Doença mental e seus reflexos na (in)imputabilidade penal

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RESUMO: O presente estudo tem por objetivo analisar a influência da doença mental sobre a imputabilidade penal. Para tanto, serão analisados conceitos como culpabilidade, periculosidade, (in)imputabilidade e medidas de segurança. Após, ditos conceitos serão cotejados, de modo a permitir a constatação da influência que a deficiência mental exerce sobre a questão da imputabilidade.

Palavras-chave: Culpabilidade. Doença mental. Inimputabilidade.

ABSTRACT: The present study aims to examine the influence of mental illness on the criminal responsibility. To this end, we will analyze such concepts as culpability, dangerousness, incapacity and security measures. Then, the concepts will be collated in order to allow observation of the influence that mental disability has on the issue of accountability.

Keywords: Culpability. Mental Illness. Incapacity.

INTRODUÇÃO

O instituto da inimputabilidade é frequentemente invocado como tese defensiva em processos penais. Daí por que sua relevância não apenas para o Direito penal, mas também para a psiquiatria forense. Nesse contexto inserem-se o crime e a doença mental, esta última como uma das causas de exclusão da imputabilidade, elemento da culpabilidade.

Passeando por temas como o confronto entre culpabilidade e periculosidade, a (in)imputabilidade, a relação entre esta e a doença mental, o art. 26 do Código Penal e as medidas de segurança, o presente trabalho tem como objetivo averiguar os reflexos que a doença mental produz na imputabilidade.

1. Culpabilidade versus periculosidade

O art. 59 do Código Penal (BRASIL, 2007, p. 485) trata das fases da aplicação da pena. O magistrado, tendo em conta os elementos nele contidos (culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade do agente, motivos, circunstâncias e conseqüências do crime, e comportamento da vítima), deve seguir as etapas previstas no dispositivo legal citado, que possui a seguinte redação:

Art. 59. O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime:

I – as penas aplicáveis dentre as comináveis;

II – a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos;

III – o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade;

IV – a substituição da pena privativa de liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível.

Segundo Carvalho (2001, p. 34), a pena privativa de liberdade é a “pedra angular dos sistemas jurídico-penais da modernidade.” A despeito de existirem outras espécies de pena (restritiva de direitos e multa), estas possuem caráter substitutivo da primeira, a qual deve ser quantificada a fim de viabilizar uma análise sobre a possibilidade ou não de substituição.

Assim, o cálculo da quantidade de pena torna-se fundamental nesse modelo estrutural. A fixação da sanção, contudo, deve ser feita em consonância com o art. 68 do Código Penal, que trata do método trifásico de aplicação da pena (pena-base – art. 59 do Código Penal –, pena provisória – circunstâncias agravantes e atenuantes –, e pena definitiva – causas de aumento e de diminuição de pena).

José Antonio Paganella Boschi (2004, p. 187-188) define pena-base como sendo

aquela que atua como ponto de partida, ou seja, como parâmetro para as operações que se seguirão. A pena-base corresponde, então, à pena inicial fixada em concreto, dentro dos limites estabelecidos a priori na lei penal, para que, sobre ela, incidam, por cascata, as diminuições e os aumentos decorrentes de agravantes, atenuantes, majorantes ou minorantes.

A opção do legislador em pré-determinar os parâmetros balizadores da aplicação da pena justifica-se por seu objetivo, qual seja evitar arbitrariedades. Entretanto, em virtude de que no art. 59 do Código Penal existem vários elementos de conceituação aberta, ainda há um elevado grau de discricionariedade no processo de aplicação da sanção. Por isso, grande parte dos autores entende que a medida da pena-base deve ser dada pela culpabilidade, circunstância a partir de agora analisada.

Winfried Hassemer (apud CARVALHO, 2001, p. 36) sustenta que o conceito de culpabilidade traz, para a teoria do Direito Penal, um grande inconveniente, visto que se trata de

uma exceção entre os pressupostos da punibilidade, constituindo um dos instrumentos mais difíceis e obscuros do sistema jurídico-penal. Tanto em seus princípios, como em questões concretas, é discutido e atualmente é difícil marcar por onde transcorrem propriamente as frentes da polêmica. O conceito de culpabilidade alcança as profundezas de nossa experiência cotidiana e constitui, portanto, o conceito jurídico-penal que mais amplamente se alijou da mesma. Qualquer exposição do conceito jurídico penal de culpabilidade deve hoje, por conseguinte, começar com precisões.

Segundo Luiz Flávio Gomes (2007, v. 2, p. 543-544), culpabilidade “é juízo de reprovação que recai sobre o agente do fato que podia se motivar de acordo com a norma e agir de modo diverso, conforme o Direito.”

Já Heleno Fragoso (apud CARVALHO, 2001, p. 36-37) afirma que a culpabilidade “consiste na reprovação da conduta ilícita (típica e antijurídica) de quem tem capacidade genérica de entender e querer (imputabilidade) e podia, nas circunstâncias em que o fato ocorreu, conhecer a sua ilicitude, sendo-lhe exigível comportamento que se ajuste ao direito.”

Por meio de uma análise dos conceitos citados, percebe-se que a culpabilidade relaciona-se com a capacidade de livre determinação do indivíduo. Melhor dito, o Direito Penal da culpabilidade funda-se no livre arbítrio, ou seja, em um juízo acerca de como o sujeito podia atuar na situação concreta. Portanto, afirma Zaffaroni (apud CARVALHO, 2001, p. 37), esta estrutura penal deve nortear-se pela máxima “não há pena se a conduta não é reprovável ao autor”, o que importa aceitar que o homem é um ser capaz de autodeterminar-se.

Tais idéias permitem concluir que a culpabilidade exerce a função de fundamento da imputação do delito e da aplicação da sanção penal. Para além disso, possui imensurável relevância como critério de fixação da pena, pois possibilita vincular o indivíduo com o fato-crime imputado e estabelecer a devida retribuição penal, que deve ser proporcional à lesão ao bem jurídico protegido.

Entretanto, em decorrência do caráter de subjetividade[2] existente na culpabilidade é que nascem inúmeros problemas em relação a esta categoria penal, sobretudo no que se refere à confusão que se faz entre culpabilidade de fato e de autor. Zaffaroni (apud CARVALHO, 2001, p. 38-39) faz a seguinte ponderação:

cabe esclarecer que o conceito de culpabilidade – como qualquer outro – pode adulterar-se e até converter-se em um mecanismo perigosíssimo para as garantias individuais. Uma das adulterações mais comuns consiste em olvidar que a culpabilidade é uma reprovação do ato e não da personalidade do sujeito, reprovação do que o homem fez e não do que o homem é, tentação na qual com freqüência se cai.

A despeito de a culpabilidade possuir o significado de reprovação de ato praticado por sujeito intelectualmente livre, o que a impede de ser confundida com um juízo de censura moral, não raramente alija-se tal postura garantista para fazer-se um julgamento ético, legitimando-se a malfadada culpabilidade de caráter vinculada à periculosidade. Sobre este aspecto, aliás, Rosa Maria Cardoso da Cunha (apud CARVALHO, 2001, p. 39) afirma que, “no âmbito da individualização da pena, a qual deveria se relacionar com a culpabilidade pelo fato, examina-se sempre a culpabilidade do autor, a sua personalidade culpável.”

A origem dessa deturpada ótica remonta ao início do século passado, sobretudo com a intervenção da escola positiva italiana e sua reorganização em prol do movimento da Nova Defesa Social. Desde aquela época, uma crise da culpabilidade vem se consolidando, no sentido de integrá-la ou substituí-la pela noção de periculosidade do imputado ou por meios outros de graduação moral de sua personalidade.

Todavia, Luigi Ferrajoli (2006, p. 458) bem pondera que a culpabilidade pode ser concebida,

tal como acontece, por outro lado, com a ação e com o resultado lesivo, como um elemento normativo não do autor, mas do delito, do qual designa, mais do que uma conotação psicológica, uma modalidade deôntica e, além disso, alética: o dever de abster-se de realizá-lo com base na possibilidade material da sua omissão ou da sua comissão.

Sob essa visão, prossegue Ferrajoli (2006, p. 458), pode-se denominar de “livre-arbítrio”

a esta alternativa, ex ante, entre possibilidade de cometer e possibilidade de omitir a ação proibida, alternativa que constitui o pressuposto da eleição entre duas opções, sob condição, porém, de que seja considerada não como ontológica, mas como deontológica, não referida à estrutura ôntica do mundo, senão à deôntica das normas.

Nesse sentido, conclui-se que a possibilidade alética (ou livre-arbítrio), como pressuposto normativo da culpabilidade, refere-se sempre ao atuar, e nunca ao ser do agente. Conseqüentemente, não se pode lançar mão da culpabilidade para se definir um atributo do indivíduo (A é culpado), senão somente para qualificá-lo em relação à determinada conduta (A é culpado de uma ação). Assim, é possível concluir que, em um sistema garantista, não há lugar para a periculosidade, tampouco para qualquer outra categoria subjetiva, a exemplo da reincidência, da tendência para delinqüir, da imoralidade ou da deslealdade (FERRAJOLI, 2006).

Portanto, é perceptível a duplicidade do juízo da culpabilidade a ser realizado pelo juiz. Inicialmente, deve-se avaliar se o indivíduo, na situação concreta, possuía autodeterminação e possibilidade de atuar de modo distinto. Caso a resposta seja negativa, estar-se-á diante de causa exculpante, que descaracteriza o crime. Na hipótese de resposta afirmativa, o juiz deve, na fixação da sanção, aferir o grau de culpabilidade, ou seja, medir a possibilidade alética, para daí então calcular a culpabilidade na conduta. Assim, o juízo de culpabilidade, na medida da pena, deve recair sobre as possibilidades fáticas de o indivíduo atuar conforme o Direito, sendo, deste modo, extraído seu desvalor e o grau de reprovabilidade (CARVALHO, 2001).

Por outro lado, ainda com Ferrajoli (2006, p. 449-450), pode-se afirmar que a culpabilidade pode ser decomposta em três elementos: a) a relação de causalidade que vincula reciprocamente decisão do réu, ação e resultado do delito; b) a imputabilidade ou capacidade penal, que designa uma condição psicofísica do réu, consistente em sua capacidade, em abstrato, de entender e de querer; c) a intencionalidade ou culpabilidade em sentido estrito, que designa a consciência da vontade do delito concreto e que, por sua vez, pode assumir a forma de dolo ou de culpa.

O tema central do presente trabalho dirige-se ao segundo fundamento. Antes de abordá-lo, porém, é necessário dizer que a periculosidade é o conceito fundamental quando se trata de medidas de segurança. Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli (2008, v. 1, p. 732) entendem que

a medida de segurança, seja de internação, seja de sujeição a tratamento ambulatorial, perdura enquanto persistir a periculosidade. A periculosidade é, neste sentido, o simples perigo para os outros ou para a própria pessoa, e não o conceito de periculosidade penal, limitado à probabilidade da prática de crimes.

Sobre esse mesmo ponto, Alfredo Cataldo Neto e outros (2006, p. 167) diferentemente compreendem a periculosidade como “o cálculo probabilístico quer de natureza criminológica quer estritamente normativa da recidiva.” Então, tem-se que a periculosidade é formada por um conjunto de circunstâncias que revelam a probabilidade da prática de um crime ou sua reiteração. Ditas circunstâncias são averiguadas por meio do exame de cessação da periculosidade, mediante o qual, segundo Guido Arturo Palomba (2003, p. 214- 216), são observados os seguintes tópicos: I) curva vital do indivíduo; II) morfologia do crime praticado; III) ajuste à vida frenocomial; IV) possíveis distúrbios psiquiátricos e atribulações na fase de execução da medida de segurança.

Neste sentido, prosseguem os mesmos autores, a periculosidade é “uma vinculação direta entre a natureza e gravidade do fato ilícito, bem como à anomalia psíquica do agente e ainda, a probabilidade de repetição do acontecimento refutável.”

Ivanira Pancheri (1997, p. 108) conceitua a periculosidade:

Traduz o temor, a expectativa, a probabilidade de novo vento criminoso. Periculosidade esta criminal e não social que entraria em atrito com o Direito Penal constitucionalmente assegurado. Entretanto, resta a indagação: qual a percentagem para se verificar se o evento é provável? Qual a percentagem para se afirmar que a pessoa novamente irá delinquir? Afinal haverá um grupo de risco, que se concentrará numa zona cinzenta entre a certeza (?) da reincidência e a da não-reincidência. Mister um método de investigação idôneo que obstaculiza aquela perícia rotineira e intuitiva, que não acrescenta fato novo.

Assim, apreendido o conceito de periculosidade, pode-se perceber que sua concreta verificação depende de uma avaliação conjunta com outras áreas da ciência, em especial da psiquiatria.

 

2. A (in)imputabilidade

A capacidade é pressuposto para que sobre determinado sujeito recaia um juízo de reprovação pessoal. A capacidade de culpabilidade, por seu turno, expressa-se na definição de imputabilidade.

De acordo com Ariel Urruela Mora (2004, p. 156), pode-se conceituar imputabilidade “como capacidad de comprender la ilicitud del hecho y de actuar conforme a dicha comprensión.” Assim, imputável é o sujeito que, com capacidade de representar perfeitamente sua conduta, age com plena liberdade de compreensão e vontade.

A culpabilidade pressupõe a concorrência simultânea de três elementos: exigibilidade de outra conduta, potencial consciência da ilicitude e imputabilidade. A lei penal brasileira não define o que é imputabilidade, muito embora permita que se chegue ao seu conceito pela análise negativa. É que os arts. 26, 27 e 28 do CP preveem as causas excludentes de imputabilidade, de modo que, na hipótese de ocorrência de qualquer delas, estar-se-á diante de um sujeito inimputável.

Mora (2004, p. 157) explica:

En concreto, cabe poner de manifiesto el hecho de que los distintos Códigos Penales no proceden a definir positivamente la imputabilidad, sino que únicamente cabe conceptuar la misma por via de una interpretación a sensu contrario a partir del análisis de las causas concretas que determinan su exclusión.

Ferrajoli (2006, p. 452) fala a respeito das causas excludentes de culpabilidade, entre as quais se inclui, como já dito, as excludentes de imputabilidade. Segundo o autor italiano, “a ideia comumente associada a este conjunto de conceitos é a de que o delito é uma ação anormal cometida por uma pessoa normal em condições normais.” Isso implica o surgimento de uma série de questionamentos, que vão do sentido que há em distinguir entre imputáveis e inimputáveis, até a possibilidade de considerar como fator causal do delito a vontade consciente de atuar.

Diante disso, Ferrajoli acrescenta que (2006, p. 453) as concepções sobre a culpabilidade têm

desvalorizado, ainda que por razões diferentes, o elemento material da ação; e tem predominado, inclusive, modelos de diagnose antropológica ou de inquisição pessoal que apontam para a periculosidade ou para a perversidade do réu, pouco importando se são atribuídas, à maneira determinista, a causas externas ou objetivas de tipo natural ou social, ou, à maneira moralista, à livre eleição do estilo de vida de um sujeito intrinsecamente e subjetivamente perverso.

Vê-se, pois, que a tarefa de determinar se um sujeito é ou não imputável não é nada simples. Pelo contrário, o que se verifica é a necessidade de se limitar precisamente as causas excludentes, para que se esteja sempre diante de óbices estritamente objetivos. Isso porque, a despeito dos esforços legislativos, doutrinais e jurisprudenciais, as dificuldades ainda permanecem insuperáveis, porquanto os fenômenos psicológicos são ainda significativamente desconhecidos à ciência.

 

3. A relação entre doença mental e inimputabilidade

Nem seria necessário dizer, a doença mental é uma das causas biológicas de exclusão de responsabilidade.

Segundo Maximiliano Roberto Ernesto Führer (2000, p. 55),

em tema de inimputabilidade penal, doença mental é toda manifestação nosológica, de cunho orgânico, funcional ou psíquico, episódica ou crônica, que pode, eventualmente, ter como efeito a situação de incapacidade psicológica do agente de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. Não é necessário que cause os dois efeitos (falta de entendimento e impossibilidade de autodeterminação) ao mesmo tempo; basta um.

Ao falar do contexto espanhol, Mora (2004, p. 213-214) afirma ter-se adotado uma fórmula mista de imputabilidade, na qual o elemento biológico (psiquiátrico) se encontra perfeitamente delimitado a partir de quatro elementos: I) a perturbação psíquica mórbida; II) a perturbação profunda da consciência; III) a oligofrenia; IV) e outras anomalias psíquicas graves.

Na primeira categoria, da perturbação psíquica mórbida, encontram-se os casos de psicoses, tanto exógenas como endógenas, isto é, as enfermidades mentais propriamente ditas. Na segunda categoria, da perturbação profunda da consciência, figuram as alterações psíquicas tanto de base fisiológica como de natureza psicológicas. A terceira categoria, da oligofrenia, identificável com o retardo mental, constitui uma anomalia psíquica e é suscetível de graduação. Por fim, na última categoria, a das outras anomalias psíquicas graves, encontram-se as hipóteses de psicopatia e neuroses.

A doença mental pode, pois, ser enquadrada dentro das hipóteses mencionadas. Todavia, não se trata de uma conceituação abstrata, apreensível por características uniformes e constantes, dentro um quadro pré-estabelecido. Antes disso, faz-se necessário descrever com rigor as moléstias mentais, para que se identifiquem suas mais diversas manifestações internas e externas.

Nas palavras de Salgado Martins (apud CATALDO et. al., 2006, p. 166), a doença mental depende muito da personalidade do agente.

Uma personalidade ciclotímica (normal) pode, pela acentuação de suas características constitucionais atingir cicloidia (psicopata, fronteiriço) e daí passar pela psicose maníaco-depressiva (doente mental), como a esquizofrenia (doença mental) pode ser o acme de uma esquizoidia (estado psicopatológico) que se implanta na personalidade esquizotímica (normalidade). Tenha a doença mental uma predominante causa exógena ou endógena, instala-se e evolui em íntima dependência com a personalidade do paciente. Ainda que se trata de uma mesma moléstia, a sua forma clínica, as suas reações, a sua evolução, hão de mostrar diferentes, caso a caso, assumindo um colorido peculiar a cada doente.

Portanto, não é apenas o fato de o sujeito ser portador de uma enfermidade mental que implica na sua inimputabilidade penal. As doenças e suas implicações devem ser averiguadas caso a caso, de modo que se contate, ou não, a impossibilidade de o sujeito compreender seu ato e determinar-se de acordo com tal compreensão, agindo conforme ao Direito.

 

4. O art. 26 do Código Penal brasileiro

Em 1984, a parte geral do Código Penal foi completamente reformada. O art. 26 do Código Penal brasileiro, que trata da inimputabilidade penal, passou a vigorar com a seguinte redação:

Art. 26. É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

Parágrafo único. A pena pode ser reduzida de 1 (um) a 2/3 (dois terços), se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

Como se pode perceber, o caput do dispositivo legal trata dos casos de inimputabilidade, ao passo que o parágrafo único cuida das hipóteses de semi-imputabilidade.

Führer (2000, p. 29) refere que

dentre outros objetivos, o legislador reformador buscou extinguir de vez o sistema do duplo-binário para os semi-imputáveis e imputáveis, adotando para os primeiros o modo vicariante ou unitário. Cabe ao juiz aplicar a pena com ou se a redução de um a dois terços (art., parágrafo único), ou substituir a pena por medida de segurança se o semi-imputável necessitar de especial tratamento curativo (art. 98). Aplicada a medida de segurança, o semi-imputável coloca-se na mesma posição dos inimputáveis.

Segundo Cataldo e outros (2006, p. 167),

a inimputabilidade para ser reconhecida exige a presença dos requisitos causal (doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado), cronológico (ao tempo da ação ou da omissão) e conseqüencial (inteira incapacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento).

Não basta, portanto, a causa, mas também o efeito é imprescindível, desde que ocorra ao tempo da ação ou da omissão.

Em relação aos semi-imputáveis, a lei furtou-se de definir com precisão o significado de semi-imputabilidade. Limitou-se, apenas, a apresentar um conceito negativo, deixando ao alvedrio do magistrado a verificação da condição de compreensão limitada do sujeito.

 

5. Medidas de segurança

Feitas tais considerações, passemos, pois, à análise das medidas de segurança, conseqüência costumeira àqueles que praticaram delitos e que possuem culpabilidade reduzida ou inexistente. Antes, porém, vai uma advertência: não se abordará aqui aquelas medidas de segurança ditas pré ou pós delituais, mas tão-somente as aplicáveis aos indivíduos de culpabilidade abalada total ou parcialmente.

Segundo Zaffaroni e Pierangeli (2008, v. 1, p. 731),

as medidas de segurança previstas no Código vigente referem-se tão somente aos inimputáveis (art. 26, caput) e às pessoas que se encontram numa situação de culpabilidade diminuída, prevista no parágrafo único do art. 26. A natureza das chamadas “medidas de segurança”, ou simplesmente “medidas’, não é propriamente penal, por não possuírem um conteúdo punitivo, mas o são formalmente penais, e, em razão disso, são elas impostas e controladas pelos juízes penais.

Para os mesmos autores, não se pode considerar penal um tratamento médico ou uma custódia psiquiátrica. Isso porque sua natureza nada tem a ver com a pena, sobretudo em relação às diferenças de objetivos e meios. Todavia, as leis penais impõem um controle formalmente penal e limitam as possibilidades de liberdade das pessoas, impondo o seu cumprimento, nas condições previamente fixadas que elas estabelecem, e cuja execução deve ser submetida a juízes penais.

Esse contexto implica grande restrição da liberdade dos indivíduos submetidos a tal espécie de controle, especialmente em razão da inexistência de limites precisos às medidas de segurança, sobretudo no que concerne à sua duração temporal. Mesmo diante de tudo isso, o cuidado dispensado pela legislação penal neste ponto é praticamente inexistente ou, ao menos, insuficiente.

As medidas de segurança estão previstas no art. 96 do Código Penal brasileiro. Duas são as espécies: internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou, à falta, em outro estabelecimento adequado e a sujeição a tratamento ambulatorial. Por outro lado, o art. 99 do mesmo diploma legal determina que o internado seja recolhido a estabelecimento dotado de características hospitalares e, portanto, distintas de estabelecimento penal comum.

Por outro lado, ante a dicção do art. 97 do CP, quando a pena cominada ao delito for de detenção, muito embora o inimputável deva ser internado, é facultado ao juiz submetê-lo a tratamento ambulatorial.

Como já referido anteriormente, a medida de segurança perdura enquanto persistir a periculosidade. Periculosidade, na visão de Zaffaroni e Pierangeli (2008, p. 732), no sentido de perigo para si ou para os outros, e não no sentido de probabilidade de prática de outros crimes. A verificação desta periculosidade deve se dar por meio de perícia médica, que se realiza ao final do prazo mínimo estabelecido pelo magistrado para a custódia de segurança (de um a três anos).

Todavia, Führer (2000, p. 165) possui um entendimento interessante a respeito da prescrição das medidas de segurança. Segundo o autor, se a sentença consignou a pena aplicável, antes de fazer a substituição pela medida de segurança, o prazo prescricional deverá ser calculado pela pena aplicada. Do contrário, se

o juiz não indicou a pena aplicável, efetuando desde logo a substituição pela medida de segurança, ter-se-á então de utilizar como índice a pena mínima cominada, porque não se pode inferir que a pena, se cabível, fosse superior ao mínimo legal (in dubio pro reo).

Cabe referir, ainda, que essas são as condições das medidas de segurança aplicáveis aos inimputáveis. Entretanto, ante o permissivo constante do art. 98 do CP, ditas condições podem ser estendidas aos semi-imputáveis, nas hipóteses em que o juiz entender que o condenado necessita de um especial tratamento curativo. Trata-se, nestes casos, do sistema vicariante, que, no entanto, deve igualmente respeitar as garantias fundamentais dos indivíduos.

Considerações finais

O estudo ora finalizado teve por objetivo analisar a inimputabilidade decorrente de doença mental. Para tanto, andou-se por caminhos e revelaram-se conceitos como culpabilidade, periculosidade, imputabilidade, doença mental e, por fim, medida de segurança, consequência jurídico-penal aplicável aos autores de crimes que possuem culpabilidade parcial ou inexistente.

A pena privativa de liberdade constitui a pedra angular do sistema penal brasileiro. Sua aplicação pressupõe a existência de culpabilidade, conceito que se baseia no livre arbítrio humano, e que tem como elementos a potencial consciência da ilicitude, a exigibilidade de outra conduta e a imputabilidade.

A definição de imputabilidade pode ser apreendida por uma análise negativa dos arts. 26, 27 e 18 do CP, que preveem as suas causas excludentes. Realizado tal procedimento, chegar-se-á à conclusão de que a capacidade de imputação jurídica de um fato penal requer a concorrência de dois pressupostos: o entendimento do caráter ilícito do fato e a autodeterminação em relação a tal entendimento. Tal entendimento significa a possibilidade de o indivíduo conhecer a natureza, as condições e a consequência do seu ato, o que supõe uma certa medida de lucidez, de cultura, de educação, ou seja, um distanciamento de qualquer influência patológica que possa dominar o seu ímpeto e impulsioná-lo a praticar o ato criminoso.

A doença mental aqui analisada interfere exatamente nesse aspecto: retira a capacidade de o sujeito entender o caráter ilícito do seu ato, bem como de agir em consonância com seu entendimento, seja ele juridicamente correto ou não.

A consequência jurídico-penal a esses indivíduos é a medida de segurança, que, no Brasil, não possui limite temporal legalmente estabelecido. O entendimento majoritário é no sentido de que perdura enquanto persistir a periculosidade. Todavia, não sufragamos de tal compreensão, vez que a entendemos em desconformidade aos preceitos constitucionais. Pensamos que o mais correto seria a realização de um cálculo de pena virtual, pensando-se o inimputável como imputável, e a conseqüente aplicação dos prazos prescricionais correspondentes.

Ademais, é questionável o entendimento da periculosidade como probabilidade da prática de novos delitos. Em verdade, tal compreensão não passa de um exercício de futurologia, sobretudo em razão da imprecisão dos métodos disponíveis para tal averiguação. Mais correta é a ideia de Zaffaroni e Pierangeli, que a compreendem como um perigo para si e para os outros.

Portanto, dentro de um modelo constitucional como o brasileiro, não há como defender um sistema de aplicação de medidas de segurança alheio aos princípios e garantias fundamentais. O fato de os inimputáveis serem portadores de uma enfermidade que lhes retira a completa compreensão do mundo não dá ao Estado o direito de lhes tratar de forma desumana. Mesmo porque, ao que parece, todos somos loucos, em maior ou menor medida, e bem por isso, todos somos seres dignos de respeito.

 

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[2] O Código Penal brasileiro, posteriormente à reforma de 1984, adotou a estrutura da teoria finalista da ação, que define a culpabilidade como reprovação incidente sobre o autor de um fato incriminado. Seus requisitos são a capacidade do sujeito, o conhecimento da ilicitude do comportamento e a exigibilidade de uma conduta diversa da praticada. Isto implica reconhecer um caráter normativo no conceito de culpabilidade, visto que do sujeito exige-se comportamento distinto do praticado, desde que possível na situação concreta.

Diego Alan Schofer Albrecht

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