âmbito jurídico-penal. Nesse sentido, podemos dizer que o direito penal constrói-se por meio da resposta legislativa, historicamente situada e legitimada, à ruptura violadora (80). Isso nos leva, cremos, à conclusão de que a resposta buscada encontra-se na recepção do modelo de crime como ofensa a bens jurídicos (81). Expliquemos melhor.

Dúvidas não há de que o “cuidar-se reclama a necessidade de uma definição daquilo de que se deve cuidar” (82). E essa definição, à luz da compreensão onto-antropológica, é perfeitamente possível, na medida em que o homem, ao abrir-se para com o outro, “vive e sedimenta um conjunto de valores, de bens axiologicamente relevantes e cristalizados na história e pela história, que permitem, agora em linha reversa de fundamentação, a existência do próprio ser comunitário” (83). De sorte que, na nossa interessada perspectiva, o cuidado-de-perigo refere-se, precisamente, a tais valores, ou talvez melhor, “o cuidado objectiva-se na exacta formulação de uma ordem de valores, ou seja, na formulação dos valores que a ordem penal consagra” (84). A transgressão de tais valores, convertidos (85) em bens jurídicos dignos de tutela penal, consubstanciará, conseguintemente, o ilícito. Por outras palavras, a ofensividade torna-se capaz de evidenciar o atingimento, “intolerável atingimento, reitere-se, da relação matricial de cuidado-de-perigo” (86).

Nesse sentido, pois, é que enxergamos na ofensividade potencial para funcionar como sentido normativo, como argumento de validade apto a temperar as pretensões político-criminais de contenção da criminalidade. Por outras palavras, não obstante reconheçamos o importante papel da política criminal no atual cenário da ciência penal, pensamos que ela deve sujeitar-se aos pressupostos de legitimidade estabelecidos pela dogmática, precisamente o respeito ao requisito da ofensividade. Tentemos detalhar este requisito, não sem antes tecermos uma ou duas considerações a respeito da sempre polêmica discussão acerca da relação entre tipicidade e ilicitude (87), o que permitirá situá-lo de maneira mais inteligível.

3. Ilicitude versus(?) Tipicidade

A compreensão do direito penal como “expressão fragmentária da ordem de valores que a objetivação do cuidado faz emergir, e cuja insuportável violação é denunciada pelo ilícito” (88), traz consigo algumas inarredáveis consequências, entre elas a de que a categoria do ilícito precede, necessariamente, à do tipo (89).

É voz corrente que o lugar cimeiro na doutrina do crime deve ser ocupado pela categoria da tipicidade (90), considerada o primeiro qualificativo da ação (91). Todavia, uma vez mais ousamos andar na contramão do pensamento reinante, e julgamos que a prioridade sistemática deve, necessariamente – com o perdão da redundância –, caber à categoria da ilicitude. A tipicidade, sem rodeios, constitui “apenas a mostração, concretização ou individualização de um sentido de ilicitude em uma espécie do delito”, ou seja, “a ilicitude se apresenta como o verdadeiro fundamento do tipo” (92). De tal modo que todo o tipo é ilícito-típico ou, o que é o mesmo, tipo de ilícito, na medida em que todo o tipo é portador do juízo de desvalor que a ilicitude exprime (93).

Assim, se o tipo legal de crime é pura construção, e se o seu fundamento pode ser encontrado na ilicitude material, na ofensa a um bem jurídico, não é difícil admitir que o ilícito, que a norma incriminadora é o prius do qual o penalista deve se utilizar para a construção dos tipos legais. Daí que os elementos do tipo “são específicos instrumenta que o legislador utiliza, seguindo as regras constitucionais de legitimação procedimental, para compor e desenhar normativamente o desvalor que o juízo de ilicitude material carrega” (94).

Registre-se, por fim, que para o mencionado processo de concretização o direito penal utiliza-se de dois instrumentos divergentes, se bem que complementares: os tipos justificadores e os tipos incriminadores. Os primeiros possuem a função de limitar negativamente os tipos incriminadores, de modo que podem ser mais bem compreendidos como contratipos. Os segundos, por seu turno, ligam-se à fundamentação do ilícito e, diferentemente dos tipos justificadores, são portadores do bem jurídico (95).

4. A ofensividade e os seus distintos níveis

Agora sim, pensamos, é possível retomar a questão da ofensividade e, por conseguinte, da exigência de um argumento de validade. Ora, se, como vimos, o tipo é “’sedimentação concreta’ ou ‘irradiação’ de um ilícito” (96), e se este, o ilícito, materialmente compreendido, expressa o juízo de desvalor capaz de traduzir uma afetação negativa da própria função do direito penal – tutela subsidiária de bens jurídicos dotados de dignidade penal (97) –, é forçoso concluir que a todo o tipo incriminador corresponde – ou, talvez melhor, deve corresponder – uma ofensa a um bem jurídico-penal. De modo sintético, restritivo e impressivo: “não há crime (legítimo) sem ofensa a um bem jurídico-penal” (98). Tentemos clarear o que foi dito.

A necessidade de proteção de bens jurídicos pelo Estado (99) obriga-nos a reconhecer a existência de um “princípio constitucional impositivo como princípio geral fundamental, densificador do princípio estruturante do Estado de direito e, ainda, por conseqüência, estruturante de todo o ordenamento jurídico-penal” (100). Desse princípio geral fundamental de tutela de bens jurídicos irradiam dois outros princípios aparentemente contrapostos: o princípio constitucional de garantia, representado pela necessária ofensa, e o princípio constitucional impositivo, representado pela intervenção penal necessária (101).

A ponderação dos princípios da ofensividade e da intervenção penal necessária gera uma zona de tensão capaz de nos oferecer uma “moldura suficientemente clara a partir da qual podemos retirar o que é possível em termos de ofensa e, portanto, jurídico-penalmente tutelável” (102). No centro dessa moldura temos a ofensa de dano/violação, que pode chegar à nadificação do bem jurídico, e no limite máximo de distanciamento do bem jurídico temos a ofensa de cuidado-de-perigo, própria dos crimes de perigo abstrato, que constitui uma das espécies da ofensa de perigo/violação (103).

Um tal inteligir nos obriga a perceber o bem jurídico-penal como categoria dinâmica e valorativa, na medida em que permite e, por vezes, reclama a proteção não apenas de seu núcleo físico, mas também do espaço que o circunda, a ponto de possibilitar o “afloramento de figuras normativas representativas das diferentes formas de ofensa” (104). Estas figuras normativas que protegem espaços prévios à efetiva afetação do bem jurídico podem ser agrupadas sob o gênero perigo e, precisamente pela sua natureza, possuem como lugar legítimo de existência não a dimensão do real-verdadeiro, mas a dimensão do real-construído (105). Em suma, enquanto o dano/violação constitui a “única forma de ofensa capaz, embora não necessariamente, de manifestar-se de forma sensível na dimensão do real-verdadeiro”, a manifestação do perigo restringe-se, sempre, à dimensão do real-construído (106).

E se as coisas são realmente assim, pensamos não haver argumentos consistentes que permitam negar a possibilidade de estruturação da ofensividade em diferentes níveis. Com isso queremos dizer que, ao lado do dano/violação, o perigo/violação – concebido de uma maneira geral, sem nos atermos às suas específicas categorias – tem, sim, seu lugar legítimo no âmbito jurídico-penal. Devemos ter em mente, apenas, que os comportamentos humanos estão inseridos em um sentido de variabilidade histórica, de tal modo que “os segmentos matriciais construtores da comunidade jurídico-penal são eles mesmos determinados pela história que os envolve” (107). Assim, a preponderância do desvalor de resultado de dano/violação ou a emergência do desvalor de resultado de perigo são “flutuações, não de uma conjuntura histórica acidental mas antes flutuações impregnadas do sentido matricial do cuidado-de-perigo originário” (108). Busquemos esclarecer o que acabamos de dizer.

É certo que o dano/violação, pela intensidade com que atinge o bem jurídico (109), sempre ocupará a posição central na fundamentação do ilícito-típico (110). Entretanto, isso não nos impede de perceber o perigo/violação como categoria capaz de expressar uma situação desvaliosa apta a informar o ilícito penal, contanto que ancorada em uma perversão da relação onto-antropológica de cuidado-de-perigo. Respeitada essa premissa, o legislador, ao considerar que “o pôr-em-perigo é elemento bastante para justificar uma pena criminal” (111), faz nada mais do que a transposição da primeva relação de cuidado-de-perigo para o campo da normatividade penal, de tal modo que “qualquer desvirtuamento, legalmente definido, daquela relação determina o aparecimento do perigo que o legislador considera ser suficiente para legitimar a cominação de uma pena criminal” (112).

Assim, a despeito da diferença há pouco mencionada, toda e qualquer forma de ofensa, seja de dano/violação ou de perigo/violação, tem – ou, ao menos, deveria ter – sua origem na relação onto-antropológica de cuidado-de-perigo. Dito de modo mais claro: as diferentes formas de ofensa correspondem à desigual ressonância normativa das diferentes oscilações da relação onto-antropológica de cuidado-de-perigo (113). Daí o motivo pelo qual pensamos ser possível estruturar a ofensividade, desde que ela seja compreendida, repita-se, como o desvirtuamento da relação onto-antropológica de cuidado-de-perigo, em distintos níveis (114).

A intensificação e a paralela normalização de atividades arriscadas (115), se bem que necessárias ao desenvolvimento humano, alteraram a percepção do desvalor de resultado (116) e fizeram com que o direito penal fosse chamado a regulá-las (117). Como já tivemos a oportunidade de afirmar, a preponderância de um – dano/violação – e a emergência de outro – perigo – são fruto de diferentes percepções sociais do atingimento da relação matricial de cuidado-de-perigo (118). Daí a correta afirmação de que “os crimes de perigo são (ou, ao menos, devem ser) figuras típicas detentoras de um real desvalor de resultado” (119).

Dessa forma, pensamos ter demonstrado aquele que entendemos ser o correto fundamento do direito penal: a relação onto-antropológica de cuidado-de-perigo. A partir dele, e do reconhecimento do modelo de crime como ofensa a bens jurídicos, acreditamos ter evidenciado, também, ainda que fugazmente, que, ao lado da ofensa de dano/violação, o perigo/violação possui um lugar legítimo de existência.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma vez chegado até aqui, cremos ser possível tecer algumas considerações, as quais, advirta-se, não constituem propriamente pontos de chegada, mas novos pontos de partida para ulteriores reflexões.

Vimos que a ordem jurídico-penal pode ser estruturada a partir de dois elementos fundamentais: a pena e o crime. As teses funcionalistas, hoje aparentemente predominantes, são edificadas com base no primeiro elemento ou, talvez melhor, nas suas possíveis funções. Tal estruturação acaba por alçar a política criminal à posição de principal vertente da ciência conjunta do direito penal, o que tende a deixar o sistema penal sem limites, visto que não se estabelece qualquer óbice ou pressuposto de legitimidade em face das pretensões político-criminais.

À luz de um tal contexto, entendemos ser necessário o estabelecimento de um argumento de validade, de um sentido normativo capaz de condicionar e limitar as estratégias de contenção da criminalidade. Quanto a nós, dito sentido normativo pode ser vislumbrado na noção de ofensividade, desde que esta seja corretamente compreendida a partir daquela que entendemos ser a forma correta de se perceber o direito penal, precisamente a compreensão onto-antropológica formulada por Faria Costa. Esta orientação, que parte de uma interessada percepção da Sorge heideggeriana, erige o desvalor de resultado, ou seja, a ofensividade à condição de pedra angular do ilícito-típico.

Isso é possível na medida em que a ordem penal consagra, por intermédio dos tipos de ilícito, determinados valores – preexistentes à norma, logicamente – socialmente considerados dignos de tutela penal. A violação de tais valores, no modo previsto pelo respectivo tipo penal – lesão ou perigo –, traduz uma específica forma de ofensa, com o que pensamos ter demonstrado a possibilidade de estruturação da ofensividade em diferentes níveis. Devemos relembrar, apenas, à luz de tudo o que foi dito aqui, que por mais sinceras e bem intencionadas que sejam as pretensões político-criminais, elas sempre terão de respeitar o pressuposto de legitimidade fixado pela noção de ofensividade, sem a qual qualquer incriminação será, inapelavelmente, ilegítima.

 

REFERÊNCIAS

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3 FARIA COSTA, José Francisco de. Apontamentos para umas reflexões mínimas e tempestivas sobre o direito penal de hoje. Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 17, n. 81, nov-dez/2009, p. 37.

4 FARIA COSTA, José Francisco de. Uma ponte entre o direito penal e a filosofia penal: lugar de encontro sobre o sentido da pena. Linhas de direito penal e de filosofia: alguns cruzamentos reflexivos. Coimbra: Coimbra, 2005, p. 208.

5 Um pensamento que se pretende forte, mas que de modo algum pode ser considerado absoluto ou imutável. Como bem observa Faria Costa, “o direito penal é, nas suas manifestações mais profundas, uma realidade que é sendo, que se mostra, em inteireza, como dinâmica” (FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 4], p. 222, nota 42), o que não significa, logicamente, que nossa forma de pensar fique à mercê dos ventos da história. O que queremos deixar claro é que jamais nos furtaremos de reconhecer, se assim entendermos necessário, a bondade de um pensamento distinto ou o equívoco do nosso próprio.

6 Segundo Faria Costa, esta é “uma época que quer o direito, não como valor e dimensão ontoantropológica do nosso modo de ser individual e colectivo ou, senão quisermos ir tão longe, ao menos como um dado minimamente estável e duradouro da nossa vida colectiva, mas antes como mero instrumento que está ao serviço das mais diferentes estratégias” (FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 3], p. 37-38).

7 D’AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade em Direito Penal: escritos sobre a teoria do crime como ofensa a bens jurídicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 45. De acordo com Faria Costa, “o crime e a pena são essentialia do nosso viver comunitário, mas não são absolutos a-históricos. São, como aliás todo o humano, realidades que vivem em mutação constante dentro da própria história e que são por ela moldadas ou conformadas. Afirmam-se como um dado, mas como um dado histórico, de uma história construída e feita por homens e mulheres rodeados da sua concreta e inescapável circunstância” (FARIA COSTA, José Francisco de. Noções fundamentais de direito penal (Fragmenta Iuris Poenalis): introdução. Coimbra: Coimbra, 2007, p. 15).

8 D’AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 7], p. 45. FARIA COSTA, José Francisco de. Ilícito-típico, resultado e hermenêutica (ou o retorno à limpidez do essencial). Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n. 1, jan-mar de 2002. Coimbra: Coimbra, 2002, p. 9.

9 JAKOBS, Günther. Derecho Penal: parte general: fundamentos y teoría de la imputación. Tradução de Joaquin Cuello Contreras e Jose Luis Serrano Gonzalez de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 1997, passim. JAKOBS, Günther et. al. Direito Penal e Funcionalismo. Coordenação de André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Tradução de André Luís Callegari, Nereu José Giacomolli e Lúcia Kalil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 31-52.

10 D’AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 7], p. 46.

11 ROXIN, Claus. Derecho Penal: parte general, tomo I. Tradução de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Diaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 2006, passim.

12 FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito Penal: parte geral: questões fundamentais: a doutrina geral do crime, tomo I, 1. ed. brasileira e 2. ed. portuguesa. São Paulo: RT, 2007, passim.

13 FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Temas Básicos da Doutrina Penal: sobre os fundamentos da doutrina penal sobre a doutrina geral do crime. Coimbra: Coimbra, 2001, p. 6.

14 Para uma análise evolutiva, se bem que não totalmente de acordo com a nossa forma de ver as coisas, sobretudo no tocante à atual relação entre os três segmentos referidos, FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Op. cit. [n. 13], p. 3 ss.

15 Postura que pode ser sintetizada, e daí o risco inerente a qualquer simplificação, na seguinte indagação: O Direito, para que serve?

16 CASTANHEIRA NEVES, A. Entre o <<legislador>>, a <<sociedade>> e o <<juiz>> ou entre <<sistema>>, <função>> e <<problema>> – Os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do direito. Boletim da Faculdade de Direito. Coimbra: Coimbra, 1998, p. 28. O autor bem observa que “as categorias da acção e do comportamento em geral (pessoal ou institucional) deixaram de ser as do bem, do justo, da validade (axiológica material), para serem as do útil, da funcionalidade, da eficiência, da performance (CASTANHEIRA NEVES, A. Op. cit., p. 24).

17 Exemplificativamente, ROXIN, Claus. Op. cit. [n. 11], passim; FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Op. cit. [n. 12], passim; JAKOBS, Günther. Op. cit. [n. 9], passim.

18 FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Op. cit. [n. 57], p. 23. O autor acrescenta que “as categorias e os conceitos básicos da dogmática jurídico-penal devem agora ser não simplesmente ‘penetrados’ ou ‘influenciados’ por considerações político-criminais: eles devem ser determinados e cunhados a partir de proposições político-criminais e da função que por estas lhes é assinalada no sistema.” Ademais, a política criminal “torna-se em ciência competente para definir, em último termo, os limites da punibilidade.” (FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Op. cit. [n. 13], p. 23).

19 A mudança dos holofotes na direção da política criminal e o seu alçamento à condição de ciência protagonista podem ser atribuídos a ROXIN, Claus. Política Criminal e Sistema Jurídico-Penal. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro, 2000, passim.

20 Parafraseando Kohlrausch, Figueiredo Dias chega a afirmar que “uma ciência jurídico-penal que nada tenha a oferecer às necessidades correctamente entendidas da política criminal não só se torna em peça decorativa inútil, como é falsa” (FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Op. cit. [n. 13], p. 24). No entanto, de acordo com a nossa forma de ver as coisas, que exporemos em seguida, a forte assertiva deve ser reconstruída da seguinte forma: uma política criminal que desrespeita os limites de legitimidade impostos pela dogmática penal deve ser considerada nefasta, teratológica e, conseguintemente, repudiável.

21 CASTANHEIRA NEVES, A. Op. cit. [n. 16], p. 16 ss.

22 FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 7], p. 77.

23 FARIA COSTA, José Francisco de. O perigo em Direito Penal: contributo para a sua fundamentação e compressão dogmáticas. Coimbra: Coimbra, 1992, p. 570.

24 Sobre as noções de racionalidade finalística (Zweckrationalität) e racionalidade axiológica (Wertrationalität), ainda que de forma sucinta, ver CASTANHEIRA NEVES, A. Op. cit. [n. 16], p. 24 ss. Embora não neguemos – porque seria negar o óbvio – a necessidade de adoção de estratégias e táticas político-criminais, isso não significa que partilhemos de uma compreensão do direito penal estabelecida em uma Zweckrationalität. Com efeito, toda e qualquer pretensão político-criminal jamais pode ser cumprida indiscriminadamente, uma vez que ela sempre está submetida a requisitos de legitimidade, como teremos a oportunidade de explicar pormenorizadamente. De tal modo que “a exacta compreensão da conexão entre a política criminal e o direito penal não está em rejeitar os fins nem os meios para que esses fins se cumpram, está antes em não ceder a que essa forma de inteligir impere e domine na própria compreensão do direito penal” (FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 23], p. 570, nota 4). Por outras palavras, “à pura racionalidade opõe-se a axiologia e à eficiência a validade” (CASTANHEIRA NEVES, A. Op. cit. [n. 16], p. 35).

25 FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 23], p. 570.

26 FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 23], p. 570.

27 FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 7], p. 76.

28 FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 7], p. 71. Em sentido semelhante, Montesquieu afirma que “é uma experiência eterna que todo homem que tem poder é levado a abusar dele. Vai até encontrar limites. Quem diria! A própria virtude precisa de limites. Para que não possam abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder freie o poder” (MONTESQUIEU. O Espírito das Leis. 2 ed., Livro Décimo Primeiro. Tradução de Pedro Vieira Mota. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 163 apud MOLINA, Antonio García-Pablos; GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal: parte geral, v. 2. São Paulo: RT, 2007, p. 31).

29 CASTANHEIRA NEVES, A. Op. cit. [n. 16], p. 34.

30 Sentido normativo que deve ser compreendido enquanto “justificação superior e independente das posições simplesmente individuais de cada um” (CASTANHEIRA NEVES, A. Op. cit. [n. 16], p. 34).

31 Para uma análise sintética, mas correta, acerca da noção de legitimidade, ver SILVA, Ângelo Roberto Ilha da. Dos crimes de perigo abstrato em face da constituição. São Paulo: RT, 2003, p. 19-28.

32 Faria Costa menciona que “se nem todas as criminalizações de condutas violadoras de bens jurídicos são legítimas, forçoso é também aceitar, mesmo que só em termos lógico-argumentativos, que nem todos os meios – neste contexto, isto é, nem todas as técnicas de construção do tipo – merecem o juízo abonatório de incontestada legitimidade” (FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 23], p. 571).

33 D’AVILA, Fabio Roberto. Ob. Cit. [n. 7], p. 34-35.

34 D’AVILA, Fabio Roberto. Ob. Cit. [n. 7], p. 32.

35 D’AVILA, Fabio Roberto. Ob. Cit. [n. 7], p. 33.

36 FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Op. cit. [n. 13], p. 10.

37 FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 7], p. 79.

38 CASTANHEIRA NEVES, A. Op. cit. [n. 16], p. 39.

39 FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 23], passim. O autor menciona que “a uma metódica da função preferimos uma metódica que se funda na determinação onto-antropológica de um ‘eu’ frágil que escuta o ‘outro’, sempre guiada pelos sinais de uma hermenêutica jurídico-penalmente empenhada” (FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 8], p. 11, nota 11).

40 D’AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 5], p. 45 ss.

41 É bom esclarecer: não se trata de uma teoria ontológica do direito penal, mas de uma teoria de base ontológica. Diferentemente do finalismo, para o qual o ontologismo integra o próprio Direito, na orientação onto-antropológica, o ontologismo reside apenas no fundamento do direito penal, como veremos à continuação. O Direito, em si, é algo absolutamente construído, logo, não ontológico, embora possa encontrar sua fundamentação na esfera do ser. Para maiores esclarecimentos a respeito da natureza ontológica da categoria finalidade, elemento fundamental na construção de Welzel, vide GALLAS, Wilhelm. La teoria del delito en su momento actual. Tradução de Juan Cordoba Roda. Barcelona: Bosch, 1959, p. 13 ss.

42 FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 3], p. 47.

43 Não negamos que a prevenção, sobretudo a geral, seja um dos efeitos do direito penal. As normas proibitivas, pela sua natureza, tendem a levar os pretensos criminosos a uma reflexão ante delictum, por mínima que seja. Contudo, pensamos que a prevenção seja apenas um efeito reflexivo, secundário desse mecanismo de controle, conclusão a que chegamos após aderirmos à aludida concepção onto-antropológica do direito penal, que tem no passado-presente seu ponto privilegiado.

44 D’AVILA, Fabio Roberto. Direito Penal, Literatura e Representações. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim. 2009, p. 2-3.

45 FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 8], p. 12.

46 D’AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 7], p. 46.

47 D’AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 7], p. 46.

48 E o termo normativo, aqui, deve ser compreendido em duas acepções: jurídica e valorativa.

49 Sobre as categorias real-verdadeiro e real-construído, ver FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 23], p. 316 ss. O autor ainda refere que “se o direito penal tem, em muitas circunstâncias, força conformadora para com o real construído, nunca por nunca pode alterar, minimamente que seja, o real verdadeiro” (FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 23], p. 391).

50 A propósito, veja-se o exemplo fornecido por Faria Costa, em que A mata B em contextos diversos (em legítima defesa, em estado de necessidade, por simples prazer e, por fim, sendo o agente inimputável). Segundo o autor, muito embora o desvalor de resultado seja o mesmo, o fato “não vale em si e por si”, mas está todo ele “envolvido em uma valoração onde se cruzam várias linhas de força axiologicamente relevantes” (FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 8], p. 13). Igualmente a corroborar o que dissemos está a afirmação de que “não se podem extrair […] argumentos materiais de uma realidade que é em primeira linha e fundamentalmente pura construção, como a que o tipo legal de crime representa” (FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 8], p. 15). De fato, o tipo legal de crime, como veremos em seguida, é a simples – embora importante – objetivação do (des)valor de cuidado, que por sua vez decorre da relação onto-antropológica de cuidado-de-perigo, ou seja, o fundamento material não se encontra no próprio tipo, mas fora dele, na ilicitude material que lhe é anterior, entendida como necessária ofensa.

51 FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 8], p. 13.

52 FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 23], p. 248.

53 D’AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 7], p. 46.

54 D’AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 7], p. 47.

55 STEIN, Ernildo. Seis estudos sobre “Ser e Tempo”. Petrópolis: Vozes, 1990, p. 89.

56 D’AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 7], p. 47.

57 FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 7], p. 20.

58 D’AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 7], p. 47. Cuidado originário que é também compreendido enquanto verdadeira “tensão expectante de abertura e alerta” (FARIA COSTA, José Francisco de. Op. Cit. [n. 23], p. 319), o que pode significar um distanciamento da elaboração heideggeriana, na medida em que se entende que “o cuidado se reflecte, fundamentando-a, na realidade social. Mais. A realidade social determina-se pelo cuidado, cuidado que envolve ontologicamente o real social, cuidado que se identifica com o real social” (FARIA COSTA, José Francisco de. Op. Cit. [n. 23], p. 319, nota 82).

59 “Quando um dia o Cuidado atravessou um rio, viu ele terra em forma de barro: meditando, tomou uma parte dela e começou a dar-lhe forma. Enquanto medita sobre o que havia criado, aproxima-se Júpiter. O Cuidado lhe pede que dê espírito a esta figura esculpida com barro. Isto Júpiter lhe concede com prazer. Quando, no entanto, o Cuidado quis dar seu nome a sua figura, Júpiter o proibiu e exigiu que lhe fosse dado o seu nome. Enquanto o Cuidado e Júpiter discutiam sobre os nomes, levantou-se também a Terra e desejou que à figura fosse dado o seu nome, já que ela tinha-lhe oferecido uma parte do seu corpo. Os conflitantes tomaram Saturno para juiz. Saturno pronunciou-lhes a seguinte sentença, aparentemente justa: Tu, Júpiter, porque deste o espírito, receberás na sua morte o espírito; tu, Terra, porque lhe presenteaste o corpo, receberás o corpo. Mas porque o Cuidado por primeiro formou esta criatura, irá o cuidado possuí-la enquanto ela viver. Como, porém, há discordância sobre o nome, irá chamar-se homo já que é feita de húmus.” Valemo-nos da tradução de STEIN, Ernildo. Op. cit. [n. 55], p. 87, p. 87-88.

60 STEIN, Ernildo. Op. cit. [n. 55], p. 87.

61 D’AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 7], p. 48. Ou, nas palavras do próprio Heidegger, esse “testemunho pré-ontológico adquire um significado especial não somente pelo fato de ver a ‘cura’ como aquilo a que pertence a presença humana ‘enquanto vive’, mas porque essa primazia da cura emerge no contexto da concepção conhecida em que o homem é apreendido como o composto de corpo e espírito. Cura prima finxit: esse ente possui a ‘origem’ de seu ser na cura. Cura teneat, quamdiu vixerit: esse ente não é abandonado por essa origem, mas, ao contrário, por ela mantido e dominado enquanto ‘for e estiver no mundo’. O ‘ser-no-mundo’ tem a cunhagem da ‘cura’, na medida do ser” (HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo: parte I. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 264). Em sentido semelhante, Stein refere que “o ente não é desligado desta origem, mas é preso por ela, é por ela perpassado enquanto este ente ‘está no mundo’. O ‘estar-no-mundo’ possui a marca ontológica do ‘Cuidado’” (STEIN, Ernildo. Op. cit. [n. 55], p. 88).

62 D’AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 7], p. 48.

63 STEIN, Ernildo. Op. cit. [n. 55], p. 99.

64 “Não nos parece, contrariamente ao que defende José Enes, que o facto de Heidegger entender a Sorge como uma categoria existencial, isso a impeça de ser percebida como peça essencial do ek-sistir. Por certo que o ‘cuidado constitui o modo dinâmico do ser que pensa’. Também por inteiro vai o nosso acordo ao reflectir-se que ‘o mundo, onde ser-se é o cuidar-se do ser que se é sendo-se em acção de ser-se, não se ergue, por isso mesmo, em mundo armado pelo jogo da concitação do quarteto à compreensão mundanal. Trava-se, antes, em um mundo de seres ligados pelo agir recíproco por que todos são no com-ser em acção de com-ser-se. Porém, o que se reafirma, em nosso entender, não vai contra a Sorge de tonalidade heideggeriana. Esta, se bem que vocacionada por um primado originário da existência, é também estrutura relacional que só das e nas relações dos outros pode ter sentido” (FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 23], p. 250, nota 87).

65 Segundo Faria Costa, “esta [existência] só tem verdadeiramente sentido se aquele cuidado se não estiolar na contemplação narcísica de um <<eu>> fora da história. A <<Sorge>> é transposição da <<minha>> inquietação originária que se quer ver aplacada na solidariedade de todos” (FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 23], p. 249-250).

66 FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 8], p. 16.

67 FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 23], p. 381. Daí a interessante afirmação de D’Avila, no sentido de que “ser-se é, assim, cuidar-se, mas é também ser-se-com e, portanto, nessa abertura do ser para com o outro, cuidar-se é cuidar também do outro, como expressão elementar do ser-no-mundo que, sendo, projeta-se, em sua fragilidade, no outro, e cuidando-se, no cuidado-para-com-o-outro. A ação de ser-se-no-mundo, que é sempre uma ação de ser-se-com, atira o ser-aí em uma teia de relações recíprocas de cuidado que estruturam e dão consistência ao ser comunitário” (D’AVILA, Fabio Roberto. Op.cit. [n. 7], p. 48-49).

68 FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 4], p. 224.

69 O termo seguro advém “do latim securus, forma adjectiva composta do prefixo se (de sentido privativo, tal como a proposição arcaica sua homógrafa se, ‘sem’) e de cura, <<cuidado>>, <<preocupação>>. Diz-se, pois, seguro (tal como se dizia securus) todo aquele que está isento de cuidados, de preocupações, porque em situação de segurança; que está, em suma, livre de perigo” (FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit., [n. 23], p. 249, nota 85).

70 FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit., [n. 23], p. 319. “Porque se é necessariamente frágil e vulnerável é que o ser apela aos cuidados dos outros, estabelecendo-se, também por esta via, uma relação de cuidado-de-perigo dos <<outros>> para com o <<eu>>. Por outras palavras ainda: é a nossa condição de seres irremediavelmente frágeis e insustentavelmente vulneráveis que gera matricialmente os cuidados-de-perigo dos <<outros>> para com o <<eu>>” (FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 4], p. 398-399).

71 D’AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 7], p. 49

72 Segundo Faria Costa, “é nossa firme convicção que o perigo e o cuidado são duas projecções de uma mesma realidade. Em termos intencionalmente simplistas diremos que não é possível conceber o perigo sem o cuidado, da mesma forma que ao cuidado anda sempre associado um qualquer perigo” (FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 4], p. 327).

73 D’AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 7], p. 49. “Já vimos que a comunidade (jurídica) se assume e se assumiu sempre como uma comunidade de cuidados. Cuidado do ser-aí-diferente para consigo mesmo e para com os outros e ainda o cuidado do ser-todos para com os particulares e únicos seres-aí-diferentes. Porém, a comunidade jurídica é uma comunidade de cuidados porque lhe pertence também a qualidade de ser uma comunidade de perigos. O ser-aí-diferente, desde o instante originário da passividade desperta é um ser confrontado com perigos e que tende inapelavelmente para a morte, a qual é o centro e vértice, no imaginário primitivo e não só, de todos os males e de todos os perigos. Daí que a comunidade jurídica se caracterize também, ontologicamente, como comunidade de perigos em cuja tensão superadora se inserem os cuidados” (FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 23], p. 327).

74 FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 23], p. 327.

75 D’AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 7], p. 49. Segundo Faria Costa, “a segurança, a <<minha>> segurança, passa pela abertura solidária com que <<eu>> me <<seguro>> com os outros e pelos outros. O étimo fundante da segurança está, por consequência, em uma ideia de pluralidade, de teia plural, de ramificações dialógicas em que o <<ter>> é presença mas em que o <<ser social>> é presença redobrada. Redobro consistente, porque o ser-aí-diferente é, a um tempo, manifestação da individualidade que o <<ter>> desencadeia, mas também sociabilidade que esse mesmo <<ter>> não pode deixar de pressupor” (FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit., [n. 23], p. 249).

76 FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit., [n. 4], p. 223-224. De forma gráfica: “tu ‘deves’ não só porque ‘eu devo’ mas ‘tu deves’, sobretudo, porque ‘eu’, enquanto outro, também ‘devo’ (FARIA COSTA, José Francisco de. Op. Cit., [n. 4], p. 77).

77 FARIA COSTA, José Francisco de. Op. Cit., [n. 4], p. 224.

78 D’AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 7], p. 49. Do que decorre que “quer o fundamento do direito penal, quer o fundamento de uma das suas categorias essenciais, o crime – a outra é a pena – encontram o seu étimo mais profundo em um critério, não idealista ou formal, mas antes naquele que se reflecte em determinações materiais que a linha de compreensão onto-antropológica tão bem expressa” (FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 7], p. 20).

79 FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 8], p. 13. Por isso é que não procede a crítica de que pensar ontologicamente significa pensar de modo a-histórico. Todo o oposto. Com efeito, se a intervenção penal submete-se à intolerância da comunidade politicamente organizada ao desvalor de cuidado, e se aceitarmos – o que pensamos ser indiscutível – que este nível de tolerância varia de acordo com a época em que vivemos, então dúvidas não há de que “quando convocamos a figuração onto-antropológica estamos a conceber a historicidade como sua trave-mestra” (FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 4], p. 222).

80 FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 4], p. 223.

81 “Uma tal concepção onto-antropológica do direito penal, percebida e recepcionada juridicamente através do modelo de crime como ofensa a bens jurídico-penais, não só, vale reiterar, atribui ao ilícito uma posição privilegiada na estrutura dogmática do crime, eis que portador, por excelência, do juízo de desvalor da infração enquanto elemento capaz de traduzir para além da intencionalidade normativa, também a própria função do direito penal, como propõe a noção de ofensa a bens jurídicos, a noção de resultado jurídico como a pedra angular do ilícito-típico” (D’AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 7], p. 50-51).

82 FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 23], p. 251.

83 FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 23], p. 626.

84 FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 23], p. 251. Por outras palavras, podemos dizer que “o ordenamento jurídico-penal é uma teia relacional de cuidados-de-perigo, mediatizados pela história, e que os diferentes ilícitos típicos consubstanciam, directa ou indirectamente, especiais cuidados-de-perigo” (FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 23], p. 388).

85 Conversão que depende do preenchimento dos requisitos de legitimidade. De forma detalhada, FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Op. cit. [n. 13], p. 43 ss.

86 D’AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 7], p. 50. Esse ideário revela nada mais que “uma leitura firme e plural do exacto sentido daquilo que defende um direito penal liberal-social” (FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 8], p. 12).

87 Pausa para um necessário esclarecimento. A polêmica a que nos reportamos não pode ser confundida com a discussão acerca do modo como deve ser compreendido o tipo, isto é, se como tipo indiciador da ilicitude (Indiztatbestand) ou como tipo total (Gesamttatbestand), nos moldes da teoria dos elementos negativos do tipo. Esta divergência descura do essencial, na medida em que ambas as compreensões concebem o tipo como substantivo (prius) e a ilicitude como predicado (posterius). Essencial que traduz – e é a esta polêmica que nos referíamos –, logicamente, o ponto nevrálgico da questão, que reside em saber qual categoria detém a prioridade na construção do sistema, se a tipicidade ou a ilicitude. Quanto a nós, como explicaremos à continuação, a prioridade não pode deixar de pertencer à categoria do ilícito. Assim, e também acerca da mencionada confusão, D’AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade e crimes omissivos próprios: contributo à compreensão do crime como ofensa ao bem jurídico. Coimbra: Coimbra, 2005, p. 41, nota 5; FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Op. cit. [n. 12], p. 265 ss.

88 D’AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 7], p. 50.

89 FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Op. cit. [n. 13], p. 223. À continuação, falaremos com maior vagar acerca da prioridade da ilicitude em face da tipicidade.

90 Nesse sentido, de modo meramente exemplificativo, Roxin (ROXIN, Claus. Op. cit. [n. 11], p. 218 ss. e 277 ss.); Welzel (WELZEL, Hans. O novo sistema jurídico-penal: uma introdução à doutrina da ação finalista. 2. ed. revista da tradução. Tradução de Luiz Regis Prado. São Paulo: RT, 2009, p. 51 ss.; WELZEL, Hans. Derecho Penal Alemán: parte general, 11. ed., 4. ed. castellana. Tradução de Juan Bustos Ramírez e Sergio Yáñez Pérez. Santiago: Editorial Juridica de Chile, 1997, p. 57 ss.). Por seu turno, Cadoppi e Veneziani afirmam que “a tipicidade é o primeiro dos elementos do crime” (CADOPPI, Alberto; VENEZIANI, Paolo. Elementi di diritto penale: parte generale. Seconda edizione. Verona: Cedam, 2004, p. 169).

91 Para um panorama sobre as diversas teorias da ação e acerca da necessidade de renúncia a um tal conceito pré-típico de ação em favor da adoção da categoria da realização típica, ver D’AVILA, Fabio Roberto. A ação como conceito compreensivo de agir e omitir: linhas críticas ao conceito de ação como Oberbegriff. Revista de Direito Penal. Vol. I, n. 2. Lisboa: Universidade Autónoma de Lisboa, 2002, p. 5-29.

92 FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Op. cit. [n. 12], p. 285 e 268, respectivamente.

93 Em sentido semelhante, FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 8], p. 15-16.

94 FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 8], p. 15-16.

95 FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Op. cit. [n. 12], p. 269.

96 FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Op. cit. [n. 13], p. 223.

97 Segundo D’Avila, “toda tipificação penal é, em realidade, se bem a vemos, o resultado de uma ponderação de princípios na qual o direito fundamental à liberdade encontra-se sopesado com interesses outros, que segundo o legislador, carecem da tutela jurídico-penal” (D’AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 87], p. 71).

98 D’AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 7], p. 51. Com o que podemos concluir pela necessidade de dois momentos de valoração para a aceitação de um tipo de ilícito em matéria penal. Com efeito, para além da existência de um bem jurídico-penal como objeto de tutela pela norma, é necessário, em um segundo momento, verificar se este bem foi ofendido, “como resultado (jurídico) da relação entre a conduta típica e o objeto de tutela da norma” (D’AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 7], p. 54).

99 Sobre a existência de um princípio constitucional impositivo de tutela, derivada do princípio do Estado de direito, que tem por proposição o estabelecimento de uma ordem de paz garantida pelo ordenamento jurídico, ver D’AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 87], p. 65 ss.

100 D’AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 87], p. 65.

101 D’AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 87], p. 66.

102 D’AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 87], p. 89.

103 D’AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 87], p. 89.

104 D’AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 87], p. 90. Nesse sentido, Faria Costa afirma que “o bem jurídico seria, nesta ordem de aproximação teorético-analítica, uma entidade que comportaria várias zonas periféricas susceptíveis de protecção. Haveria, assim, um núcleo central, o chamado núcleo duro do bem jurídico, que conteria, ainda, em seu redor, uma zona de protecção que constituiria a parte intrínseca do próprio bem jurídico. De jeito que, qualquer ataque de violação a essa zona antecipada de protecção, a esse Vorfeld protectivo, constituiria uma violação de perigo, enquanto que, se o ataque atingisse o cerne do próprio bem jurídico, estaríamos perante uma violação de dano” (FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 23], p. 410).

105 De acordo com Faria Costa, o perigo é “um real construído ao nível do direito – e é nesta dimensão, frise-se, que o percebemos como categoria normativa – que em atitude reversa vai servir de centro gerador de normatividade, na medida em que, arrancando dele, se pode fazer um juízo de imputação. Por outras palavras: o direito penal considera que há situações – apreensíveis em termos de intersubjectividades que na sua contextualidade não pode deixar de ser consideradas como normativamente objectivas – que, não alterando efectivamente o real verdadeiro, alteram pelo menos o real construído e, por isso, podem ser centro de imputação de responsabilidade penal” (FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 23], p. 563-564).

106 D’AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 87], p. 94. Faria Costa observa que “a alteração do real verdadeiro é a <<alteração>> do bem jurídico e não a mutação do mundo circundante. […] O real verdadeiro que convocamos é o próprio bem jurídico” (FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 23], p. 565, nota 187). É também por isso que o perigo se perfila como um conceito normativo.

107 FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 23], p. 623.

108 FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 23], p. 624.

109 Não nos esqueçamos de que a ofensa de dano/violação é a única capaz de se manifestar, embora nem sempre isso ocorra, na dimensão do real-verdadeiro e, mais do que isso, é a única capaz de causar o aniquilamento do bem jurídico (D’AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 87], p. 94). Ilustremos com um exemplo referente ao bem jurídico vida. O valor da vida, atrelado que está à materialidade, é inconcebível sem o respectivo corpus. Porém, como bem observa Faria Costa, “se a cristalização do valor coincide, neste caso, com a exigência de uma res extensa, a ofensa ao bem jurídico da vida passa, em juízo de necessidade, pela ofensa a essa unidade normativa e material-intencional que a vida representa” (FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 23], p. 628-629), de modo que fica fácil compreender o que se quer expressar com nadificação ou aniquilamento do bem jurídico.

110 D’AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 87], p. 93.

111 FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 23], p. 623.

112 FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 23], p. 623. Por essa exata razão é que consideramos o ilícito-típico como verdadeiro portador do juízo de desvalor que a ilicitude exprime.

113 Nas palavras de Faria Costa, “o ponto essencial radica, do mesmo modo, em um étimo fundante – a relação comunicacional entre homens – que, ao ascender ao mundo da normatividade penal, transforma aquela primitiva relação, sem lhe alterar a essência, em comunicação destruidora de uma valorada relação de cuidado-de-perigo” (FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 23], p. 423).

114 Como tivemos a oportunidade de referir, ainda que fugazmente, em apartado anterior, “a descrição típico-formal da ruptura dessa relação originária pode adquirir formas historicamente variáveis, não só por mor das técnicas de incriminação utilizadas, como também por força dos bens jurídicos protegidos” (FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 23], p. 398).

115 Compreendendo a evolução tecnológica como um dos principais fatores para a expansão dos crimes de perigo, FIANDACA, Giovanni; MUSCO, Enzo. Derecho Penal: parte general. Tradução de Luis Fernando Niño. Bogotá: Temis, 2006, p. 211 ss; MANTOVANI, Ferrando. Principi di Diritto Penale. Padova: Cedam, 2002, p. 92 ss.

116 A propósito, Demuth, partidário de uma noção substantivada de perigo, compreende a sensação de desvalor (Unwertempfindung) experimentada pela comunidade como um elemento importante na percepção do necessário desvalor de resultado dos crimes de perigo (DEMUTH, Heinrich. Der normative Gefahrbegriff. Ein Beitrag zur Dogmatik der konkreten Gefährdungsdelikte. Bochum: Brockmeyer, 1980, p. 193).

117 De fato, “a ruptura que a técnica […] veio trazer ao seio do próprio tecido social determinou novos arranjos e rearranjos das relações sociais e, consequencialmente, o direito foi chamado a regular todo um conjunto novo de situações-tipo” (FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 23], p. 340-341). Em sentido semelhante, Marinucci e Dolcini entendem que em homenagem ao princípio da ofensividade, o direito penal deve garantir não apenas a integridade do bem jurídico, seja individual ou coletivo, mas também a segurança de sua fruição (MARINUCCI, Giorgio; DOLCINI, Emilio. Corso di Diritto Penale: le norme penali: fonti e limiti di applicabilità. Il reato: nozione, struttura e sistematica, vol. 1, 3. ed. Milano: Giuffrè, 2001, p. 560-564).

118 Com precisão, Faria Costa sustenta que “o pôr em perigo não será, neste sentido, a segunda figura a aparecer na ribalta da compreensão do comportamento ilicitamente típico mas deverá ser entendido como uma das personagens marcantes, ao lado da violação, para a exacta e normativamente correcta equação dos problemas que o ilícito típico põe aos penalistas do nosso tempo” (FARIA COSTA, José Francisco de. Tentativa e Dolo Eventual: ou da relevância da negação em direito penal. Coimbra: Coimbra, 1996, p. 58). Por isso é que, “se o eixo do ilícito típico se não deslocou da violação para o pôr em perigo […] é, quanto a nós, indiscutível que a compreensão do ilícito típico gravita, agora, quantas vezes descentradamente, em dois eixos (o pôr em perigo e a violação) que, como bem se entenderá, nem sequer são paralelos, nem muito menos giram ao mesmo ritmo” (FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit., p. 58-59).

119 D’AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 87], p. 94.

 

Diego Alan Schofer Albrecht

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