Reciprocidade internacional e direitos humanos

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Em recente e amplamente divulgado decisum proferido por juiz federal da Seção Judiciária de Mato Grosso[1], foi determinado à União Federal fotografar e recolher as impressões digitais dos nacionais dos Estados Unidos da América nos portos, aeroportos e rodovias, quando adentrarem em território brasileiro e fazer esforços, junto às autoridades norte-americanas, para que os brasileiros sejam eximidos de se submeter a tal tratamento.
Na fundamentação, o magistrado ponderou que considera “(…) o ato em si absolutamente brutal, atentatório aos direitos humanos, violador da dignidade humana, xenófobo e digno dos piores horrores patrocinados pelos nazistas”, embora reconhecesse que “dentro dos limites territoriais norte-americanos está ao alvedrio daquele Estado regulamentar a forma de entrada de alienígenas no espaço reservado à sua soberania”. Invocou, então, o princípio da reciprocidade, garantidor “de que o mesmo tratamento dado por um Estado a determinada questão também será concretizado por outro país afetado pela decisão do primeiro”.
Acreditamos que a polêmica decisão apresenta incongruências e merece uma análise mais detida e menos passional do que a conferida pela nossa mídia. Passemos, assim, a um circunstanciado escrutínio da fundamentação.
De fato, nenhum Estado soberano é obrigado, pelo Direito Internacional, a admitir estrangeiros em seu território, seja em definitivo, seja a título temporário. Ao admitir a entrada de estrangeiros, o país pode estabelecer determinadas condições[2] (por exemplo, a apresentação de passaporte ou carteira de identidade). É óbvio que tais exigências devam coadunar-se com limitações impostas pela ordem interna e internacional.
A primeira destas limitações, na ordem interna brasileira, pode ser encontrada na própria Constituição (CFB). A CFB faz uma inequívoca opção pelo respeito aos direitos humanos: a dignidade da pessoa humana é um fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, III) e a prevalência dos direitos humanos deve reger nossas relações internacionais (art. 4º, II)[3]. Nenhuma autoridade brasileira (mesmo um juiz), sob qualquer pretexto, pode autorizar qualquer “ato (…) brutal, atentatório aos direitos humanos, violador da dignidade humana, xenófobo e digno dos piores horrores patrocinados pelos nazistas”, sem incorrer em flagrante desrespeito à CFB.
Salienta que o texto constitucional não fala em prevalência dos direitos humanos de brasileiros, mas, simplesmente, em direitos humanos, o que nos desautoriza a violar direitos humanos daqueles que não são nossos nacionais. Ademais, somos signatários das principais convenções internacionais de Direitos Humanos e de tratados que especificamente reconhecem direitos a estrangeiros (Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, Convenção Americana sobre Direitos Humanos, Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Convenção de Havana sobre Direito dos Estrangeiros)[4].
            Portanto, confrontando a decisão à nossa ordem jurídica interna e internacional, temos de aceitar uma das seguintes conclusões: (1) que esses atos “são absolutamente brutais e atentatórios aos direitos humanos” apenas quando praticados por estrangeiros contra nós, ou (2) que os atos não configuram violação de direitos humanos, contrariamente ao que entendeu o juiz, ou, por fim, (3) que estamos diante de uma ordem judicial manifestamente inconstitucional.
            Um outro aspecto que merece atenção é a equivocada recorrência ao princípio da reciprocidade no intuito de fundamentar a implementação da medida. De acordo com o princípio da reciprocidade, quando um Estado invoca um direito, reconhece-o para outros países.[5] Faz-se pertinente, então, uma indagação: estamos diante de um direito que queremos ver reconhecido para dele usufruir ou de um ato que intencionamos repudiar?
            Quando ocorreu a Revolução Islâmica no Irã, a Embaixada Americana naquele Estado foi invadida e todos que lá se encontravam foram feitos reféns. Uma possível resposta americana seria a invasão e encarceramento dos diplomatas iranianos nos Estados Unidos. Destarte, outras medidas foram tomadas (dentre elas a proposição de ação na Corte Internacional de Justiça e o congelamento de bens iranianos nos Estados Unidos)[6].
            Ao adotarmos similar medida, mormente invocando o princípio da reciprocidade, estamos, indubitavelmente, reconhecendo a legalidade e o acerto da mesma. Quando inquirida acerca da decisão brasileira de tirar fotografias e impressões digitais dos americanos que entram em nosso território, Ana Hutchison, porta-voz do Departamento de Segurança Interna norte-americano (que é o responsável pela adoção da medida nos Estados Unidos), respondeu que “achava natural e dava boas-vindas a países que queriam garantir sua segurança”[7]. Em outras palavras, Hutchinson tratou a medida como respaldo e não como um ato de repúdio.
            Há menção, na sentença, de uma incumbência constitucional de se agir nos limites do princípio da reciprocidade: “(…) a Magna Carta não compactua com a omissão das autoridades brasileiras nesse sentido, porquanto lhes confere o dever legal de agir nos exatos limites ditados pelo principio da reciprocidade”. O problema é que a CFB, em seus 250 artigos (e nos 75 das disposições constitucionais transitórias) menciona a reciprocidade apenas três vezes: art. 12 (portugueses), art. 178 (ordenação do transporte internacional) e art. 52 das disposições constitucionais transitórias (instalação, no País, de novas agências de instituições financeiras) e nenhuma delas tem a mínima correlação com o caso em tela.
            Menos razoável ainda, como já abordamos anteriormente, seria inferir que há uma autorização (ou um dever legal) constitucional implícita de aplicar a lei de Talião (carinhosamente apelidada de princípio da reciprocidade, na r. decisão) aos nacionais na hipótese de tratamento por nós considerado incompatível com normas de Direitos Humanos.
            Existem, ainda, outras questões que mereciam ser, pelo menos, tangenciadas. A primeira é uma contextualização. É inegável que os Estados (em parte por culpa própria, alguns poderiam dizer) vivem sob a tensão e a iminência de ataques terroristas. Podemos fazer severas críticas aos métodos americanos de combate ao terrorismo, mas temos de reconhecer que a preocupação é legítima e que o perigo é real. A situação do Brasil, contudo, é bastante diferente e nossa pauta tem outras questões.
            Dentre outras, temos grande preocupação de atrair turistas. Recebemos cerca de dez vezes menos turistas do que os Estados Unidos. A Embratur investiu, apenas em 2003, R$ 32 milhões na promoção do país no exterior e captação de turistas. A medida deferida vai na contramão desse esforço, causando transtornos para aqueles que, em sua maioria, não tem conexão com a adoção da medida em seu país e que, na condição de turistas, trazem divisas para o nosso.[8] Assim, é no mínimo discutível a assertiva do juiz que “a medida deferida não acarreta qualquer prejuízo à Requerida” (União). Há grande probabilidade de se afetar (negativamente) o turismo e, sem dúvida, foi necessário aumentar o número de policiais federais nos aeroportos e providenciar material (máquinas, filmes, fichas, etc.) para implementa-la, o que implica ônus para a União.
            Talvez o correto seria dizer que “a medida ora deferida não acarreta qualquer benefício à Requerida”, pois não se vislumbra qualquer vantagem para o Brasil com a adoção dessa imposição.
            Uma outra consideração é que a medida adotada nos Estados Unidos atinge os nacionais de todos os 150 (ou mais) países que necessitam de visto para entrar lá e os nacionais de 27 outros Estados, que não necessitam de visto (exemplicativamente: Austrália, Brunei, Canadá, Nova Zelândia e Cingapura), caso não estejam na condição de turistas ou se forem ficar por mais de 90 dias. Na hipótese de permanecer por mais de 90 dias ou de portarem visto de estudantes ou de trabalho, também os australianos e canadenses são “monitorados”. Há aí um discrímen que mereceria maior explicação pelas autoridades americanas. Mas, se compararmos, a decisão brasileira é mais contundente na discriminação: atinge exclusivamente americanos, deixando de fora nacionais de mais de 170 países.
            Um outro aspecto é o procedimento propriamente dito e sua implementação. A imprensa trouxe notícias de enormes esperas nos aeroportos brasileiros e até de fichamento equivocado de canandenses[9]. O nosso processo levou, em média, seis minutos no primeiro dia de sua implantação, enquanto o similar americano leva 15 segundos. Alguns fatores podem explicar a diferença: nos Estados Unidos houve tempo para se prepararem (cerca de um ano), aquisição de aparelhamento adequado, treinamento de agentes, testes, etc. No Brasil, a decisão, datada de 28 de dezembro, determinava sua aplicação a partir do primeiro dia de janeiro seguinte. Tamanha urgência, caracterizadora de um periculum in mora, foi explicada, na decisão, nos seguintes termos: “Existem turistas indo e vindo entre os dois países e apenas os brasileiros estarão submetidos, a partir do dia 1º de janeiro de 2004, ao vexatório ato de entrada e saída dos Estados Unidos”.
            Tínhamos, portanto, de agir rápido, sem qualquer preparação, para podermos submeter visitantes a um “vexatório ato”. Acabamos também nos expondo a vexame, mostrando, desnecessariamente, desorganização e despreparo.
            O Brasil deve buscar tratamento digno a seus nacionais no exterior. Mas não pode fazê-lo em desatenção a preceitos fundamentais da ordem jurídica interna e internacional e sem qualquer discussão e planejamento, culminando em ato que se assemelha muito mais à impensada e despropositada bravata do que à efetiva aplicação do direito ao caso concreto.
 
 
Aziz Tuffi Saliba
Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais
Mestre em Direito pela University of Arizona
Professor da Universidade de Itaúna – Minas Gerais
 


[1] O presente comentário se refere ao deferimento, pelo Juiz da 1ª Vara Federal da Seção Judiciária do Estado de Mato Grosso,  de pedido de medida liminar formulado nos autos da Ação Cautelar Inominada nº 2004.36.00.000011-0/MT, proposta pelo Ministério Público Federal, em desfavor da União Federal. Na ocasião, publicamos este texto na Revista Jurídica Consulex n. 168 de 15 de janeiro de 2004.
[2] BROWNLIE, Ian. Principles of Public International Law. 5ª ed. Oxford: OUP, 1998, p. 522 e REZEK, Francisco. Direito Internacional Público. 8ª ed., São Paulo, Saraiva, 2000, p. 184-185.
[3] BRASIL. Constituição da República Federativa.
[4] Todos os textos normativos mencionados estão disponíveis em SALIBA, Aziz. Legislação de Direito Internacional. 3ª ed. São Paulo: Rideel, 2008.
[5] BYERS, Michael. Custom, power and the power of rules. Cambridge: CUP, 1999, p. 89.
[6] D’AMATO, Anthony. Is International Law really “law”? Northwestern Law Review, Chicago, 1985, v. 79. Disponível em < http://anthonydamato.law.northwestern.edu/papers-1/recent%20articles.html#international%20law >. Acesso em 01/12/2003.
[7] EUA: o Brasil é um país soberano. Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 3 de janeiro de 2004, p. A8.
[8] Neste sentido foi a manifestação do prefeito do Rio de Janeiro, César Maia, que em nota distribuída à imprensa considerou a decisão judicial “um erro grave contra o turismo brasileiro”, “desastrosa”, “uma retaliação burra, que nos prejudica e não traz qualquer benefício ao país”. In: Fichar americanos é uma burrice, diz Maia. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 3 de janeiro de 2004, p. A8.
[9] LIMA, Kelly. O Estado de São Paulo, Confusão na identificação de americanos no Rio. São Paulo, 5 de janeiro de 2004. Disponível em < http://www.estadao.com.br/agestado/noticias/2004/jan/04/64.htm >. Acesso em 6 de janeiro de 2004.

Aziz Tuffi Saliba

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