Análise do instituto da súmula vinculante em face aos princípios constitucionais

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RESUMO

O presente artigo possui como objetivo analisar os diferentes posicionamentos dos juristas brasileiros acerca da ofensa ou não do instituto da súmula vinculante aos princípios da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, além de outros debates sobre o assunto, como o possível “engessamento” da jurisprudência causado com a aplicação obrigatória desse instituto.

Palavras-chave: Súmula Vinculante. Princípios Constitucionais. Supremo Tribunal Federal.

 

ABSTRACT

This article aims to analyze the different positions of brazilian jurists about the offense or not of the institute of binding precedent of the principles of the Constitution of the Federative Republic of Brazil of 1988, and other debates on the subject, as possible inflexibility of the jurisprudence caused with the mandatory application of this institute.

Keywords: Binding Precedent. Constitutional Principles. Supreme Court.

 

1. Introdução

A adoção da figura da súmula vinculante no ordenamento jurídico brasileiro ocorreu por meio da Emenda Constitucional n.º 45/2004, denominada de Reforma do Judiciário, e tornou-se pronta para ser aplicada por meio da Lei 11.417/2006, que disciplina a edição, a revisão e o cancelamento de enunciado de súmula vinculante pelo Supremo Tribunal Federal.

Súmula, conforme De Plácido e Silva (2004), indica a condensação de série de acórdãos, do mesmo tribunal, que adotem idêntica interpretação de preceito jurídico em tese, sem caráter obrigatório, mas, persuasivo, e que, devidamente enumerados, se estampem em repertórios.

Com a Emenda supracitada, as súmulas passaram a ser classificadas em vinculantes e não vinculantes, tendo, as primeiras, características de imperatividade e coercitividade. Desta maneira, foi mitigada a função meramente consultiva e facultativa da súmula para ter, em alguns casos, efeito vinculante, logo, obrigatório.

A importância da súmula vinculante na esfera jurídica nacional é inconteste, sendo certo que, por ser um instituto novo, sua implementação no ordenamento jurídico sempre traz dificuldades de aplicação e divergências doutrinárias; e o peso das vantagens e desvantagens dá-se em face de um aparente choque de princípios.

Embora já esteja consolidada a previsão legal do instituto em estudo, ainda há controvérsia doutrinária acerca do tema, especialmente no que tange à ofensa ou não da súmula vinculante aos princípios assegurados pela Constituição Federal.

Outra questão que gera polêmica entre os estudiosos do assunto diz respeito às implicações da aplicação da súmula no tocante à possibilidade de engessamento da jurisprudência, com o atrofiamento do livre convencimento judicial dos magistrados que atuam nas instâncias inferiores, o que poderia tornar o direito uma ciência estática, sem a admissão de divergências, ainda que fundamentadas.

O referencial jurídico do ordenamento brasileiro é essencialmente fundado na norma legal, de acordo com o princípio da legalidade disposto no artigo 5°, II da Constituição Federal de 1988. Assim, também se discute se a partir da edição das súmulas vinculantes nosso ordenamento será “ampliado” e seu referencial dar-se-á pelo binômio norma legal-precedente judiciário, importando conceitos do stare decisis do Common Law norte-americano, onde os precedentes jurisdicionais possuem força vinculativa dentro da jurisdição em que a decisão foi proferida.

Desse modo, o presente artigo busca investigar a legitimidade da figura da súmula vinculante no sistema jurídico brasileiro, com o escopo de verificar se há ofensa a algum princípio constitucional em sua aplicação.

 

2. Disciplina legal do instituto: o art. 103-A da CF e a Lei n.º 11.417/2006.

A súmula vinculante foi disciplinada no art. 103-A da Carta Magna, nos termos seguintes:

Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.

O parágrafo primeiro desse dispositivo estabelece que a súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.

Também é importante para o nosso estudo o parágrafo terceiro do art. 103-A, tendo em vista enunciar que do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal. Se julgada procedente, será anulado o ato administrativo ou cassada a decisão judicial reclamada, e determinado que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso.

Observa-se a exigência da observância de quatro requisitos cumulativos para a edição de súmula vinculante pelo Supremo Tribunal Federal, quais sejam: I – tratar-se de matéria constitucional; II – existência de reiteradas decisões do STF sobre essa matéria; III – constatação de controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a Administração Pública; IV – que a controvérsia cause grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica. Fundamental também é o quorum mínimo necessário para a aprovação da súmula, que é de dois terços dos seus membros.

A Lei n.º 11.417/2006, em seu art. 3º, estabelece os legitimados para provocar o STF para edição, revisão ou cancelamento de enunciado de súmula vinculante, não se restringindo aos legitimados para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade.

É relevante mencionar que por meio da Resolução 388/2008, o Supremo Tribunal Federal regulamentou o procedimento de edição, revisão e cancelamento de súmulas vinculantes, colocando fim no expediente de aprovação instantânea e não previamente anunciada dessas súmulas. Isso porque não vinha sendo observada a possibilidade de participação de terceiros com aptidão em contribuir para o debate das propostas concernentes às mencionadas súmulas, como amici curiae. Com o advento desta Resolução, todas as propostas de criação, revisão ou cancelamento de súmula vinculante deverão ser publicadas no Diário da Justiça, abrindo-se prazo de cinco dias para manifestação de eventuais interessados.

Expostos alguns conceitos e atribuições, ver-se-á os principais argumentos utilizados contra a edição de súmulas vinculantes, e outros posicionamentos favoráveis ao instituto. Alguns juristas pátrios afirmam que certos princípios constitucionais foram feridos com a implantação de tais súmulas, sendo, estas, inconstitucionais.

 

3. Os princípios constitucionais relacionados às súmulas vinculantes

Inicialmente, para melhor análise, faz-se necessário conceituar o que se entende no meio jurídico por princípios constitucionais:

Princípios Constitucionais são normas jurídicas caracterizadas por seu grau de abstração e de generalidade, inscritas nos textos constitucionais formais, que estabelecem os valores e indicam a ideologia fundamentais de determinada Sociedade e de seu ordenamento jurídico. A partir deles todas as outras normas devem ser criadas, interpretadas e aplicadas. (CRUZ, 2006, p.106)

A Emenda que trouxe à luz o instituto da súmula vinculante teve como principal objetivo a celeridade processual, visando à diminuição de inúmeros processos com o mesmo objeto que chegavam ao Supremo Tribunal Federal. No entanto, muito se questiona acerca dos princípios que podem ser violados com a exagerada valorização da agilidade na solução dos conflitos levados ao conhecimento do Judiciário, especialmente o da separação dos poderes, da livre convicção do julgador, do duplo grau de jurisdição, do acesso à justiça e do devido processo legal.

Analisar-se-á separadamente os princípios alvos de maior debate doutrinário no que tange à questão das súmulas vinculantes.

 

3.1. Princípio da separação dos poderes

O Princípio da Separação dos Poderes resulta de doutrinas políticas defendidas por diversos pensadores, dentre eles Aristóteles, Maquiavel, John Locke e Montesquieu, sendo este o autor da teoria separatista mais conhecida, publicada através da obra “Do Espírito das Leis”, de 1748. O sustentáculo das teorias separatistas do poder estatal era a proteção do cidadão em face ao arbítrio do Estado, por meio da criação de um sistema político-jurídico que possibilitasse uma contenção eficaz do exercício do poder.

Tal princípio está previsto no Título I, “Dos Princípios Fundamentais”, art. 2º da Constituição Federal, que dispõe: “São poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.”. Além disso, a Carta Magna protege essa tripartição consagrando-a cláusula pétrea fundamental (art. 60, §4º, III).

A organização dos três Poderes está disciplinada no Título IV da Constituição Federal, mas é certo que as funções estatais legislativa, executiva e judiciária se comunicam. Há as funções típicas e atípicas de cada Poder, tratando-se de uma divisão flexível das funções estatais, relacionadas ao conhecido Sistema dos Freios e Contrapesos, sendo conveniente falar-se em funções preponderantes, e não em funções exclusivas dos Poderes.

Em suma, é possível afirmar que a doutrina da separação dos poderes traduz-se, atualmente, em fórmula de organização da estrutura política estatal, mediante a qual as funções de governo são atribuídas a órgãos autônomos, mas sem exclusividade, de tal modo que é assegurado controle mútuo e um funcionamento harmonioso, que tende à realização da vontade política geral (ALEXANDRINO; PAULO, 2010).

Conforme clássica doutrina, as funções típicas do Poder Legislativo são legislar e fiscalizar, e as funções atípicas são administrar e julgar. A função típica do Poder Executivo é administrar, nela incluída não só a função de governo, mas também a função meramente administrativa, e as funções atípicas são a legislativa e a de julgamento, respectivamente através da expedição de medidas provisórias e do contencioso administrativo. Já o Poder Judiciário, além de sua função típica, jurisdicional, exerce atividades administrativas e normativas.

Um dos argumentos mais enfatizados pelos juristas contrários à adoção da súmula vinculante é que a conferência de poderes normativos a órgãos do Poder Judiciário violaria o Princípio da Separação dos Poderes, revelando incompatibilidade estrutural e funcional com o sistema jurídico vigente.

Afirmam os defensores deste entendimento que as súmulas vinculantes, nos moldes previstos pela Constituição, tornar-se-iam normas gerais e abstratas, configurando uma usurpação da função legislativa inerente ao Poder Legislativo.

Além disso, a súmula funcionaria como uma “super norma”, pois traria em seu conteúdo a interpretação final sobre leis já promulgadas e sua aplicação, possibilitando a ocorrência de uma “ditadura” do Poder Judiciário, fato que pode abalar toda e qualquer estrutura democrática estabelecida.

Por outro lado, os defensores do instituto em comento baseiam-se no fato de que a súmula vinculante “terá por objeto a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas” (art. 103-A, §1º, CF – grifo nosso), não sendo permitido ao Supremo Tribunal Federal editar qualquer súmula sem suporte legal. Esse pensamento é reforçado pelo art. 5º da Lei n.º 11.417/06, do qual se extrai que “revogada ou modificada a lei em que se fundou a edição de enunciado de súmula vinculante, o Supremo Tribunal Federal, de ofício ou por provocação, procederá à sua revisão ou cancelamento, conforme o caso.” (grifo nosso)

Desse modo, revela-se impossível a edição de “súmulas autônomas”, podendo ser citado o princípio da dependência da súmula em relação à legislação. Depreende-se daí que, no caso de modificação da legislação em que a súmula vinculante foi baseada, esta também deve ser alterada, seja através de revisão ou de cancelamento. Portanto, em última análise, o direito contido na súmula constitui direito advindo da legislação.

Defendem ainda que, com a adoção da súmula vinculante, não há interferência do Poder Judiciário no Poder Legislativo, já que esta não cria normas, e sim interpreta as já criadas pelo órgão competente e vincula obrigatoriamente esta interpretação aos titulares da atividade jurisdicional e à Administração Pública.

A respeito do tema, Pedro Lenza se manifesta nos seguintes termos:

[…] deve-se deixar bem claro que a PEC, nesses moldes aprovada, não fere a regra do art. 60, §4º, III (cláusula pétrea da Separação de Poderes). Isso porque a limitação do poder de reforma não se restringe à impossibilidade de alteração da matéria definida pela doutrina como ‘cláusula pétrea’. A regra deve ser lida no sentido de ser vedada não a reforma, mas a reforma ‘tendente a abolir’.

Reforçada, então, estará a regra da ‘separação de Poderes’, mitigada, nos exatos termos de interferência de um órgão em outro, sem, é claro, esgotar a autonomia natural (‘freios e contrapesos’). (LENZA, 2010, p. 516)

Além da influência do Poder Judiciário sobre o Legislativo, muito se tem comentado a respeito do exercício abusivo do Poder Executivo sobre o Poder Legislativo, devido à intensa edição de medidas provisórias e eventuais emendas constitucionais, exercendo função legislativa que seria exercida preponderantemente pelo Legislativo. Sendo assim, pode-se observar que atualmente há bastante interação entre os Poderes, e o instituto da súmula vinculante reforça essa ideia.

 

3.2 Princípio do livre convencimento motivado

O princípio da persuasão racional do juiz, como também é conhecido, é um princípio constitucional que assegura aos juízes decidirem sem sofrerem influência sobre a sua atividade judicante, e está previsto no art. 93, IX da Constituição Federal, bem como no art. 131 do Código de Processo Civil brasileiro.

O julgador decide apenas baseado nos elementos existentes no processo, mas os avalia de acordo com critérios críticos e racionais. “O juiz não é desvinculado da prova e dos elementos existentes nos autos, mas a sua apreciação não depende de critérios legais determinados a priori.” (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2008, p. 74.)

Vale lembrar que o convencimento deve ser sempre motivado, como determina o art. 93, IX da CF, devendo o juiz atentar-se às regras legais existentes e às máximas de experiência.

A relação deste princípio com as súmulas vinculantes diz respeito ao pertinente questionamento quanto à possibilidade do magistrado deixar de exercer seu juízo de valor sobre o caso concreto ante a obrigatoriedade da aplicação da súmula. Alegam os contrários à súmula vinculante que este é o princípio constitucional mais lesado com o advento do instituto.

Afirmam que as súmulas vinculantes engessam o sistema jurídico em torno dos entendimentos do Supremo Tribunal Federal, tornando o Direito estático e padronizado; sendo restringido, assim, o processo de dinamização do conhecimento. Com a súmula vinculante, o juiz torna-se mero técnico, cuja função é reproduzir de forma mecânica em cada caso o entendimento sumulado, ainda que não esteja convencido de que resultará na solução mais adequada ao conflito.

Ademais, a iniciativa de revisão das súmulas vinculantes é restrita, nao possibilitando ao juiz de primeira instância participar do debate, e muito menos as partes, tendo em vista que devem, primeiramente, levar seus conflitos ao conhecimento do juiz natural.

Outro problema que apresentam os que se posicionam contrários à súmula vinculante é que muitas vezes, não conhecendo os acórdãos e os debates geradores das mencionadas súmulas, os juízes as aplicam de forma descontextualizada dos fatos do processo, sem compromisso com os fundamentos de fato e de direito presentes nos acórdãos que lhes deram origem. Dessa forma, a súmula vinculante funcionaria como mero texto normativo. André Ramos Tavares menciona o assunto:

[…] a súmula não incorpora os casos concretos que formaram a ‘base’ para sua edição. E, sendo a vinculação apenas ao enunciado desta, os magistrados terão de proceder a uma operação mental de verificação do cabimento da súmula ao caso concreto que tenham perante si, bem como das normas aplicáveis a ele. (TAVARES, 2007, p. 108)

Vale lembrar que não há previsão de sanção especial ao magistrado que decidir contrariamente a entendimento presente em alguma súmula vinculante, salvo a previsão geral do art. 133 do Código de Processo Civil. Em razão disso, não é improvável pensar em um elevado número de reclamações contra atos e decisões contrários a enunciado de súmula vinculante, o que prejudicaria a tentativa de minimizar a morosidade na Justiça.

A adoção da súmula vinculante para a Administração Pública vai exigir a promulgação de normas de organização e procedimento que permitam assegurar a observância por parte desta dos ditames contidos na súmula sem que se verifique uma nova e adicional sobrecarga de processos – agora de reclamações – para o Supremo Tribunal Federal. (MENDES; COELHO; BRANCO, 2010).

Concluem que o fortalecimento moderno do juízo crítico e construtivo das decisões judiciais destoa por completo da dinâmica imposta pela aplicação das súmulas vinculantes.

Em outro viés, os juristas a favor do instituto argumentam que não se deve considerar violado o princípio do livre convencimento do juiz com a obrigatoriedade da aplicação da súmula vinculante, pois é preciso considerar que o magistrado não exerce o papel de mero aplicador da lei, e nem o de mero aplicador da súmula, já que cabe a ele o dever de analisar o caso concreto e decidir se deverá ser aplicada a súmula com efeito vinculante ou não. Na hipótese de chegar à conclusão de que dado caso não corresponde a um entendimento com vinculação existente, poderá decidir de maneira diversa à sumulada, desde que justifique e fundamente.

Entendem que, por ser o Supremo Tribunal Federal o legítimo guardião constitucional brasileiro, é correto que sua interpretação da Carta Magna seja seguida pelas demais instâncias do Judiciário. Ao serem permitidas divergências em questões já pacificadas pelo Supremo, a força normativa da Constituição da República também se torna frágil, em virtude da ausência de um órgão capaz de dotá-la da imprescindível coerção ao seu cumprimento pelos que se submetem a ela.

Pedro Lenza entende que:

No choque entre dois grandes valores fundamentais de igual hierarquia (‘colisão de direitos fundamentais’), parece ser mais condizente, diante da realidade forense pátria, a garantia da segurança jurídica e do princípio da igualdade substancial ou material, em vez da liberdade irrestrita ao magistrado nas causas já decididas e pacificadas no STF, ‘desafogando’, por consequência, o Poder Judiciário das milhares de causas repetidas. (LENZA, 2010, p. 516)

Independentemente do posicionamento adotado, é fato que a tendência atual das reformas brasileiras é no sentido de hierarquização das esferas judiciais, privilegiando-se a celeridade na solução das causas em detrimento da liberdade de convicção do julgador.

 

3.3 Princípio do duplo grau de jurisdição

O princípio do duplo grau de jurisdição indica a possibilidade de revisão, por via recursal, das causas já julgadas por juízes de primeira instância, garantindo, assim, um novo julgamento pelos órgãos de segundo grau.

Não se trata de um princípio garantido constitucionalmente de forma expressa, no Brasil, desde a República; mas a própria Constituição Federal atribui competência recursal a diversos órgãos da jurisdição (art. 102, II; art. 105, II; art. 108, II), e prevê, expressamente, em seu art. 93, III, órgãos judiciários de segundo grau sob a denominação de tribunais.

O Supremo Tribunal Federal, após muita controvérsia jurisprudencial e doutrinária, firmou orientação de que este princípio não é uma garantia constitucional na vigente Constituição Federal. No entanto, cabe ressaltar que, atualmente, há, no Tribunal, ministros que defendem a tese de que a garantia do duplo grau de jurisdição integra nosso ordenamento jurídico em razão do art. 8º, 2, “h”, do Pacto de São José da Costa Rica, tratado internacional incorporado ao ordenamento pátrio com fulcro no §2º do art. 5º da Constituição da República. (HC 88.420/PR, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 17.04.2007)

Os principais fundamentos desse princípio são quatro: a possibilidade da decisão de primeira instância ser errada ou injusta; a conveniência de dar ao vencido uma oportunidade para o reexame da sentença com a qual não se conforma; o fato do juiz de primeiro grau cercar-se de maiores cautelas no julgamento quando sabe que é possível a revisão de sua sentença pelos tribunais superiores; e a necessidade de exercício ao menos de um controle interno sobre a justiça e a legalidade das decisões judiciárias, tendo em vista que o Poder Judiciário não tem seus membros sufragados pelo povo (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2008).

Quanto à sua relação com as súmulas vinculantes, conforme os juristas que defendem o instituto, o efeito vinculante não traz nenhuma mudança na forma de atuação jurisdicional, nem tampouco impede o reexame por Tribunais Superiores de 2º, 3º e 4º grau, da sentença que reconhece ou nega a aplicação de um enunciado sumular, não ocorrendo nenhuma ofensa ao princípio em exame.

No entanto, há quem entenda que é notável a desarmonia entre esse princípio e o efeito vinculante das súmulas, pois não haveria utilidade alguma a interposição de recurso pela parte desfavorecida pela sentença que se relacione a conteúdo previsto em súmula vinculante, tendo em vista já ser previamente conhecida a decisão do Tribunal. Em decorrência disso, as provas do processo não seriam sequer analisadas pelo órgão de segundo grau para possível alteração da súmula, constituindo em grave ofensa ao princípio do duplo grau de jurisdição.

 

3.4 Princípio do acesso à justiça

Atualmente estão em destaque diversos princípios e garantias, e a idéia central a que converge toda a oferta legal e constitucional dessas garantias e princípios é justamente o acesso à justiça. Dispõe o texto constitucional que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (art. 5º, XXXV).

É possível afirmar que a Constituição Federal de 1988 representa o que há de mais moderno na tendência à diminuição da distância entre o povo e a justiça. Entretanto, com o advento das súmulas vinculantes, dentre outros institutos, este princípio pode estar sendo mitigado, na medida em que as partes podem ser estimuladas a não ajuizar ação alguma ante a existência de matéria jurídica indiscutível, constante de súmula com efeito vinculante, afastando o Poder Judiciário da solução da controvérsia.

Defendem os favoráveis ao instituto que a modificação ocorre apenas na forma como é prestada a tutela jurisdicional, não havendo prejuízo aos que dela necessitam, pelo contrário: acarreta numa melhoria da expectativa dos jurisdicionados que aguardam respostas para suas pretensões postas em juízo.

Essa melhoria é fundada na rapidez e eficiência que as súmulas vinculantes trazem aos julgamentos, proporcionando a celeridade e a efetivação do princípio da razoável duração do processo, além da maior previsibilidade na solução das demandas, garantindo, assim, o acesso à justiça.

 

3.5 Princípio do devido processo legal

O princípio do devido processo legal é de acepção bastante ampla, sendo interessante neste estudo principalmente o resguardo da garantia de contraposição de argumentos e provas nos processos judiciais.

Este princípio consubstancia uma das mais importantes garantias constitucionais do processo, e deve ser combinado com o princípio da inafastabilidade da jurisdição e com a plenitude do contraditório e da ampla defesa. Derivam dele, ainda, o princípio da motivação das decisões, do juiz natural, da só admissibilidade de provas lícitas no processo, dentre outros. (ALEXANDRINO; PAULO, 2010)

Modernamente, compreende-se na cláusula do devido processo legal o direito do procedimento adequado: o procedimento deve não apenas ser conduzido sob o pálio do contraditório, mas também ser aderente à realidade social e consentâneo com a relação de direito material controvertida. O procedimento deve ser cercado de todas as garantias necessárias para que os litigantes possam sustentar seus motivos, produzir provas e influir sobre a formação do convencimento do juiz. (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2008)

É necessário que o julgador leve em conta os argumentos trazidos pelas partes no julgamento, concedendo a oportunidade de participação dos destinatários da tutela jurisdicional nos processos em que figuram como litigantes. Na ausência disso, não há que se falar em contraditório e ampla defesa.

Desse modo, os juristas contrários à constitucionalidade das súmulas vinculantes argumentam que o processo de elaboração dessas súmulas não é democrático, pois os indivíduos afetados pelos seus efeitos não participam do seu processo de criação, nem podem discuti-las perante os juízes de direito, ao contrário do que ocorre no processo legislativo, que, ao menos formalmente, atende ao primado democrático.

Já os favoráveis ao instituto pensam que, por força do texto constitucional, as mencionadas súmulas não vinculam o Supremo Tribunal Federal, seu próprio editor, que poderá de ofício ou provocado pelos legitimados rever ou até mesmo cancelar o enunciado, não sendo defeso o debate. Ademais, um dos pressupostos objetivos para edição da súmula é que seja amparada em reiteradas decisões sobre matéria constitucional, então, já terá havido intensa participação dos jurisdicionados.

 

4. Do possível “engessamento da jurisprudência”

É controversa a ideia de que a súmula, ao dar força vinculante a determinado entendimento, causa o engessamento das posições jurisprudenciais, tornando o Direito estático e padronizado, dissonante da realidade.

Grande parte dos juristas pátrios entende não ser procedente o argumento de que a súmula vinculante impede mudanças que ocorrem por demanda do próprio sistema jurídico e da sociedade, pois há previsão constitucional de revisão e revogação dos seus enunciados. Além disso, a revisão da súmula oferece ao eventual requerente maiores oportunidades de superação do entendimento consolidado do que o sistema de recursos em massa, que são respondidos, também, pelas fórmulas massificadas existentes atualmente nos tribunais. (MENDES; COELHO; BRANCO, 2010).

No mesmo sentido entende Pedro Lenza: “A súmula vinculante introduzida pela Reforma do Judiciário mostra-se totalmente constitucional. Não há falar em engessamento do Judiciário, na medida em que está prevista a revisão dos enunciados editados.” (LENZA, 2008, p. 516).

O Ministro Sepúlveda Pertence compartilha deste ponto de vista, conforme afirmou em um pronunciamento perante a Câmara dos Deputados:

É muito mais fácil prestar atenção a um argumento novo, num mecanismo de revisão de súmula, do que num dos 5 ou 6 mil processos a respeito que subam num determinado ano ao Supremo Tribunal Federal, até porque a sentença que contém o argumento novo tem de ser sorteada, porque não dá para conferir mais do que por amostragem. (apud MENDES; COELHO; BRANCO, 2010).

 

5. Considerações Finais

Conforme exposto, as súmulas vinculantes foram admitidas no ordenamento jurídico brasileiro por meio da Emenda Constitucional n.º 45/2004, denominada de Reforma do Judiciário, e foram reguladas, principalmente, pela Lei 11.417/2006.

O tema ainda suscita relevante controvérsia doutrinária, estando a discussão bipolarizada entre os juristas pátrios. Se por um lado a súmula vinculante privilegia a segurança jurídica, a isonomia e a celeridade processual, por outro, sua aplicação pode acarretar ofensa a alguns princípios constitucionais, como o da separação dos poderes, o do livre convencimento motivado, do duplo grau de jurisdição, do acesso à justiça e do devido processo legal, além da possibilidade de engessar a jurisprudência.

Assim, em face de um conflito aparente entre princípios, a legitimidade das súmulas vinculantes no ordenamento jurídico brasileiro é questionada.

 

6. Referências Bibliográficas

CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 23ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2007.

CRUZ, Paulo Márcio. Fundamentos do Direito Constitucional. 2ª Edição. Curitiba: Editora Juruá, 2006.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 12ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2008.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 5ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2010.

PAULO, Vicente; ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Constitucional Descomplicado. 6ª Edição. São Paulo: Editora Método, 2010.

SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico, atualizadores: Nagib Slaibi Filho e Gláucia Carvalho. 24ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004.

TALAMINI, Eduardo. A regulamentação do processo das súmulas vinculantes pelo STF. Informativo Justen, Pereira, Oliveira e Talamini, Curitiba, nº 22, dez./2008, disponível em http://www.justen.com.br//informativo.php?informativo=22&artigo=394, acesso em 13/09/2011.

TAVARES, André Ramos. Nova lei da súmula vinculante: estudos e comentários à Lei 11.417 de 19.12.2006. São Paulo: Editora Método, 2007.

Daniela de Melo Crosara

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