A súmula vinculante na perspectiva de Ronald Dworkin

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RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo fazer uma análise crítica da súmula vinculante, tendo como base as teorias do jurista norte-americano Ronald Dworkin. Inicialmente será apresentada uma síntese sobre o conceito e os trâmites para a edição de referido instituto pelo Supremo Tribunal Federal. Em um segundo momento, a intenção será explicar as teorias de Dworkin, no que tangem a importância da interpretação no caso concreto e a relevância da utilização dos princípios no Direito, e demonstrar sua relação com a súmula vinculante, evidenciando, desse modo, que tal figura não colabora com o ideal de efetividade e justiça do ordenamento jurídico brasileiro.

Palavras-chave: súmula vinculante- interpretação- caso concreto- princípio- Ronald Dworkin

 

ABSTRACT

The present paper aims to make a critical analysis of binding precedent, based on the theories of U.S. jurist Ronald Dworkin. Initially we will present a summary of the concept and procedures for editing by the Supreme Court. In a second step, the intention will be to explain the theories of Dworkin, in regard to the importance of interpretation in the case of the use and relevance of the principles in law, and demonstrate their relationship to binding precedent, showing thereby that such a figure does not cooperate with the ideal of efficiency and fairness of the brazilian legal system.

Keywords: binding precedent- interpretation case- principles of Law- Ronald Dworkin

 

SUMÁRIO

Introdução

1. A súmula vinculante: aspectos gerais

2. Objetivos da súmula vinculante

3. As teorias Ronald Dworkin

3.1. A importância da interpretação no caso concreto e a relação com a súmula vinculante

3.2. A importância dos princípios e a relação com a súmula vinculante

4. A súmula vinculante tem mesmo o poder de vincular? O entendimento do Professor Doutor Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia.

Conclusão

Referências

 

Introdução

O objetivo deste artigo é realizar uma análise crítica do instituto da súmula vinculante, tendo como base as teorias do jurista norte-americano Ronald Dworkin. Tal temática é de inquestionável relevância na atualidade, eis que a súmula vinculante, que adentrou em nosso ordenamento jurídico através da Emenda Constitucional nº 45/2004, até hoje é assunto polêmico entre operadores do Direito de todo o país, havendo uma nítida distinção entre os que a consideram inconstitucional e os que a vêem como instituto que não afronta qualquer princípio de nossa Carta Magna.

Num primeiro momento será apresentado um panorama geral sobre a súmula vinculante, ou seja, é necessário que se esmiúce tal figura explicando o que de fato ela representa, e qual é o procedimento que deve observar o Supremo Tribunal Federal para a sua declaração.

É bastante pertinente também, apontar as finalidades do legislador ao instituir a súmula vinculante no ordenamento pátrio, quais sejam, garantir segurança jurídica e combater uma das maiores mazelas da Justiça: a morosidade, que impede os cidadãos que ajuízam demanda no Poder Judiciário de as terem julgadas dentro um lapso razoável de tempo.

Após a apresentação desses dois temas, chegamos ao ponto central do trabalho, que é explicar as principais teorias de Dworkin, concernentes à interpretação no caso concreto e a relevância dos princípios dentro do ordenamento jurídico, e posteriormente estabelecer a sua relação com a súmula vinculante.

Nosso escopo é demonstrar que tendo como referencial Ronald Dworkin, a súmula vinculante é um instituto que não viabiliza a segurança jurídica e tampouco colabora com nosso ideal de efetividade e justiça.

Após tratar desses temas, faremos um adendo, expondo o entendimento do Professor Doutor Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia, que em capítulo de sua obra Recursos Extraordinários no STF e no STJ, faz uma análise sobre o real poder de vinculação da súmula, eis que esta, assim como a lei, está sujeita a inúmeras interpretações por parte do julgador e também pelos demais operadores do direito.

Não é nossa pretensão esgotar o tema, visto que seria impossível, pois imensa é a sua abrangência, mas tratar, como o próprio título sugere, do instituto da súmula vinculante à luz das teorias de um dos maiores pensadores da atualidade, o jurista Ronald Dworkin.

Por fim, espera-se que este singelo trabalho possa, de alguma forma, contribuir para a melhor compreensão do assunto abordado e pesquisado, eis que se apresenta como um dos mais importantes do Direito na atualidade.

 

1. A súmula vinculante: aspectos gerais

A súmula vinculante é um instituto introduzido em nosso ordenamento jurídico através da Emenda Constitucional nº 45/2004. Trata-se de um enunciado do Supremo Tribunal Federal, versando sobre matéria constitucional, com efeito vinculante para os órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública Direta e Indireta.

É importante ressaltar ainda, que súmula não vincula o Poder Legislativo e nem o Supremo Tribunal Federal. Além disso, apesar de seu efeito vinculante, não há nenhuma previsão de sanção na legislação em caso de inobservância por parte daqueles que a ela deveriam obedecer.

O Pretório Excelso poderá, de ofício, após reiteradas decisões, declarar a súmula vinculante. Além dele, estão legitimados a propor a edição de referido instituto as mesmas pessoas autorizadas a ingressar com pedido de Ação Direta de Inconstitucionalidade (art. 103-A, § 2º da CF/88), e também o Defensor-Geral da União, os Tribunais Superiores, os Tribunais de Justiça dos Estados, os Tribunais Regionais Federais, os Tribunais Regionais do Trabalho, os Tribunais Regionais Eleitorais e os Tribunais Militares.

Para que a súmula seja aprovada é exigido um quórum de 2/3 dos Ministros do STF, o que significa, portanto, 8 votos favoráveis. Caso seja aprovada, é necessária a publicação no Diário Oficial. A súmula ainda pode ser revista ou cancelada, de ofício ou por provocação dos mesmos legitimados para propor sua edição.

Destaca-se ainda, que, as súmulas editadas entes da EC nº 45/2004, possuem caráter apenas persuasivo, se não passarem pelo procedimento previsto para a aprovação de súmula vinculante.

 

2. Objetivos da súmula vinculante

O primeiro e mais claro objetivo da súmula vinculante é combater a morosidade do Poder Judiciário, tendo como base o brocardo que diz: ubi idem ratio, ibi idem jus (onde houver a mesma razão, aplica-se o mesmo direito).

Existem ações com o mesmo fundamento que se repetem na Justiça, como por exemplo, as ações que pleiteiam declarar a ilegalidade da cobrança de taxa de assinatura, exigida por algumas empresas telefônicas. A finalidade das súmulas seria, desse modo, solucionar tais questões, para que pudessem os juízes de 1ª Instância segui-las, além de evitar a multiplicação de recursos.

A segunda finalidade seria garantir a segurança jurídica. Mas o que se entende por essa expressão tão utilizada no meio jurídico? Encontramos menção ao termo segurança jurídica na notável e antiga obra Leviatã, de Thomas Hobbes, que asseverava:

O que equivale a dizer: designar um homem ou uma assembléia de homens como representante de suas pessoas, considerando-se e reconhecendo-se cada um como autor de todos os atos que aquele que representa sua pessoa praticar ou levar a praticar, em tudo o que disser respeito à paz e segurança comuns; todos submetendo assim suas vontades à vontade do representante, e suas decisões a sua decisão (…) Cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembléia de homens, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações. Feito isto, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado,em latim civitas.1

Segundo Hobbes, a partir do momento em que os homens abdicaram de sua autodefesa, da possibilidade de fazer a justiça a seu próprio modo, deve o Estado garantir-lhes a segurança e a paz.

Já a Ministra do Supremo Tribunal Federal, Carmem Lúcia, entende segurança jurídica da seguinte forma:

A segurança jurídica é o direito da pessoa à estabilidade em suas relações jurídicas. Esse direito articula-se com a garantia da tranqüilidade jurídica que as pessoas querem ter; com a sua certeza de que as suas relações jurídicas não podem ser alteradas numa imprevisibilidade que as deixe instáveis e inseguras quanto ao seu futuro, quanto ao seu presente e até mesmo quanto ao seu passado.2

A explicação da eminente jurista se amolda de forma perfeita a institutos como o do direito adquirido e da coisa julgada. O que se buscaria com a súmula vinculante, todavia, seria tornar as decisões previsíveis, especialmente em casos onde a controvérsia é gritante.

Citamos como exemplo a questão da Hidrelétrica Belo Monte. O que se presenciou foi uma verdadeira guerra de liminares. Num momento era autorizado o seu licenciamento ambiental para horas depois tal decisão ser cassada por uma Instância Superior, sendo que tal movimento ocorreu inúmeras vezes.

Tal previsibilidade garante a segurança jurídica? Voltaremos a tratar do assunto no tópico a seguir.

 

3. As teorias de Ronald Dworkin

3.1. A importância da interpretação no caso concreto e a relação com a súmula vinculante

Ronald Dworkin, em sua obra Uma questão de princípio leciona que o Direito é uma atividade predominantemente interpretativa, e propõe que se busque em outros ramos do conhecimento técnicas de interpretação que possam auxiliar os operadores do Direito nessa tarefa que nem sempre se mostra fácil.

O professor da Universidade de Nova York esclarece ainda, que na Literatura já foram estudados e aplicados diversos métodos de hermenêutica que podem colaborar com os intérpretes do Direito. Nosso ponto de partida, nesse trabalho, será o que se conhece como hipótese estética.

Ensina Dworkin:

A interpretação de uma obra literária tenta mostrar que maneira de ler (ou de falar, dirigir ou representar) o texto revela-o como a melhor obra de arte. (…) A interpretação de um texto tenta mostrá-lo como a melhor obra de arte que ele pode ser…3

Usemos como exemplo o livro Crime e castigo, clássico da literatura mundial, de autoria de Fiódor Dostoiévski. Um crítico literário poderia dizer que o melhor ângulo para se apreciar essa obra é entendê-la como a história de um assassinato. Outro especialista no assunto faria uma análise ressaltando que o ponto forte de tal produção intelectual é a relação entre Rodion e Sonia. E por último, poderia o livro ser considerado uma investigação sobre o sentimento da culpa, já que o autor russo aborda muito bem o aspecto psicológico do protagonista.

Nesse momento, um leitor mais atento se pergunta: qual é a relação do exposto acima com o Direito? A resposta é simples: o intérprete do Direito age como um crítico de arte, ele decide qual é o melhor ângulo de se interpretar uma determinada lei, extraindo dessa o seu melhor sentido.

Há ainda que se observar que o artista e o crítico de arte possuem funções semelhantes: ambos criam e interpretam. Dworkin explica que o autor de uma obra, além de criar a mesma possui um entendimento do porque aquilo que está realizando pode ser considerado arte. A jovem judia Anne Frank, enquanto se escondia com a família da perseguição do regime nazista, no sótão de um estabelecimento comercial, redigiu um diário que, após ser lançado como livro, tornou-se uma das obras mais impactantes do século XX.

Embora a menina Anne não pudesse prever a importância de suas memórias, é certo que, em sua alma de adolescente, ela sabia o valor de seu relato, como um libelo contra o nazismo e qualquer manifestação de ódio ao outro. Nesse momento ela interpretava seus manuscritos. E o mesmo pode-se dizer em relação ao crítico que, embora esteja vinculado à obra de arte, também cria, pois é ele quem decide a melhor de forma de apreciá-la.

Ainda estabelecendo um paralelo entre Direito e Literatura, Dworkin, cria a metáfora do romance em cadeia, que ele explica da seguinte forma:

Suponha que um grupo de romancistas seja contratado para um determinado projeto e que jogue dados para definir a ordem do jogo. O de número mais baixo escreve o capítulo de abertura de um romance, que ele depois manda para o número seguinte, o qual acrescenta um capítulo, com a compreensão de que está acrescentando um capítulo a esse romance e não começando outro (…) Ora, cada romancista, a não ser o primeiro, tem a dupla responsabilidade de interpretar e criar, pois precisa ler tudo que foi feito antes para estabelecer, no sentido interpretativista, o que é o romance criado até então.4

Para tornar a idéia mais clara, propomos o seguinte exercício: imaginemos convidar três ícones da literatura latino-americana para que juntos escrevessem um livro. São eles: a chilena Isabel Allende, o colombiano Gabriel Garcia Marquez e o peruano Mario Vargas Llosa. Isabel seria a responsável pelo primeiro capítulo. Gabriel, ao receber o escrito, deverá estudar uma forma de conduzir os fatos juntamente com seus personagens. Feito isso, o vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 1982 entregaria o romance a Mario, que por sua vez será incumbido de fechar o enredo, dando um destino às situações anteriormente imaginadas por Isabel e Gabriel.

O Direito deve ser visto como um romance em cadeia, pois deve sempre acompanhar à sociedade que, por sua vez, está sempre em constante mutação. A figura do romance em cadeia, criada por Dworkin, traz em seu bojo a idéia de um Direito sempre em desenvolvimento, e cada juiz, ao analisar e decidir em caso concreto, escreve um novo capítulo dessa história.

O caso concreto, é dessa forma, importantíssimo para Dworkin. O Direito deve ser visto como uma integridade. Isso significa dizer que ele deve formar uma ordem de princípios coerentes e unidos entre si. E como encontrar essa integridade? Somente na análise do caso em questão.

O jurista supracitado cria então a famosa figura do juiz Hércules. Para encontrar a solução para um caso que lhe é apresentado, esse magistrado dotado de grandes virtudes, utiliza em primeiro lugar a Constituição, sabendo que esta tem como principais dogmas a liberdade e a igualdade. Desse modo deve a legislação infraconstitucional ajustar-se a tais princípios. Hércules analisa também todos os precedentes, julgados de casos similares para, desse modo, construir a teia inconsútil, que é o próprio Direito como uma ordem coesa e lógica.

Chegamos agora ao ponto nevrálgico: de que forma tais teorias se relacionam com a súmula vinculante? Em primeiro lugar, destacamos que a súmula vinculante afronta a independência do juiz de 1ª Instância, não permitindo que este aja como o crítico de arte proposto por Dworkin, pois o efeito vinculante do enunciado do STF o impede de extrair da lei aquilo de melhor que ela poderia oferecer ao caso apresentado a ele.

O magistrado é, de fato, vinculado à legislação. Entretanto, a interpretação que dará a ela, e o seu ajuste ao caso concreto, é uma decisão que pertence a ele, ainda que o Pretório Excelso seja o órgão máximo do Poder Judiciário. Não podemos transformar nossos julgadores em máquinas que apenas repetem exposições sumárias do Supremo Tribunal Federal.

É muito importante que o STF se manifeste em questões controvertidas, ou nos casos de multiplicação de ações com o mesmo fundamento, mas desde que isso sirva como uma orientação aos magistrados de 1ª Instância, não impedindo que, caso possuam entendimento diferente do Excelso Pretório, possam sentenciar de maneira diversa.

Além disso, ao transformarmos nossos juízes em robôs que apenas reproduzem o entendimento do Supremo Tribunal Federal, estamos impedindo que as partes de uma ação judicial tenham suas argumentações levadas em conta no momento da decisão. Isso não se ajusta de modo algum a idéia de Direito como uma integridade. Pois tal integridade só pode ser descoberta na análise de cada conjuntura.

A pergunta torna-se inevitável: qual é a segurança jurídica que almejamos? A previsibilidade das decisões ou o fato de nossas razões serem absorvidas pelo julgador e consideradas como a motivação para a sua sentença? Entendemos que a segunda proposição é a verdadeira segurança jurídica, pois garante que as alegações das partes sejam de fato observadas. E quando uma questão está sumulada com o efeito vinculante, o debate das questões torna-se inócuo e desnecessário, já que a decisão encontra-se pronta.

O enunciado do STF que restringe a atividade dos julgadores de 1ª Instância impede também que o Direito se desenvolva e acompanhe as mudanças do meio social. A súmula vinculante é um óbice para que o romance em cadeia ocorra, pois os juízes estão impedidos de escrever novos capítulos desse enredo. Para melhor exemplificar, utilizaremos uma entrevista do jurista Dalmo de Abreu Dallari, que comentou sobre árdua luta travada pelo reconhecimento da união estável. Vejamos:

Então, fui (Dalmo Dallarri) advogado dessa mulher, companheira de mais de 30 anos, tentando fazer que se reconhecesse que ela é que deveria ficar com a casa, porque na verdade ela tinha sido a companheira constante, de muitos anos, e tinha colaborado para a compra da mesma. E, no entanto, fui derrotado porque o juiz que julgou o caso entendeu que a lei não amparava, de qualquer maneira, a minha cliente. (…) E, assim como eu, outros advogados foram recorrendo e houve nos tribunais casos de obtenção de votos favoráveis. Quer dizer, no começo nós não ganhamos, mas tivemos votos favoráveis. Eram votos divergentes. A partir desses votos divergentes, foi havendo a adesão de outros desembargadores, de outros juízes e, afinal, a jurisprudência se tornou dominante. Então, dessa maneira, através da jurisprudência, se afirmou a necessidade, a justiça, de reconhecer direitos à concubina. E isso, hoje, consta da legislação brasileira, consta inclusive da Constituição. Mas começou com a jurisprudência divergente.5

Não se defende aqui que o juiz legisle, pois não é essa a sua atividade precípua. Mas em muitos momentos, para encontrar a solução justa para o caso, ele deve adaptar princípios de Direito às novas realidades que surgem. E que princípios seriam estes? Liberdade e igualdade, os direitos que dão origem a todos os outros, e que ao longo do tempo sofreram severas mudanças em suas concepções.

A questão da união estável encontra-se pacificada, mas outros debates espinhosos surgem com as alterações ocorridas no meio social. Recentemente o Superior Tribunal de Justiça reconheceu a possibilidade de uma criança possuir em seu registro civil, o nome das duas mulheres que a adotaram. Mais um capítulo da história do Direito foi escrito, e mais uma vez o Direito se adaptou para acompanhar uma transformação do grupo social que regula.

A súmula vinculante em nada contribui para a escrita dessa história, pois ela aprisiona juízes de 1ª Instância e também a jurisprudência dos Tribunais, impedindo a análise do caso concreto e a conseqüente evolução do Direito, que, estando engessado, não pode caminhar seguindo os mesmos passos que a sociedade.

 

3.2. A importância dos princípios e a relação com a súmula vinculante

Para que possamos entender a preocupação de Dworkin com a questão dos princípios, é imprescindível que primeiramente se apresente uma explicação do sistema jurídico proposto por H.L.A. Hart e posteriormente a crítica que o jurista norte-americano faz a ele. Quem nos explica é Neil MacCormick:

Um sistema jurídico, pelo modelo hartiano, compreende um conjunto de normas primárias mutuamente inter-relacionadas que regem os deveres de pessoas numa sociedade, e normas secundárias que dão a indivíduos em funções públicas ou privadas o poder de variar a incidência de todo o conjunto de normas, a alterar as normas ou a aplicar outras incluídas nesse conjunto. O que unifica o conjunto por inteiro formando um sistema é a existência de uma norma secundária que estabelece critérios para identificar todas as normas que pertencem a ele e que desse modo estipula o dever de autoridades de observar e fazer vigorar todas as outras normas.6

Uma das grandes críticas que Dworkin faz ao modelo de Hart é o fato de que tal sistema não comporta a utilização de princípios, eis que sua legislação é dotada de um grau de certeza que a torna absoluta, não dependendo, portanto, de nada além dela mesma para se chegar à solução de uma demanda apresentada ao Poder Judiciário.

E o que seriam princípios para Ronald Dworkin? O professor da Universidade de Nova York faz uma distinção entre argumentos de princípio em argumentos de política, conforme se nota no trecho a seguir:

Os argumentos de princípio são argumentos destinados a estabelecer um direito individual; os argumentos de política são argumentos destinados a estabelecer um objetivo coletivo. Os princípios são proposições que descrevem direitos; as políticas são proposições que descrevem objetivos.7

Os juízes, no momento de proferir a sentença, devem se basear em argumentos de princípio, pois caso tenham como esteio argumentos de política estariam agindo como legislador, e isso não é correto. O Poder Judiciário não pode usurpar funções do Poder Legislativo, tampouco os magistrados foram eleitos para se dedicarem à produção legislativa.

Contudo, a sociedade de hoje é composta por grupos de diferentes origens, raças, credos e culturas, que convivem entre si e tornam o meio social cada vez mais pluralista. Um sistema jurídico como o proposto por Hart, com seu âmago de certeza, seria viável atualmente? Seria ele capaz de prever todas as situações advindas de relações sociais tão complexas? A resposta nos salta à vista: não. Por isso o Direito é, como no título da célebre obra de Dworkin, uma questão de princípio!

Para Dworkin toda decisão passa pela aplicação dos princípios. Não é a proposta deste artigo, todavia, investigar quais princípios podem ser considerados princípios de Direito. Estamos tratando, conforme já mencionado anteriormente, dos dois grandes pilares do Direito: liberdade e igualdade. E mais uma vez ressaltamos: o juiz não irá legislar, mas apenas adaptar tais princípios às novas realidades que se apresentam na sociedade, para descobrir os reais direitos das partes envolvidas em um processo.

Passemos então a relacionar tal explanação com a súmula vinculante. Em primeiro lugar, tal instituto traz como características a generalidade e a abstração, o que lhe dá uma natureza de ato legislativo, e conforme explicitamos em linhas anteriores, não é função do Poder Judiciário legislar.

As súmulas vinculantes trazem ainda, um eixo de certeza que nos faz lembrar o modelo hartiano tão criticado por Dworkin, eis que esse não possibilita a utilização dos princípios de Direito para resolução do caso concreto.

Há ainda outra questão a ser observada: os princípios mudam de acordo com as alterações do meio social. Recordemos do caso “Rosa Parks” para exemplificar tal afirmação. Nos Estados Unidos dos anos 1950, era obrigatório que uma pessoa negra se levantasse de seu assento dentro dos chamados autocarros para proporcionar lugar a uma pessoa de pele branca.

Essa regra foi considerada absolutamente natural até o dia 1º de dezembro de 1955 quando, na cidade de Montgomery, capital do Estado do Alabama, uma senhora negra chamada Rosa Louise McCauley (conhecida como Rosa Parks) recusou-se a ceder o banco onde se encontrava sentada a uma pessoa branca. Rosa foi presa e multada. Porém, seu gesto fez suscitar um movimento conhecido como “Boicote aos Autocarros”, fazendo ganhar força também, a luta pelos direitos civis, da qual ela se tornou, inclusive, um símbolo.

É factível imaginarmos hoje uma sociedade racialmente segregada? A réplica é patente: não. Podemos constatar então, através do exemplo acima citado, que os princípios, de fato, se alteram drasticamente, pois a concepção que hoje temos de liberdade e igualdade é bem diferente do conceito que tais princípios possuíam há 50 ou 100 anos atrás.

O jurista italiano Paolo Grossi nos ajuda a entender a questão:

Um direito concebido como ordem é a própria trama da sociedade, quase uma rede que a sustenta impedindo o seu esfacelamento, é algo que provém do mesmo seio e que a segue no seu perene desenvolvimento em perfeita coerência e adesão, graças a sua índole naturalmente elástica.8 (grifo nosso)

A “índole naturalmente elástica” de que fala o mestre da Universidade de Florença nos faz perceber que o Direito tem de ser, em sua essência, flexível, pois assim é a própria sociedade, que vive em incessante volubilidade.

A súmula vinculante, com sua característica de rigidez, não permite que o magistrado na análise do caso concreto possa identificar alteração de um princípio. E mais uma vez voltamos à idéia do romance em cadeia. Se não é possível identificar as transformações, não se pode acompanhar o meio social, pois a súmula torna o Direito estático e imóvel, não possibilitando a este que cumpra seu principal papel: o de regular e servir à sociedade.

 

4. A súmula vinculante tem mesmo o poder de vincular? O entendimento do Professor Doutor Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia

Além das questões já examinadas por este artigo relativas à súmula vinculante, é de extrema importância ressaltar a análise do Professor Doutor Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia, em sua obra intitulada Recursos Extraordinários no STF e no STJ, no que tange à possibilidade da súmula vinculante ter variadas interpretações, assim como a lei.

Acompanhemos a lição do Prof. Alexandre Bahia:

Se uma súmula é um texto, como o são as normas, e nesse sentido específico, geral e abstrata, isso não faria com que ela padecesse dos mesmos problemas que estas? Problemas no seguinte sentido: diversidade de interpretação que gera diversidade de aplicação; ou será que uma súmula vinculante é mais “vinculante” que uma lei aprovada pelo Legislativo?9

O Professor Bahia toma por base a teoria de Hans Kelsen, segundo a qual toda lei gera uma moldura de interpretações possíveis. Do mesmo modo, a súmula vinculante também dá abertura para que a ela se atribua inúmeros sentidos.

A lei não tem um sentido unívoco, e o mesmo pode-se esperar da súmula vinculante. Seria ela tão perfeita a ponto de não gerar qualquer interpretação? A resposta é óbvia: não. Portanto, a sua tentativa de vincular não passa de mera pretensão.

Nesse sentido, finaliza o jurista mineiro:

Quando dizemos que o STF não deve pretender estabelecer a interpretação oficial não é somente porque tal pretensão não parece compatível com os postulados de democracia consagrados em nosso constitucionalismo, mas também porque é impossível tentar engessar a interpretação, porque a vida é muito mais rica do que qualquer tentativa de fechamento através de uma súmula vinculante.10

Desse modo, concluímos que, além dos problemas anteriormente apresentados pela súmula, a sua tentativa de vincular não pode encontrar sucesso, pois não há como impedir que a mesma seja interpretada e com a utilização dos mais variados métodos.

 

Conclusão

Este artigo teve por finalidade tratar do instituto da súmula vinculante tendo como referencial teórico as teorias do jurista norte-americano Ronald Dworkin. O que se nota, é que a súmula com efeito vinculante nasceu com o objetivo claro de conferir maior efetividade ao ordenamento jurídico brasileiro, evitando a multiplicação de recursos com o mesmo fundamento, sendo que tal previsibilidade das decisões nos proporcionaria a tão almejada segurança jurídica.

Contudo, a primeira pergunta que nos vem à mente é: a que custo serão alcançadas a segurança jurídica e a efetividade? Vislumbremos a parábola do jovem lenhador para melhor refletirmos a respeito da questão. Um jovem lenhador, em seu primeiro dia de trabalho, conseguiu cortar 100 árvores, sendo por este feito muito elogiado pelas pessoas de sua cidade que, proféticas, diziam: você será o maior lenhador de todos.

No dia seguinte, porém, ele conseguir derrubar 80 árvores, embora houvesse trabalhado mais que no dia anterior. Resolveu então, se empenhar cada vez mais, mas percebeu que seu rendimento só caía e decidiu então, pedir um conselho ao mais velho lenhador da região. Quando lhe contou sua situação, o sábio lhe disse: você tem trabalhado mais horas, mas quantas vezes nesse período você amolou seu machado?

Queremos uma Justiça rápida e eficaz, mas sem ajustar o Direito às novas realidades do meio social? Queremos que as decisões sejam previsíveis, tornando nossos juízes máquinas que apenas repetem o entendimento do Supremo Tribunal Federal, sendo proibidos de considerar as peculiaridades de cada litígio? Certamente não.

A súmula vinculante não trouxe eficácia, pois o sistema jurídico brasileiro ainda se encontra afogado pelo número excessivo de processos e a extensa duração da maioria deles. Não seria instituto introduzido pela Emenda Constitucional nº 45/04 que, sozinho, poderia resolver tal problema.

Em relação à segurança jurídica, nossa posição já foi estabelecida: não é a previsibilidade das sentenças que nos irá garanti-la, mas sim o fato de nossas razões serem tidas como a verdadeira motivação do juiz no momento da decisão.

Assim como o machado que precisa ser amolado para que o jovem lenhador obtenha sucesso em seu trabalho, o Direito deve estar atento à sociedade que visa regular, amoldando-se à mesma e percebendo suas mudanças. O Direito deve ser maleável como é um grupo social, e não um conjunto de regras imutáveis, que mais lembraria uma ciência exata do que humana.

É assim que cada magistrado poderá ser o autor de um novo capítulo da história do Direito e este último estará cumprindo a sua real função de prestar segurança jurídica à sociedade, nunca deixando de observar as características particulares de cada situação que lhe é apresentada.

É esse o papel que deve desempenhar o Direito, como a ciência social que é.

 

Referências

BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Recursos Extraordinários no STF e no STJ. Curitiba: Juruá, 2009.

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DANTAS, David Diniz. Interpretação constitucional no pós-positivismo, 2ª ed., rev. e atu. São Paulo: Madras, 2005.

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

DWORKIN, Ronald. O império do Direito, 2ª ed. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio, 2º ed. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

GROSSI, Paolo. Primeira lição sobre direito. Tradução de Ricardo Marcelo Fonseca. Rio de Janeiro: Forense, 2006,

HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado escolástico e civil. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

MACCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e teoria do Direito. Tradução de Waldéa Barcellos. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. O princípio da coisa julgada e o vício da inconstitucionalidade. In: Constituição e segurança jurídica: direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. Estudos em homenagem a José Paulo Sepúlveda Pertence¸ 2ª ed. Belo Horizonte: Fórum.

ROULAND, Norbert. Nos confins do Direito. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

TAVARES, André Ramos. Nova lei da súmula vinculante. Estudos e comentários à lei 11.417, de 19.12/2006, 3ª ed., rev., atu. e amp. São Paulo: Método, 2009.

 

1 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado escolástico e civil. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 61.

2 ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. O princípio da coisa julgada e o vício da inconstitucionalidade. In: Constituição e segurança jurídica: direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. Estudos em homenagem a José Paulo Sepúlveda Pertence, 2ª ed. Belo Horizonte: Fórum, p. 168/169.

3 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio, 2º ed. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, p. 222/223.

4 Dworkin, Ronald. Op. Cit, p. 235/236.

5 DALLARI, Dalmo. Efeito vinculante: prós e contras. [31/03/1997]. São Paulo: Revista Consulex, nº 03. Entrevista concedida a Denise de Roure e Nicanor Sena Passos.

6 MACCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e teoria do Direito. Tradução de Waldéa Barcellos. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 299/300.

7 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 141.

8 GROSSI, Paolo. Primeira lição sobre Direito. Tradução de Ricardo Marcelo Fonseca. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 14.

9 BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Recursos Extraordinários no STF e no STJ. Curitiba: Juruá, 2009, p. 200.

10 Ibidem, p. 221.

Ana Silvia Marcatto Begalli

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