Reflexões acerca da centralidade do valor trabalho no Brasil diante da conjuntura capitalista atual

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1- Introdução

O debate sobre o valor trabalho é extremamente instigante e atual, implicando múltiplas perspectivas. No presente artigo, privilegiou-se sua análise econômica, com intuito de ressaltar a essencialidade do trabalho, especialmente do emprego, na economia e na sociedade capitalistas.

 

2- Breve retrospectiva histórica sobre o valor trabalho no capitalismo. Síntese da avaliação crítica da hegemonia ultraliberal: considerações acerca da centralidade do valor trabalho na ordem capitalista contemporânea.

O capitalismo, a partir de seu nascimento e principalmente desde o início do século XIX, foi alvo de críticas que convergiam em torno da essencialidade do valor trabalho, em face do “efeito colateral” que o sistema causava, qual seja, a enorme desigualdade social.

Na primeira metade do século XX, na tentativa de atenuar/suprimir os efeitos desta maléfica consequência, que abria espaço especialmente para a ameaça socialista (Revolução Russa de 1917) e o avanço de partidos de fundo popular na Europa Ocidental, bem como diante do crack financeiro e econômico de 1929, vertentes reformistas-democráticas buscariam a adequação do sistema capitalista às demandas socioeconômicas e culturais. Entre essas vertentes, destaca-se a que cogitava um novo paradigma de Estado, o Estado de Bem-Estar Social (EBES ou Welfare State)2, que sintetizava, em sua variada fórmula de gestão pública e social, “a afirmação de valores, princípios e práticas consideradas fundamentais: democracia, valorização do trabalho e do emprego, justiça social e bem-estar.”3

No período especialmente compreendido entre o pós-guerra até o início da década de 1970, houve crescimento econômico associado ao desenvolvimento social, resultado da vigência dos Welfare States e da prevalência da orientação keynesiana de gestão econômico-social do capitalismo. Logo, por meio do trabalho, em específico, da sua forma regulada (relação de emprego), o sistema de produção capitalista descobriu uma modalidade de conexão específica dos indivíduos às necessidades organizacionais e produtivas do capital.4 Na estruturação da democracia social, “o trabalho assume caráter de ser o mais relevante meio garantidor de um mínimo de poder social à grande massa da população, que é destituída de riqueza e de outros meios lícitos de alcance desta”, posicionando-se no “epicentro de organização da vida social e da economia.”5

Importante ressaltar que embora o Brasil não tenha vivido a real experiência do EBES, aqueles valores então conquistados incorporaram-se à cultura jurídica, alcançando grande relevância nos princípios e regras da Constituição Federal de 1988.6

Todavia, diante de uma somatória de acontecimentos7, a partir de meados da década de 1970, no mundo, e pós-década de 1990, no Brasil, ganhou força um processo de desconstrução cultural do primado do trabalho e do emprego no sistema capitalista por meio da “internalização acrítica do pensamento ultraliberal”.8

A corrente ultraliberal propagou a insustentabilidade, a crise, o esgotamento, o declínio e até o fim do modelo do EBES, objetivando difundir a idéia de um novo paradigma na vida socioeconômica, não mais atrelado às noções e às realidades do emprego e do trabalho. Segundo essa corrente, também defendida por Friedrich Von Hayek e Milton Friedman, a permanência da noção de centralidade do trabalho e do emprego inviabiliza, drasticamente, a aplicação do receituário de império do mercado econômico, posto que ao concentrar todas as energias do Estado e da sociedade na gestão da moeda, resta menores espaços, iniciativas, recursos e energia para a geração de empregos e disseminação da renda nos respectivos países e economias.9

Neste panorama, o liberalismo readaptado (ultra ou neoliberalismo) advogou e advoga, em síntese, pelo “primado do mercado econômico privado na estruturação e funcionamento da economia e da sociedade, com a submissão do Estado e das políticas públicas a tal prevalência”, o que representa um genuíno contraponto ao “modelo multifacetado, normatizador e intervencionista do Welfare State.10Ainda, o pensamento liberal renovado também passou a se priorizar na gestão monetária da economia, o que repercutiria na hegemonia do segmento financeiro- especulativo do sistema11 e no favorecimento aos investimentos privados, o que, por sua vez, acarretaria, diretamente, programas de privatizações das empresas estatais e, de forma indireta, métodos de desregulamentação normativa generalizada.

A exacerbação do neoliberalismo apresentou atuação perversa em diversas linhas. Especificamente no mundo do trabalho, destacam-se como seus desdobramentos a redução do valor trabalho a um critério meramente utilitarista (impulsionador da precarização das condições de trabalho, por meio da flexibilização e da desregulamentação excessivas) e o desemprego contemporâneo, de caráter prevalentemente conjuntural.12

A falácia apregoada pela incorporação desta ideologia repercutiu especialmente na ampliação das inseguranças para a “classe-que-vive-do-trabalho” e na acentuação da divisão entre “os incluídos e os sobrantes”, num contexto completamente avesso à integração social, à distribuição de renda e à democratização social, cenário dominante vivido no mundo ocidental nos últimos trinta anos.

Assim, na atual conjuntura, persiste uma ineludível tentativa de desprestigiar a essencialidade do trabalho e do emprego, por meio de discurso extremado oriundo do pensamento neoliberal. Ocorre que esse discurso se desarticula frente a inúmeras fragilidades e equívocos que lhe são próprios, principalmente diante dos resultados desastrosos alcançados no campo social e econômico.13 Ainda, não foi capaz de criar fórmulas alternativas eficientes que assegurem inclusão social e econômica das grandes maiorias populacionais no âmbito do capitalismo, em contraponto à clássica centralidade do trabalho e do emprego.

O trabalho e, particularmente, a sua forma regulada – o emprego, continua sendo a principal forma de inserir o trabalhador na arena socioeconômica capitalista, de modo que lhe garanta um patamar consistente de afirmação individual, familiar, social, econômica e, até mesmo, ética. A centralidade do trabalho e do emprego no mundo atual se traduz numa fórmula eficaz de distribuição de riqueza, integração social e de um mínimo de poder na desigual sociedade capitalista, além de ser um dos mais relevantes (senão o maior deles) instrumentos de efetivação da Democracia na vida social.14

O capitalismo não precisa ser selvagem e funcionar sem peias, mas assim se encontra em razão da “reiteração da mesma matriz de suas políticas públicas principais.”15 Ao contrário, é plenamente possível um capitalismo com reciprocidade, que permita a sua adequação às demandas socioeconômicas e culturais, consolidando, assim, a Democracia nos planos social, econômico e político.

Mais uma vez, a história fornece o teste de veracidade. O capitalismo ocidental do século passado já comprovou que a centralidade (ou não) do trabalho e do emprego no sistema capitalista “desponta, essencialmente (embora não seja apenas isso, é claro) como uma escolha, uma perspectiva, uma decisão – qualquer seja o plano de conhecimento considerado (…)”16 – bem como que “o grau de sucesso da inserção das economias no mundo globalizado tende a ser diretamente proporcional a seu distanciamento do ideário ultraliberal.” 17

 

3- Conclusão

O capitalismo, pelo exercício e dinâmica de suas meras forças de mercado, é incapaz de associar crescimento econômico aos desenvolvimentos social e cultural, o que acaba por implicar concentração de renda, desigualdade, discriminação e exclusão sociais. Porém, a sua história atesta que esse cenário avesso à Democracia social é passível de ser controlado/atenuado e um dos caminhos se revela por meio da plena afirmação do trabalho e do emprego.

 

Referências Bibliográficas

DELGADO, Gabriela Neves. Direito fundamental ao trabalho digno. São Paulo: LTR, 2006.

DELGADO, Maurício Godinho. Capitalismo, trabalho e emprego: entre o paradigma da destruição e os caminhos de reconstrução. São Paulo: LTr, 2006a. 149p.

Direitos Fundamentais na relação de trabalho. Revista de Direito do Trabalho. São Paulo, vol. 32, n. 123, p. 142-165, jul./set. 2006b.

O Direito do trabalho e a crise econômica atual. Disponível em:

<http://ext02.tst.jus.br/pls/no01/NO_NOTICIAS.Exibe_Noticia?p_cod_noticia=9898&p_cod_area_noticia=ASCS&p_txt_pesquisa=Ministro%20Maur%EDcio%20Godinho%20>. Acesso em: 26 out. 2009.

Relação de emprego e relações de trabalho: a retomada do expansionismo do Direito do Trabalho. In: SENA, Adriana Goulart de; DELGADO, Gabriela Neves; NUNES, Raquel Portugal (Org.) Dignidade Humana e Inclusão Social: caminhos para a efetividade do direito do trabalho no Brasil. São Paulo: LTR, p. 17/33, 2010.

DELGADO, Maurício Godinho; PORTO, Lorena Vasconcelos. O Estado de Bem-estar Social no capitalismo contemporâneo. In: DELGADO, Maurício Godinho; PORTO, Lorena Vasconcelos (Org.) O Estado de Bem- Estar social no século XXI. São Paulo: LTR, p. 19/30, 2007.

MELLO, Roberta Dantas. A crise mundial de 2007/2009 – o recente colapso do paradigma neoliberal. Reflexões e perspectivas para o mundo do trabalho. In: Congresso Ltr – 50º Congresso Brasileiro de Direito do Trabalho. 2010. São Paulo. Jornal do 50º Congresso Brasileiro de Direito do Trabalho. Disponível em: <http://www.ltr.com.br/web/jornal/direitodotrabalho.pdf>. Acesso em: 1 set. 2010.

 

2A implementação do EBES representou uma das maiores conquistas da democracia, no mundo ocidental capitalista, por meio da qual o mundo viveu os chamados “anos dourados”.

3 DELGADO, Maurício Godinho; PORTO, Lorena Vasconcelos. O Estado de Bem-estar Social no capitalismo contemporâneo. In: DELGADO, Maurício Godinho; PORTO, Lorena Vasconcelos (Org.) O Estado de Bem- Estar social no século XXI. São Paulo: LTR, 2007. p. 22.

4 DELGADO, Maurício Godinho. Relação de emprego e relações de trabalho: a retomada do expansionismo do Direito do Trabalho. In: SENA, Adriana Goulart de; DELGADO, Gabriela Neves; NUNES, Raquel Portugal (Org.) Dignidade Humana e Inclusão Social: caminhos para a efetividade do direito do trabalho no Brasil. São Paulo: LTR, p. 17/33, 2010.

5 DELGADO, Maurício Godinho. Capitalismo, trabalho e emprego: entre o paradigma da destruição e os caminhos de reconstrução. São Paulo: LTr, 2006a. p.29.

6 A CR/1988 enfatiza, repetidamente, a valorização do trabalho (v. “Preâmbulo”, “Princípios Fundamentais”, “Direitos e Garantias Fundamentais” – arts. 6º e 7º, “Ordem Econômica e Financeira” – art.170, “Ordem Social – art. 193). Nos comandos constitucionais, a noção de trabalho traduz-se “em princípio, fundamento, valor e direito social.” No entanto, urge salientar que a referência a essa noção de trabalho conduz, essencialmente, à valorização do trabalho regulado, ou seja, “aquele submetido a um feixe jurídico de proteções e garantias expressivas. No caso da história do capitalismo ocidental, inclusive no Brasil, a regulação mais abrangente e sofisticada do trabalho situa-se no emprego e sua relação sócio-econômica e jurídica específica, o vínculo empregatício.” DELGADO, Maurício Godinho. Direitos Fundamentais na relação de trabalho. Revista de Direito do Trabalho. São Paulo, vol. 32, n. 123, p. 142-165, jul./set. 2006b.

7 Em destaque: as crises fiscal do Estado e do petróleo nos anos de 1970, o recrudescimento do desemprego, a terceira revolução tecnológica, a acentuação da concorrência internacional, a reestruturação empresarial, a incapacidade conjuntural das políticas públicas então dominantes (de natureza keynesiana) de enfrentar, com resultados rápidos, a estagflação despontada naquela época.

8 DELGADO, Maurício Godinho. Capitalismo, trabalho e emprego: entre o paradigma da destruição e os caminhos de reconstrução. Op. cit.

9 Em outras palavras, a economia e a política do Welfare State seriam insustentáveis, principalmente, porque inviabilizariam o controle da inflação, bem como porque seriam gerados excessivos custos, tanto na esfera do governo (em virtude das políticas públicas e sociais), quanto na privada (em decorrência do pleno emprego).

10DELGADO, Maurício Godinho. Capitalismo, trabalho e emprego: entre o paradigma da destruição e os caminhos de reconstrução. Op. cit.,,p.21.

11 A predominância do capital-financeiro especulativo age de forma avassaladora em várias frentes, em que se destacam: a instigação pela mantença do elevado patamar dos juros no conjunto da economia (garantindo-se remuneração privilegiada ao universo de credores-financeiros), a insistência na preservação de políticas redutoras dos investimentos públicos (diretos ou indiretos) e a destruição do aparelho público de prestação de serviços e de intervenção do Estado. Idem.

12 Para melhor compreensão e aprofundamento do caráter conjuntural (em contraponto ao estrutural) do desemprego contemporâneo, v. DELGADO, Maurício Godinho. Capitalismo, trabalho e emprego: entre o paradigma da destruição e os caminhos de reconstrução. Op. cit.

13 Impossível não mencionar nesse contexto o desastre econômico mundial de 2007/2009, fruto da filosofia e do receituário desregulamentadores. DELGADO, Maurício Godinho. Relação de emprego e relações de trabalho: a retomada do expansionismo do Direito do Trabalho. Op. cit.

14 DELGADO, Maurício Godinho. Capitalismo, trabalho e emprego: entre o paradigma da destruição e os caminhos de reconstrução. Op. cit.

15 Idem. p.118/119.

16 DELGADO, Maurício Godinho. Capitalismo, trabalho e emprego: entre o paradigma da destruição e os caminhos de reconstrução. Op. cit.,, p.97.

17 DELGADO, Maurício Godinho; PORTO, Lorena Vasconcelos. O Estado de Bem-estar Social no capitalismo contemporâneo Op. cit.,, p.28.

Roberta Dantas de Mello

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