O paradoxo da escravidão no desenvolvimento da amazônia

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RESUMO

Este artigo1 tem o objetivo de analisar o trabalho escravo utilizado em propriedades rurais da Amazônia Legal, após o golpe militar de 1964. Para isso, redefine conceitos concernentes à escravidão, enfrentando-os sob o enfoque contemporâneo, à luz do que dispõe o art. 149 do Código Penal Brasileiro. Por meio de revisão bibliográfica, reflete sobre a ligação existente entre o modelo de desenvolvimento implementado pelos militares e a generalização de práticas repressivas em relação à mão de obra na região. Explora também as estratégias adotadas por cada um dos principais atores envolvidos no problema, enfatizando desigualdades sociais preexistentes. E, finalmente, analisa o papel do Poder Judiciário quanto aos desdobramentos dessa questão.

Palavras-chave: Trabalho escravo; Desenvolvimento; Amazônia

ABSTRACT

This article focuses on the analysis of slave work in rural areas in the Legal Amazon region after the 1964 military coup.For this reason it redefines the concepts involving slavery contrasting it with the contemporary focus as seen on Article 149 of The Brazilian Penal Code.By bibliography revision it reflects about the connection between the model of development implanted by the military and the generalization of the repressive actions against the work force in the region.It also explores the strategies adopted by each of the main factors involved in the problem,emphasizing the pre-existing social discrepencies.Finally it also analyses the role of the Judiciary power in the resolution of the ongoing probems in the region.

Key Word: Slave work; development; Amazon; military coup.

INTRODUÇÃO

A sociedade – em função de seu dinamismo intrínseco – altera sua concepção de mundo, seus valores, e juntamente com todo esse processo os vocábulos podem ganhar novos contornos. Dessa forma, o trabalho escravo tratado neste artigo não é aquele abolido pela Lei Áurea, mas sim sua nova versão – hoje regulamentada principalmente pelo art. 149 do Código Penal Brasileiro.

A escravidão contemporânea tem novas características, pois aqueles que se beneficiam da força de trabalho não são legalmente donos dos explorados e nem os mantêm permanentemente em suas propriedades. Além disso, não vão às localidades de origem dos trabalhadores para sequestrá-los. Esse processo é feito de outra forma, explorando-se a fragilidade humana com a promessa de melhores condições de trabalho. A escravidão, portanto, é sazonal, e os “patrões” não necessitam preservar a vida daqueles que são subjugados, uma vez que eles podem facilmente substituí-los. (MARTINS, 2009).

Ademais, não se vê mais grilhões, porque a coação se dá de outras maneiras, sendo a mais comum a coação moral – aquela realizada através do endividamento. Com efeito, as cidades de origem dos escravizados normalmente são cidades muito pobres, com população de pouquíssima escolaridade, o que facilita a ação dos aliciadores – muitas vezes conhecidos como “gatos”.

Os “gatos”, contratados por grandes empresários para obterem mão de obra barata, vão (em geral) a cidades do Nordeste e iniciam o aliciamento dando um adiantamento aos contratados. O “abono”, como é chamado esse tipo de adiantamento, muitas vezes é deixado pelo trabalhador com sua família e serve, na maioria dos casos, para firmar o compromisso de trabalho e dar início ao processo de endividamento (SILVA, 2008).

Consequentemente, a dívida – iniciada com o abono – só aumenta ao longo da viagem, pois tudo é cobrado do aliciado – desde a passagem até gastos com alimentação e hospedagem.

Inicia-se o chamado “endividamento compulsório” porque além dos gastos anotados ao longo do percurso, quando os trabalhadores chegam ao posto de trabalho, são realizadas novas dívidas. Estas se materializam a partir da cobrança de instrumentos de trabalho, remédios, alimentação durante o período da empreitada – assim como quaisquer outros produtos necessários.

E como os locais de prestação de serviço costumam ser de difícil acesso, mesmo após a chegada, os trabalhadores continuam adquirindo tudo que precisam por meio dos contratantes. Isso dá margem ao superfaturamento dos preços, criando “as correntes invisíveis da dívida” (SILVA, 2008, p.213).

Aliado a esse sentimento de honra pessoal, de compromissos assumidos perante o contratante, pode-se constatar ainda coações de ordem física e psicológica que impossibilitam o rompimento da relação de trabalho. São exemplos desses outros tipos de coação a restrição da capacidade de ir e vir dos trabalhadores, na maioria das vezes caracterizada por meio de vigilância armada nos locais de prestação de serviço, ameaças de todo tipo, retenção de documentos e objetos pessoais.

Mas não é só isso que caracteriza a escravidão contemporânea. A legislação nacional, através do art. 149 do CPB, considera como condição análoga à de escravo quem submete pessoas a trabalhos forçados, jornadas exaustivas, condições degradantes de trabalho, ou restringe, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o próprio empregador ou seu representante.

Além disso, enquadra nessa mesma tipificação quem cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, quem mantém vigilância ostensiva no local de trabalho e quem se apodera de documentos ou objetos pessoais do empregado no intuito de retê-lo no local da prestação do serviço.

Essa definição – fruto de uma alteração legislativa realizada em 2003 – procurou, segundo a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania2, não esgotar todas as hipóteses de situações escravagistas contemporâneas, e sim enumerar as ocorrências mais comuns – a fim de facilitar a criminalização das condutas por meio de um tipo penal bem assinalado.

Isso porque, desde que se intensificou a discussão a respeito do tema, um dos principais problemas apontados foi a generalidade da letra da lei ao falar em “condição análoga à de escravo”. Em razão de não se ter em mente uma definição específica do que seria esse tipo de condição, existiam confusões entre o tipo penal e o sequestro ou cárcere privado.

Cerqueira e Figueira (2008) apontam que alguns pesquisadores nas décadas de 70 e 80 estudaram as políticas de desenvolvimento implementadas no Brasil e os conflitos entre empregadores e trabalhadores decorrentes, utilizando uma infinidade de termos. Apontam que Octavio Ianni, Fernando Henrique Cardoso e Geraldo Müller falavam de “peonagem” e “aviamento” no Norte do País como “semi-escravidão”, enquanto Moacir Palmeira falava da “morada” no Nordeste como “cativeiro”.

Já Neide Esterci e José de Souza Martins, ao tratarem de “peonagem”, utilizavam o termo “escravidão”, embora em alguns momentos a primeira tenha se utilizado de termos como “imobilização dos trabalhadores”, enquanto o segundo se utilizou do termo “trabalho sob coerção”.

A dificuldade do consenso sobre os termos existia também no âmbito do Judiciário e se traduzia em baixíssimas ações judiciais, com fulcro no art. 149 do CPB – fato que começou a mudar somente com a alteração legislativa de 2003.

Daí Esterci e Figueira (2008) ressaltarem que o acordo em torno do conceito de trabalho escravo foi algo que se construiu aos poucos, tendo aparecido primeiramente em documentos e projetos do Estado, para só depois ser incorporado de vez à legislação.

A discussão foi então seguida por outra controvérsia: a questão da competência para o processamento e julgamento das ações criminais que versavam sobre trabalho escravo. A Justiça Federal entendia que o delito do trabalho escravo era apenas uma violação de direitos trabalhistas – não atentando contra a organização do trabalho de um modo geral.

Tal entendimento – depois de muito questionado – foi revisto pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que, através de seu informativo nº 450, decidiu ser da Justiça Federal tal competência, já que reduzir pessoas à condição de escravos fere o princípio da dignidade da pessoa humana e da liberdade do trabalho – tratando-se, sim, de crime contra a organização do trabalho.

Assim, superadas tais questões, o Brasil passou a adotar uma acepção mais específica do que seria “reduzir alguém à condição análoga à de escravo”. E, paralelamente, houve também um maior engajamento da Justiça nos julgamentos – o que resulta no encaminhamento da discussão à análise de cada hipótese prevista no artigo 149 do CPB.

EM NOME DO “DESENVOLVIMENTO”

A Amazônia Legal abarca a totalidade dos Estados do Acre, Amazonas, Roraima, Rondônia, Pará, Amapá, Tocantis (região Norte), parte do Estado do Maranhão (região Nordeste) e a totalidade do Estado de Mato Grosso (região Centro-Oeste) – correspondendo a aproximadamente 5 milhões de km² e 60% do território nacional. Ela foi criada pelo Decreto-Lei 5173/66 e pela Lei Complementar 31/77, art. 45, ainda no governo militar, como forma de delimitação territorial para políticas de desenvolvimento – completando-se o seu território com a promulgação da Constituição de 1988 (Sant’ana Júnior, 2004).

Dentro da sua área, além da grandeza da biodiversidade e recursos naturais, encontra-se também a maior incidência histórica de trabalho escravo do país, com destaque para os Estados do Pará e Mato Grosso. Os casos concentram-se especialmente no chamado “arco do desflorestamento” e começaram a ser denunciados ainda na ditadura militar, quando esta lançou o Plano de Integração Nacional para desenvolver a Região.

Esterci (1994) destaca que desde a década de 60 já circulavam na imprensa notícias de escravidão, aliciamento e venda de trabalhadores como mercadorias, não faltando denúncias contra fazendeiros e grandes empreendimentos. A Polícia Federal, então, realizava operações e divulgava resultados que – a partir de determinado momento – passaram a comprometer o País e o tipo de desenvolvimento que estava sendo implementado.

Recursos e obras públicas estavam sendo vinculadas a denúncias de trabalho escravo, e o Governo, não querendo ter sua imagem abalada, passou a negar as denúncias, ligando-as a simples transgressões trabalhistas.

A noção de “desenvolvimento” implementada na Amazônia Legal se associava à modernidade, a avanços científicos e a crescimento econômico. Foi importada dos EUA e teve origem com a vitória dos norte-americanos na 2ª Guerra Mundial. Isso porque os americanos lançaram, com o Governo do Presidente Truman, um pensamento referente às “áreas subdesenvolvidas”, associando-as àquelas que necessitariam de evolução e, a partir daí, o “desenvolvimento” foi reduzido à ideia de crescimento da renda per capita (Esteva, 2000).

Sant’ana Júnior (2004) observa que, após o golpe de 1964, a industrialização da região Centro-Sul foi fomentada concomitantemente com um Plano de Integração Nacional financiado pelo capital financeiro. A ideia era ocupar a região Amazônica para evitar investidas estrangeiras no território, diminuir a pressão por Reforma Agrária – principalmente do Nordeste – e utilizar os recursos naturais para abastecer as demandas do parque industrial em expansão.

Os militares incorporaram o discurso elaborado pelos EUA de Segurança Nacional, ligando-o à ideia de desenvolvimento. Por isso, a meta era crescer economicamente, sintonizando a política econômica à norte-americana. E, para isso, investiram em eixos rodoviários, Hidrelétricas e Agrovilas – construídas para abrigar os novos colonos na Região Amazônica. Concederam também incentivos fiscais a grandes empresários para estimular empreendimentos agropecuários e industriais. Mas, como as vilas colonizadoras tiveram pouquíssima assistência, quem acabou se beneficiando foram os grandes projetos privados ligados à agropecuária, monocultura agrícola, mineração e atividade madeireira. (Buclet, 2008)

Martins (1994) lembra que nesse momento a ditadura desconsiderou as diversas tribos indígenas e a população camponesa ali residente, sendo contraditória, já que propôs o povoamento a partir da agropecuária – atividade que requer pouca mão de obra e grandes extensões de terra sem povoamento. Ademais, chama atenção para a opção política do governo ao propor a associação de oligarquias fundiárias com grandes empresários.

Para o autor, o governo deixou claro sua opção de concentração de terras nas mãos de poucos, pois destes tinha o apoio social necessário à manutenção do poder. E os empresários – contando muitas vezes com a conivência de instituições como a justiça e a polícia –, sem grandes problemas, escravizaram trabalhadores e expulsaram de suas terras os camponeses que ali se fixaram muitos anos antes.

Figueira (2004) trata do assunto afirmando que o Estado se fez presente ao construir a estrada Belém-Brasília, ao abrir pistas de pouso e decolagem de aviões – fazendo surgir em Conceição do Araguaia uma circulação de riqueza antes inexistente -, mas que continuou omisso quanto às questões sociais locais.

Segundo esse raciocínio, enfatiza que muitas leis foram violadas, muitos conflitos por terra foram desencadeados e muitas relações de trabalho exploratórias foram utilizadas por fazendeiros, pois não houve um Estado presente e fiscalizador. Essa ausência fez aumentar a violência na região e ampliou demasiadamente a utilização do trabalho sob coerção – já presente na Amazônia desde a época do boom da borracha -, assim como em outras regiões do Brasil em períodos anteriores.

A OIT (2007), por tudo isso, chama atenção para o fato de que, na Região da Amazônia Legal, nem sempre as autoridades significaram proteção para aqueles que estavam sendo explorados e queriam denunciar. Havia sempre um risco para os trabalhadores que fugiam e procuravam segurança nos postos policiais, porque algumas vezes seus membros auxiliavam fazendeiros e “gatos” na captura de peões – e isso suscitou no imaginário destes o medo de prestar queixa.

Pelas razões aduzidas, convém ressaltar as contribuições de Sardan (2005) ao tratar o desenvolvimento como uma arena – um projeto no qual os diversos atores envolvidos jogam cada um à sua maneira e segundo seus próprios interesses. Nessa perspectiva, embora se reconheça que trabalhadores, posseiros, latifundiários, membros dos poderes governamentais, ONGs, dentre outros atores, possuam papéis e recursos distintos e desiguais, em um projeto de desenvolvimento normalmente há algum tipo de manobra disponível a todos.

Diz Sardan (2005) que a inevitável discrepância entre o que foi planejado e o resultado prático de um projeto de desenvolvimento é meramente conseqüência das diferentes formas pelas quais os atores manipulam o projeto, de maneira que este se desenvolva segundo suas vontades.

Daí afirmar que – apesar de alguns terem mais recursos que outros – até mesmo o mais empobrecido tem ainda a possibilidade de se recusar a fazer aquilo que se espera dele ou até mesmo de ele agir segundo sua própria consciência, influenciando na execução final do projeto.

Por fim, adverte o autor da importância de se estudar as estratégias que cada grupo envolvido adota, bem como de se saber a diversidade dos códigos sociais e das normas de comportamento que servem de referência aos envolvidos, pois tais fatores também influenciam na operacionalização do que foi planejado.

GRUPOS SOCIAIS E ESTRATÉGIAS

A arena política sublinhada por Sardan (2005) e as diversas estratégias adotadas por grupos sociais afetados pelo trabalho escravo foram alvos de vários pesquisadores que debateram sobre as diversas formas de resistências, conivências, negociações e ameaças envolvendo todos os atores dos empreendimentos desenvolvimentistas da Região Amazônica pós-golpe militar.3

Assim, o primeiro ator identificado foi o próprio Estado. Dele partiu o projeto de desenvolvimento e integração nacional, os financiamentos e incentivos fiscais dados aos fazendeiros e também a omissão. Esta pode ser exemplificada, por exemplo, na negativa da existência oficial de trabalho escravo até 1995, na falta de combate à grilagem de terras e na ausência de apoio aos camponeses e colonos instalados na região.

Com relação aos motivos que faziam o governo negar oficialmente o trabalho escravo, pode-se destacar o seguinte: o Brasil havia incorporado à legislação nacional diversas normas internacionais – de combate ao trabalho escravo e formas análogas – incompatíveis com a peonagem; a escravidão estava sendo utilizada para garantir a força de trabalho necessária à implementação dos projetos governamentais; e o modelo repressivo dificultava a organização e mobilização dos trabalhadores, diminuindo a pressão por uma reforma agrária ampla e irrestrita (Esterci, 1994).

O governo estava articulado à lógica do sistema capitalista internacional, por isso a economia movimentava-se segundo as leis do mercado, pela ampliação do consumo e pela lógica do lucro, não havendo destaque – naquele momento – à questão dos direitos humanos ou combate a formas coercitivas de trabalho.

Velho (1979) explica o movimento do povo nordestino em direção à Amazônia a partir do estudo sobre a perda do prestigio político e econômico do Nordeste frente ao Centro-Sul e do efeito das secas periódicas. Diz que a “plantation” criou um tipo específico de força de trabalho acostumado com repressão e imobilização que, após sua decadência, começou a formar grandes excedentes emigratórios para as grandes cidades do País, forçando o Estado a intervir nesse processo.

Naquele momento, portanto, o papel do Estado foi no sentido de redirecionar o foco da migração, retirando-o do Centro-Sul e desviando-o para regiões do País supostamente vazias e improdutivas. Para o autor, estava-se diante da lógica do capitalismo autoritário, observada mais claramente quando o então Ministro da Fazenda Delfim Netto afirmou que “a terra e o trabalho que possuímos são de certa maneira o nosso “capital”; o que precisamos fazer não é destruí-los, mas combinar e mobilizá-los” (Velho, 1979, p.202).

O projeto de desenvolvimento seria lógico, desde que todos os envolvidos seguissem um roteiro específico – o que de certo não ocorreu -, pois em um sistema de recursos e oportunidades, cada um atua conforme seu interesse. (Sardan, 2005)

E é o interesse individual que explica, em parte, a posição adotada pelos fazendeiros na cadeia de exploração do trabalho humano. Considerando-se “pioneiros”, produtivos e geradores de renda, os fazendeiros falam dos peões como preguiçosos, marginais, que precisam de ocupação para não haver invasões de terras. (Figueira, 2004).

Então, a desqualificação moral dos subordinados é a primeira justificativa utilizada para legitimar o sistema coativo – muitas vezes estabelecidos em paternalismos. A segunda, já de ordem econômica e cultural, alega ser impraticável o respeito às regras trabalhistas e penais na Amazônia, sob o argumento de que há falta de trabalhadores disponíveis, baixa produtividade dos empreendimentos e ausência de documentação pelos contratados. A impressão que se quer passar é de uma cultura local da informalidade (Figueira, 2004).

Com relação às estratégias utilizadas pelos fazendeiros para não remunerar sua mão de obra temporária, a título de exemplo, há o caso em que os patrões deliberadamente criam alguma situação que irrite os seus trabalhadores ao final da safra, de modo que estes terminem brigando. Denunciada por Sindicalistas do Mato Grosso, as confusões eram estimuladas como forma de se aplicar uma espécie de “justa causa”, autorizadora da demissão sem pagamento das verbas devidas. (Esterci, 1994).

Velho (1979), por sua vez, ao tratar da estratégia mais comum por parte dos fazendeiros, qual seja, a contratação através do regime de empreitada, fala que esta se generalizou principalmente a partir de 1963, quando se aprovou o Estatuto do Trabalhador Rural. Isso porque os fazendeiros passaram a não querer “sustentar” os trabalhadores em suas terras, só desejando as contratações por períodos curtos e por meio de intermediadores. Os empreiteiros, como são chamados os intermediadores, seriam os responsáveis pelo cumprimento do trabalho acordado, garantindo a prestação do serviço sem vínculo empregatício ou outros direitos trabalhistas com o Tomador.

Esse regime diminuía custos, pois retirava do fazendeiro a responsabilidade por eventuais direitos trabalhistas devidos. Mas o receio da perda da terra para os trabalhadores – em razão de uma possível reforma agrária – e a possibilidade de se limitar a renda paga pela terra arrendada, também foram fatores que contribuíram para acelerar a prática.

A adoção generalizada da empreitada, desse modo, foi conseqüência das alterações legislativas que vinham sendo realizadas, na medida em que serviu para tentar anular a conquista do movimento de trabalhadores rurais. (Velho, 1979)

Além disso, no que tange especificamente à utilização de trabalho escravo nas fazendas, tornou-se muito comum a negativa da relação empregatícia e a alegação de desconhecimento do problema por parte dos tomadores de serviço, com base na “distância” produzida pelo contrato de empreitada. A ideia, nesse caso, é afastar a responsabilização do dono do empreendimento tanto no âmbito da Justiça do Trabalho quanto na esfera penal.

Mas essa estratégia costuma fracassar. Primeiro, porque a alegação de desconhecimento mostra-se incoerente, quando a fazenda é flagrada várias vezes reincidindo no crime – o que é muito comum. Segundo, porque normalmente cabe ao dono da fazenda determinar quais serviços serão executados. As ordens podem ser dadas diretamente aos trabalhadores, aos empreiteiros ou através de gerentes. Em todos os casos, porém, o risco é assumido pelo dono da fazenda e sua omissão em fornecer condições dignas de trabalho aos prestadores de serviço é considerada dolosa, comprovando a materialidade e autoria do crime previstos no art. 149 do CPB.

Por fim, como a grande maioria dos escravizados são contratados para a derrubada da mata e formação dos pastos, suas atividades são essenciais ao empreendimento, sendo, conseqüentemente, ilícita a intermediação da mão de obra.

Outra questão relevante consiste no papel desempenhado pelos empreiteiros. A eles, em geral, cabe aliciar os trabalhadores, utilizando laços sociais já consolidados ou falsas promessas. Martins (1994) afirma que basicamente o que fazem é transferir trabalhadores de áreas com alto índice de desemprego para áreas necessitadas de mão de obra. E, nesse processo, vale enganar, reprimir, iniciar um endividamento, e até comprometer a família, tornando-a cúmplice do aliciamento e da escravidão.

Assim, como ponto de partida, os empreiteiros agem como aliciadores de mão de obra e, num segundo momento, já na fazenda, como responsáveis pelo cumprimento integral do serviço acordado.

Para tanto, dividem os trabalhadores em grupos, fiscalizam suas tarefas e cuidam para que não fujam até o fim da empreitada. Normalmente são auxiliados por outros funcionários da fazenda, tais como cantineiros, motoristas e seguranças. Sua capacidade econômica não costuma diferir muito daqueles a quem ajuda a explorar. O destaque está na eficiência, na liderança que exercem sobre os demais, a fim de garantir o cumprimento do serviço empreitado no menor tempo possível e com baixo custo (Figueira, 2004).

Mas quem são os trabalhadores escravos? Vieira (2008), referindo-se ao sul e sudeste do Pará, os divide em três grupos: moradores, migrantes e peões do trecho.

Portanto, são “moradores” aqueles que vivem na mesma Região em que são recrutados, ainda que na maior parte das vezes tenham nascido no Maranhão, Tocantis ou Piauí. Essas pessoas migraram para o Pará em busca de terra e emprego. Mas sem qualificação ou dinheiro, acabam se fixando nas periferias das cidades, trabalhando em serviços braçais temporários para a subsistência da família.

Os “migrantes” costumam ter a mesma origem dos “moradores”. Mas, a princípio, a viagem ao Pará é apenas temporária – fruto de algum aliciamento. Sem trabalho ou renda em suas cidades, deslocam-se ao Pará normalmente no período da entressafra para ganhar um “dinheiro extra” e diminuir os gastos em casa, pois, assim como os “moradores”, possuem vínculos familiares fortes e consolidados.

A preferência, nesse caso, se dá por jovens do sexo masculino, solteiros, analfabetos e filhos de camponeses – perfil mais fácil de se aliciar. Os jovens muitas vezes não querem reproduzir a vida de seus pais. Todavia, sem qualificação, acabam se tornando presa fácil dos “gatos”. Além do mais, há a ideia do desafio e da aventura fora do domínio familiar, que faz a viagem parecer mais atraente.

Por fim, existem os “peões do trecho”, pessoas que saíram há muitos anos de suas cidades de origem, perdendo o contato regular com familiares e amigos. Sem um grupo de referência permanente, vivem em pensões, deslocando-se conforme as oportunidades de trabalho.

Todos esses trabalhadores, apesar das limitações, possuem suas estratégias – agrupam-se a partir de relações sociais preexistentes, para ter mais segurança; buscam uma maior proximidade com o “gato” pelo mesmo motivo citado anteriormente; negociam saídas quando insatisfeitos; e tentam comunicação com parentes quando se sentem ameaçados. Normalmente – de certa forma – legitimam o padrão coercitivo do trabalho, mas, quando se veem em situação que extrapola o limite do tolerável, podem reagir com greve, rebelião ou até mesmo fuga. (Esterci, 1994)

Como ressalta Figueira (2004), para os peões sem vínculos sociais ou códigos morais rígidos, a fuga pode se dar durante o próprio percurso da viagem de aliciamento, após o recebimento do adiantamento – seja em razão de golpe, seja em razão do conhecimento das péssimas condições de trabalho a que ele seria submetido. A fuga, porém, é medida extremada, existindo outras mais sutis, tais como a “não-compreensão” quando divergem dos cálculos do pagamento, utilização de ameaças recíprocas e má execução das tarefas.

Portanto, a realidade traçada em relação à posição desempenhada por cada um dos atores citados acima nos permite fazer um link à compreensão de Sardan (2005) acerca do conceito de “arena política”. Isso porque a dinâmica de relacionamento entre Estado, fazendeiros, aliciadores e trabalhadores revela muito bem a intrincada configuração suscitada pelo interesse de cada personagem dentro de um contexto de um projeto de desenvolvimento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho escravo contemporâneo, da maneira como foi regulamentado em nossa legislação, começou a ser delineado e intensificado a partir do Golpe Militar de 1964. Por meio do Plano de Integração Nacional, os militares buscaram contornar os problemas da seca e da concentração de terras no Nordeste, ao mesmo tempo em que propunham viabilizar a integração e o desenvolvimento da Amazônia Legal para suprirem uma demanda interna por matérias-primas.

Como forma de implementar essas políticas, estimularam o povo nordestino para irem à referida região, sem, no entanto, garantir a esse contingente de pessoas a infraestrutura necessária para o trabalho e a moradia – condições essas que deveriam ser garantidas pela presença efetiva do Estado.

O desfecho desse cenário foi exatamente o de facilitar a escravização desses trabalhadores, uma vez que o governo privilegiava os grandes produtores rurais em detrimento dos migrantes que lá buscavam melhores condições de vida.

Essa realidade continua a existir na Amazônia, pois ainda hoje persistem as assimetrias históricas entre as regiões do Brasil, muito embora as políticas governamentais procurem mitigar questões socioeconômicas por meio de medidas como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, Bolsa-Família, o aumento da fiscalização pelo Ministério do Trabalho, entre outras políticas.

Dentro desse contexto, alguns outros atores – além dos que já foram citados neste artigo – ganham relevo no processo de combate ao trabalho escravo. Dois exemplos disso são as Organizações Não-Governamentais e a Comissão Pastoral da Terra – movimentos que desempenham função paralelamente ao Estado e, na falta de recursos deste, atuam também complementando-o.

Além disso, o fato de o Brasil ter reconhecido oficialmente a existência do trabalho escravo em seu território marcou uma mudança de postura importante quanto à imagem da nação no cenário internacional. O País passou a fiscalizar as propriedades por meio do Grupo Especial Móvel de Fiscalização, que conta com equipes – compostas por Auditores Fiscais do Trabalho, Procuradores do Trabalho e Policiais Federais – aptas a apurar denúncias e autuar infratores.

Essa e outras iniciativas, tais como o Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo, a criação da Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo e o cadastro de empregadores flagrados utilizando mão de obra escrava, sinalizam um caminho acertado e possível para o enfrentamento e contenção de um emaranhado de problemas de múltiplas causas.

Desnecessário dizer, porém, que o enfoque dessas políticas – apesar de serem bem-vindas – tem por escopo essencial a mitigação de sintomas, e não necessariamente o equacionamento das causas. É evidente, no entanto, que um governo precisa atuar em duas frentes.

Primeiro, enfrentando realisticamente os problemas já identificados e que já se materializaram, o que em certo grau já vem acontecendo; e, segundo, arquitetando estratégias calcadas em perspectivas de médio e longo prazos, a fim de diminuir e contornar o máximo possível desafios de ordem mais estrutural e sistêmica.

Complementando e finalizando, portanto, o que foi dito acima, é imprescindível se destacar a importância do diálogo entre os mais variados atores da sociedade no atual estágio de nossa democracia – como já vem acontecendo entre governo, ONG´s, empresas, imprensa, entre outros -, porque é somente assim, por meio de um debate franco, que as políticas públicas passarão a verdadeiramente representar a totalidade da população brasileira, e não somente alguns segmentos historicamente beneficiados.

 

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1 A discussão exposta neste trabalho foi apresentada oralmente no XI CONGRESSO LUSO-AFRO-BRASILEIRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS – Diversidades e (Des) Igualdades, Salvador, 2011 e no I Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito, Rio de Janeiro, 2011.

2 Parecer do Relator, Dep. Júlio Delgado, pela constitucionalidade, juridicidade e má técnica legislativa, e, no mérito, pela rejeição dos Projetos de Lei nº 5693/2001, 6646/2002, 6934/2002, 194/2003, 368/2003, e 736/2003, e, pela constitucionalidade, juridicidade e técnica legislativa, e, no mérito, pela aprovação do PL 292/2003, apensado aos demais, com emendas.

3 Sobre o tema ver Velho (1979), Esterci (1994), Martins (1994), Figueira (2004).

4 Mestranda em Sociologia e Direito pelo PPGSD – Universidade Federal Fluminense/RJ

Marluce de Oliveira Rodrigues

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