A obrigação de fazer e não fazer na legislação consumerista

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Desde o nascimento o homem vive em sociedade, e, em razão disso, surgem inúmeras obrigações, como a de cooperação mútua, pois, sozinho, não será capaz de prover todas as suas necessidades, inclusive dentro do próprio organismo familiar.
Na proporção que o meio social evolui há um conseqüente aumento das necessidades humanas, assim como dos reclamos de conforto pelo indivíduo. Em virtude disso, ocorre divisão de trabalho e a crescente dependência entre as pessoas.
Primeiro surgiu a denominada troca, na seqüência a compra e venda, e, posteriormente, outras formas de contrato foram criadas. O contrato é fonte de obrigação e gera aos contraentes o mister de desincumbir o dever assumido, sob pena de responder pelo inadimplemento. Exsurge, então, um vínculo prestigiado pela lei, segundo o qual o devedor tem o dever de dar, fazer ou não fazer qualquer coisa, em favor do credor.
Silvio Rodrigues (2003, p. 03) conceitua obrigação como sendo “o vínculo de direito pelo qual alguém (sujeito passivo) se propõe a dar, fazer, não fazer qualquer coisa (objeto), em favor de outrem (sujeito ativo)”. Prossegue afirmando que a obrigação possui três elementos constitutivos: vínculo jurídico (o devedor que descumpre a obrigação sujeita-se a ressarcir o prejuízo causado), partes (sujeito ativo – credor; sujeito passivo – devedor) e a prestação (consistente em dar, fazer ou não fazer algo).
Conforme será demonstrado a seguir, a abordagem sobre as obrigações será reduzida à obligatio faciendi e non faciendi.
Na obrigação de fazer, o devedor está vinculado a determinado comportamento, consistente na prática de um ato, ou realização de uma tarefa, de que decorre vantagem para o credor, podendo ser trabalho físico ou intelectual.
Nas obrigações de fazer infungíveis, o negócio se estabelece intuito personae, pois o credor só visa à prestação avençada se fornecida por aquele credor com qualidades pessoais específicas (conforme o artigo 247 do Código Civil, incorre na obrigação de indenizar perdas e danos o devedor que recusar a prestar a obrigação assumida que somente foi imposta a ele, ou só por ele exeqüível), enquanto que nas obrigações infungíveis a pessoa do devedor não tem tal relevância.
A obrigação de não fazer é aquela em que o devedor assume o compromisso de se abster de um ato que poderia praticar caso não existisse o vínculo que o prende. É obrigação negativa, enquanto que a obrigação de fazer é positiva.
Salienta-se que a obrigação de não fazer será lícita sempre que não envolva restrição sensível à liberdade individual. O inadimplemento da obrigação de não fazer se caracteriza quando o devedor pratica o ato de que prometeu abster-se (RODRIGUES, 2003, p. 42).
Após discorrer, sucintamente, sobre a obrigação de fazer e de não fazer conforme a legislação civil pátria, facilitando a compreensão do tema, será abordado, com maior amplitude, as referidas obrigações inseridas no Código de Defesa do Consumidor (CDC).
O campo de aplicação da legislação consumerista, em matéria contratual, é vasto e diferenciado, pois a Lei n. 8.078/90 estabelece parâmetros para os contratos envolvendo obrigação de fazer, denominada genericamente de contrato de prestação de serviços.
O consumidor pode ser lesado em determinado contrato que visa à prestação de serviço. Tal fato forçou o legislador a prever normas específicas para os serviços e para os produtos (artigos 12 e 14 dispõem sobre responsabilidade civil e artigos 18 e 20 sobre vício por inadequação).
Portanto, a disciplina de formação e de controle do equilíbrio contratual será a mesma, tratando-se de contrato de prestação de serviço ou de contrato de fornecimento de produto. O Código Consumerista não desconhece que a execução desses contratos será diferenciada e característica. Como nem toda obrigação de fazer é uma obrigação de resultado, algumas expressões utilizadas na legislação protetiva do consumidor terão necessariamente interpretação diversa, conforme tratar de contrato de prestação de serviço ou de contrato de fornecimento de produto.
Quando houver a expressão ‘vício’, tratando-se de vício de serviço, há referência à sua qualidade ou à sua informação (artigo 20 do CDC). O serviço com vício de qualidade é aquele cujo valor foi diminuído pela maneira como foi prestado, ou aquele definido como impróprio, pois ficou demonstrado ser inadequado para os fins que, razoavelmente, dele se esperava (artigo 20, parágrafo 2º, do CDC). Se o contrato de serviço tinha como objeto uma obrigação de meio, e não de resultado, será difícil caracterizar o vício de qualidade na prestação de serviço.
A noção contratual de vício, na prestação do contrato, facilitará a ação do consumidor, mas, em se tratando de serviços, não é sempre a garantia do resultado da satisfação de todas as expectativas do consumidor. É, no máximo, a garantia da adequação do serviço e da diligência no fornecimento do produto, pela sua própria natureza, adequação e resultado se entrelaçam, portanto, a noção de vício da quantidade é garantia deste resultado (MARQUES, p. 118).
Depreende-se da leitura do caput do artigo 8º do Código Consumerista, que cumpre ao fornecedor a obrigação de colocar no mercado produtos seguros, ou seja, que não acarretem riscos acima do uso convencional do produto, sendo adotada a teoria do risco e da nocividade inerente (NUNES JÚNIOR e SERRANO, 2003). Dependendo do caso concreto, verificada periculosidade do produto, o fornecedor tem a obrigação de informar o consumidor sobre essa situação.
Prossegue o artigo 9º do mesmo diploma, complementando o anterior, acerca dos produtos potencialmente nocivos ou perigosos à saúde ou segurança, e dispondo que o fornecedor tem o dever de informar, de maneira ostensiva e adequada, a respeito da nocividade e periculosidade do produto.
Desta feita, dessume-se que os artigos 8º e 9º da Lei n. 8.078/90 dispõem sobre as obrigações de fazer do fornecedor perante o consumidor conforme os tipos de produtos colocados no mercado de consumo.
No que toca às obrigações de não fazer, estas estão descritas no artigo seguinte (artigo 10), o qual dispõe que o fornecedor não poderá colocar no mercado de consumo produtos ou serviços que sabe ou deveria saber apresentar alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança.
Nesta linha de pensamento, fica claro que o caput do artigo 10 da legislação supracitada traz em seu conteúdo a obrigação de não fazer do fornecedor, tratando-se de expressa proibição legal. Verifica-se, então, que não pode o fornecedor que sabe, ou deveria saber, ser um produto nocivo ou perigoso colocá-lo, assim mesmo, à venda para consumo.
Importante discorrer acerca das expressões ‘sabe’ e ‘deveria saber’ utilizadas pela legislação protetiva do consumidor, as quais alcançam duas categorias de conduta. A primeira demonstra intencionalidade: o fornecedor, mesmo sabendo da periculosidade ou nocividade do produto, coloca-o em circulação, com o intuito de maior lucratividade para suas atividades, agindo, assim, com dolo. ‘Deveria saber’, de seu turno, traz a idéia de culpa em sentido estrito, alicerçada na negligência, imprudência ou imperícia. É o caso do fornecedor que, esquivando-se de seu dever objetivo de cuidado e cautela para com os produtos que comercializa, abstém-se, omite-se.
Nos parágrafos do mesmo artigo está disposto que o fornecedor de produtos ou serviços que, posteriormente à sua introdução no mercado de consumo, tiver conhecimento da periculosidade que tais apresentem, deverá comunicar o fato imediatamente às autoridades competentes e aos consumidores através de anúncios publicitários. Nesse caso, o fornecedor toma conhecimento posterior sobre a periculosidade do produto ou serviço, que já está no mercado; portanto, deverá proceder à imediata comunicação às autoridades competentes e aos consumidores, através de informes publicitários.
Dessume-se da leitura da legislação em tela que foram estabelecidos princípios jurídicos norteadores das relações de consumo, com caráter evidentemente protetivo, instaurando diferenciado regime no âmbito da responsabilidade civil, nas práticas comerciais, assim como na área contratual. Ocorre que tais inovações seriam totalmente ineficazes caso não ficasse disposto a sua viabilização em juízo, através da efetividade da tutela jurisdicional.
Nesse diapasão, importante trazer anotações sobre a obrigação de fazer e de não fazer e a efetividade da tutela jurídica processual no Código de Defesa do Consumidor. O artigo 84 do referido codex traz em seu cerne a tutela jurisdicional inibitória, sendo que esta trata de forma de tutela das mais eficazes, para não dizer a mais eficaz forma de tutela específica, tendo em vista que a sua utilização ocorre mesmo antes de determinado direito ser lesado, tendo, pois, a função principal de preservar a integridade do direito ameaçado.
Nesse aspecto, a tutela inibitória tem caráter iminentemente preventivo, visando manter o direito ameaçado de lesão totalmente ileso. Assim, tem como pressuposto para a concessão da tutela inibitória a probabilidade da prática ou da continuação ou repetição de determinado ilícito.
O aludido artigo autoriza o juiz a impor multa diária ao réu, desde que compatível com a obrigação, mesmo inexistindo qualquer requerimento do autor. Veio, assim como o artigo 461 do Código de Processo Civil, permitindo que seja imposta obrigação de fazer ou de não-fazer, sob pena de multa, possibilitar a prestação da tutela inibitória ao juiz, e por conseqüência, fez com que o réu deixasse de praticar, repetisse ou continuasse com determinada conduta ilícita.
A tutela inibitória positiva destina-se a compelir o réu a realizar determinada conduta, evitando assim, que o mesmo cometa qualquer omissão ilícita, compelindo àquele a agir em conformidade com a lei. Com pertinência à tutela inibitória negativa, esta pode ser descrita de forma que consista em fazer com que o réu deixe de praticar ou reiterar a prática ou continuar praticando determinado ilícito, gerando uma obrigação de não fazer antes mesmo que o suposto violador do direito pratique o ilícito comissivamente.
A ação para cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, prevista no artigo 84 do Código consumerista, tem como intuito dar necessária tutela à grande parte dos consumidores da sociedade atual, onde não há apenas a imposição legal de deveres de condutas positivas ou negativas dos fornecedores, mas também a contratação de serviços, que também são prestações de determinados fatos.
O dispositivo acima citado instituiu uma ação que proporciona, desde logo, a satisfação do direito que o seu titular faz jus. Trata-se, assim, de ação para cumprimento da obrigação, buscando a realização do direito judicialmente verificado, através da obtenção do resultado prático equivalente ao adimplemento.
Os parágrafos 4º e 5º do dispositivo descrito alhures dizem respeito sobre a possibilidade da imposição de multa cominatória se houver os descumprimento da liminar ou da sentença, com intuito de compelir o réu a satisfazer o direito pleiteado. Dispõem ainda que o juiz está autorizado a determinar as medidas necessárias para a obtenção da tutela específica ou do resultado prático equivalente na própria ação para cumprimento da obrigação de fazer ou de não fazer. Verifica-se, dessa forma, que é nesse mesmo processo, se necessário, que serão adotados os meios coercitivos e executivos capazes de proporcionar ao autor a satisfação do direito pleiteado.
Fica clara a característica satisfativa constante no referido processo, em que o legislador conjugou o provimento madamental ao executivo, como forma de possibilitar a efetividade da tutela específica das obrigações de fazer e não fazer.
A atenção do legislador foi tamanha, em busca dessa efetividade, que no parágrafo 4º deixou prevista a possibilidade de o juiz impor multa cominatória ao réu, a chamada astreinte, se aquele descumprisse a ordem judicial.
A finalidade da multa cominatória é coercitiva, isto é, almeja forçar o devedor a cumprir a obrigação imposta judicialmente. Essa pressão exercida sobre o devedor é psicológica, fazendo-o se convencer que é melhor cumprir a obrigação, através de seu adimplemento, evitando prejuízo pecuniário.
A ação para cumprimento das obrigações de fazer e de não fazer cria uma junção entre a atividade cognitiva e a executiva, possibilitando, assim, a pronta satisfação do direito almejado.
Cumpre lembrar de determinados casos em que há necessidade de conceder a antecipação da tutela, de ações que almejam o cumprimento das obrigações de fazer ou de não fazer, que, a título de exemplo, é possível citar o contrato que em seu teor consta cláusula abusiva, assim, para que o consumidor não permaneça submisso à ilegalidades constantes no contrato de consumo, no transcorrer do processo, liminarmente deve ser concedido que o réu deixe de levar a efeito as referidas cláusulas, protegendo o consumidor de ter o seu direito violado, face à morosidade processual.
Conclui-se, então, que o instrumento processual protetivo do consumidor, constante do artigo 84 do CDC, visa outorgar tutela específica, liminarmente ou na decisão final, com o objetivo de assegurar que o consumidor veja o seu direito satisfeito.
Seguindo essa linha de raciocínio, depreende-se que o consumidor, apesar de ser parte vulnerável e hipossufuciente nas relações de consumo, tem muitas formas de proteção capazes de coibir os abusos existentes nos contratos em comento. O legislador, com grande sabedoria, inseriu de maneira clara, na legislação consumerista, verdadeiro aparato defensivo voltado à garantia do consumidor, consubstanciado no direito à informação ou dever de ser informado pelo fornecedor, nos casos de produtos ou serviços perigosos ou nocivos, visando à preservação da saúde e segurança de seus destinatários finais. Verifica-se, ainda, a inclusão da responsabilidade objetiva do fornecedor, o dever de não fazer publicidade enganosa ou abusiva, dentre outros.
Após a breve análise do instituto de proteção ao consumidor, percebe-se o que sua inserção na legislação pátria ocasionou grandioso avanço em todos os aspectos relacionados às relações de consumo, quer no âmbito material como no processual.
 
Natália Taves Pires[1]
 
BIBILIOGRAFIA
 
ALMEIDA, João Batista de. A Proteção Jurídica do Consumidor. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
 
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CAVALCANTI, Flávio de Queiróz B. Responsabilidade civil por fato do produto no código de defesa do consumidor. Belo Horizonte: Del Rey, 1996.
 
FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias; STOCO, Rui. Responsabilidade Civil do Fabricante e Intermediários por Defeitos de Equipamentos e Programas de Informática. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
 
MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 2. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.
 
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NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano; SERRANO, Yolanda Alves Pinto. Código de Defesa do Consumidor Interpretado. São Paulo: Saraiva, 2003.
 
PRUX, Oscar Ivan. Responsabilidade Civil do Profissional Liberal no CDC. Belo Horizonte: Del Rey, 1998.
 
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.
 
 
 


[1] Mestre em Teoria do Direito e do Estado pelo Centro Universitário de Marília-SP; especialista em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito da Alta Paulista de Tupã – SP e INBRAPE; professora do Curso de Especialização em Direito Empresarial e pesquisadora da Universidade Estadual de Londrina – PR; advogada.

Natalia Taves Pires

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