“Por seus frutos os conhecereis.”
Seria realmente interessante, revelador e inusitado que um dos jovens peregrinos, inspirado por Robredo Zugasti1 e a quem fosse concedida a “graça” de participar no turno popular de perguntas da missa de “Cuatro Vientos”2, se dispusesse a perguntar para o “infalível” Papa Ratzinger (a) se segue estando de acordo com a recomendação de seu antecessor João XXIII de manter em segredo os casos de abusos sexuais dentro da igreja católica; (b) se continua acreditando que a Santa Sé, e não os tribunais seculares, deve manter uma “competência exclusiva” sobre esses delitos; e – já que estamos – (c) que castigo deveria ser aplicado ou crê que seria humanamente justo aos sacerdotes que levam a um extremo intolerável o “Deixai vir a mim as crianças, e não as impeçais,…” (Lucas 18: 16-17).
E não se trataria, depois de tudo, de uma pergunta tão despropositada, uma vez que a suposta postura do Sumo Pontífice sobre os critérios autorizados para julgar, reparar e punir esse tipo de crime é, nas palavras de A. C. Grayling, como sugerir “a la zorra que dicte el reglamento para la caza del zorro”. Por exemplo, em um recente e assombrosamente penetrante discurso concernente ao informe Cloyne sobre o escândalo dos abusos sexuais por parte do clero católico, o primeiro ministro de Irlanda, Enda Kenny, afirmou:
“Por primera vez en Irlanda, un informe sobre abuso sexual infantil muestra un intento de la Santa Sede para frustrar una investigación dentro de una república soberana y democrática. Hace tres años, no tres décadas. Al llevar esto a cabo, el informe Cloyne excava en las disfunciones, la desconexión, el elitismo y el narcisismo que domina la cultura actual del Vaticano.
(…) El Cardenal Joseph Ratzinger (actual papa Benedicto) ha dicho: “Las normas de conducta apropiadas para la sociedad civil o el funcionamiento de una democracia no pueden ser aplicados pura y simplemente a la iglesia.”
En el momento en que la Santa Sede prepara su respuesta al informe Cloyne, como primer ministro, quiero dejar totalmente claro que por lo que respecta a la protección de los niños de este Estado, las normas de conducta que la iglesia considera adecuadas para sí misma, no pueden ser y no serán aplicadas al funcionamiento de la democracia y de la sociedad civil en esta república.[…]
Esto no es Roma. Es la República de Irlanda”3.
Mas, ainda que um chefe de Estado tenha dito, por fim e publicamente, a verdade, Robredo Zugasti recorda que “el jefe de los pederastas, y principal responsable de los obstáculos interpuestos entre los criminales y la justicia secular, visitará Madrid éste […] agosto y será recibido con todos los honores por un presidente y por un gobierno que aseguran ser progresistas”.
E embora não pareça existir nenhuma “razão cristã” que justifique tentar penetrar com nossa limitada e pecadora inteligência humana na incomensurável e infalível deliberação papal – e talvez nem deveríamos intentar, pois seria um pecado de soberbia – o certo é que, independentemente de nossas posições pessoais, seja de acordo com uma ideologia progressista ou conservadora, de acordo com a direita ou esquerda, em termos confessionais ou laicos, as normas da moral (e principalmente do direito) a que chamamos civilizada proíbem excluir da apreciação dos tribunais seculares de cada Estado soberano, de forma incondicional, a apuração e a penalização de tão bárbaros, pusilânimes, injustificados, insuportáveis e imperdoáveis delitos.
Não é necessário ser nenhum sábio para dar-se conta do fato evidente de que a mencionada postura da Igreja, inspirada pelo Espírito Santo, seguindo os ditames de Deus, de quem (ou “do que”) o Papa é vicário e agente exclusivo na Terra, é de um cinismo atroz e sádico e/ou de uma prepotência perversa, tendenciosa, monstruosamente protetora e irredimível. Tentem explicar a um pai e/ou uma mãe com uma inteligência normal que o sacerdote que violou e abusou de seu filho pequeno será julgado e “punido” pela mesma instituição religiosa (uma comunidade de interesses claramente particulares) que o acolhe, “educa”, protege e sustenta; expliquem-lhes também que essa alternativa exclui qualquer possibilidade de que esse hipotético sacerdote (abusador e violador) seja julgado e punido por um poder estatal legitimamente constituído e com as garantias, a imparcialidade e sanções próprias de um Estado de Direito. E perguntem depois a esse pai/mãe qual dessas duas opções elegeriam. Podem estar seguros de que, salvo no caso de que padeçam de alguma lesão cerebral, sua resposta seria “a segunda”.
Que um Estado soberano não queira submeter-se às leis de outro é algo bastante lógico. Mas, formalismos jurídicos a parte, o Vaticano não resulta um país ao uso. Qualquer pessoa que tenha visitado suas dependências haverá concluído por si mesma de que se trata de uma espécie de ficção – ao estilo de outras como a de Mônaco, para por um exemplo; uma “papalândia” para devotos que sequer pertence à União Européia – só viável na medida em que o Estado de verdade, Italia neste caso, o tolere. Seu verdadeiro reino não é deste mundo de liberdade e igualdade, impostos e delitos, leis e códigos pactados, senão do outro, tido por espiritual, no qual qualquer coisa é possível sempre que os fiéis aceitem que procede da comunicação direta que se supõe que existe entre o Papa e a divina trindade.
Graças a esse despotismo ilustrado, a Igreja leva muitos séculos de provada eficácia administrativa na tarefa ingente de controlar todo o orbe católico. E o único que esse cariz espiritual é capaz de justificar está limitado aos assuntos próprios dos dogmas católicos: como se há bases teológicas e litúrgicas para crer que as almas das crianças mortas sem batizar vão diretamente ao paraíso; se há algum mandado divino que envie diretamente ao inferno e sem escala os sacerdotes que abusam de menores inocentes; se é certo que ver as penas dos condenados no inferno incrementa a felicidade dos beatos no céu; ou até mesmo a oportunidade de devolver às mulheres a alma, que lhes foi negada por razões teológicas.
Daí que resulte evidente que a legislação de um verdadeiro Estado soberano acabe chocando cedo ou tarde com toda aquela que derive da vontade de qualquer deus expressada da única forma possível: por meio de seus representantes terrenais. A Reforma protestante resolveu o conflito aplicando de maneira taxante o princípio de dar a César o que é de César. Assim que a postura do Vaticano de furtar-se covardemente às leis seculares nos conduz a uma época anterior da que separou Igreja e Estado, com umas consequências difíceis de aceitar e avaliar “a bote pronto”. De fato, ceder aos caprichos da Santa Sé neste assunto pode gerar enormes problemas: imaginem, por um momento, se a mesma postura fosse adotada por alguns líderes religiosos islâmicos, pelo Arcebispo de Canterbury ou, no pior dos casos, pelo obispo Edir Macedo? Imaginem o que ocorreria se todas essas autoridades espirituais pretendessem excluir a potestade de um juiz para decidir sobre um delito de pedofilia praticado por um dos membros de suas respectivas religiões? Cabem poucas dúvidas acerca de que o gesto do Vaticano ao proclamar-se soberano em termos legais não passa de um ataque gratuito e desesperado, uma forma mais de seguir fazendo muito dano ao mundo, por mais que reivindique que a bondade é seu patrimônio.
Nem sequer aqueles que crêem na existência de um Deus providencial, que vela pelo bem estar de todos e cada um de nós – ou daqueles que ao menos rezam para Ele -, seriam capazes de imaginar que os poderes mais altos de um Estado fossem excluídos da potestade de apreciar e julgar as pretensões de cada cidadão por ver aliviada suas particulares desgraças pessoais. Apoiar as teses do infalível Ratzinger se converteria, depois de tudo, em uma bandeira defendida curiosamente por aqueles que parecem não ter (ou se negam a ter) uma dimensão real do sofrimento humano quando este ronda a impessoalidade: quem, em seu sano juízo e livre vontade, gostaria de ver um sacerdote violador de um filho julgado pelo Vaticano? Melhor dito: quem, em seu sano juízo e livre vontade, gostaria de “viver” em um Estado impotente para julgar e castigar um sacerdote violador de um filho, um neto, um sobrinho querido…, ou até mesmo de um “filho do vizinho”?
Ademais, é preciso dizer, os discursos do Papa Bento XVI no último JMJ servem para recordar-nos que a religião católica sobrevive principalmente graças a sua capacidade de reinventar-se a si mesma tantas vezes quanto seja necessário e ao poder de conseguir que seus jovens devotos permaneçam em um feliz estado de “infância intelectual”. A ameaça do inferno, a exigência de pobreza e castidade, o medo cristão ao sexo e a correlativa misoginia, o silêncio e as limitações que Paulo impôs às mulheres, entre outras aberrações, se há dissipado e substituído por alegres sessões de músicas, cantos e sorrisos fastidiosos, com outra difusa e sutil letra de fundo: 1. que a verdade e a justiça são relativas; 2. que uma coisa é boa ou má dependendo da ocasião e da conveniência da Igreja, a única representante de Deus na Terra, a única legitimada para interpretar suas Escrituras e ensinar suas ovelhas; 3. que o homem virtuoso não se modela a si mesmo de forma livre e autônoma e que a virtude se consegue por assistência divina, sempre intermediada pela Igreja – isto é, de que não se salvará por seus méritos, senão porque está elegido ou predestinado por Deus e escolhido assim por sua “graça”, caprichosa ou gratuitamente distribuída pelo Senhor ( gratia gratis data, disse o paulino Agostinho) e; 4. que os “bem-aventurados são os humildes de espírito, porque deles é o Reino dos Céus; os que choram, porque serão consolados; os mansos, porque possuirão a terra; os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados; os pacíficos porque serão chamados filhos de Deus; os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus”. Por essa via parece mais fácil tragar as iluminadas, dissimuladas e intransigentes posturas eclesiásticas, levando suas mansas e pacíficas ovelhas a aceitar “em silêncio”, entre outros disparates, que os “podres” e “fracos de espírito” sacerdotes pedófilos sejam deixados ao juízo exclusivo de Deus, por intermédio de seus legítimos vicários.
Mas como nunca será demasiado tarde para insistir na real possibilidade de construção de uma sociedade justa e decente, o que eu realmente desejo é que em 2013 os jovens não peregrinos, os laicos, tenham a oportunidade, como ocorreu em Madri, de manifestarem abertamente seus motivos de indignação. Que se convertam em militantes, fortes e comprometidos com um humanismo secular, com a idéia de que qualquer concepção ética deriva de uma boa compreensão da natureza humana e da condição humana no mundo real. Esse tipo de humanismo tende a uma maior justiça, maior liberdade, a tomar consciência, entre outras coisas, da necessidade de protestar publicamente contra toda e qualquer postura estapafúrdia (e especialmente repugnantes desde um ponto de vista moral e jurídico) da Santa Sé e a basear-se em direitos, cuja violação, qualquer que seja o autor, deve provocar nossa indignação. Não cabe transigir com respeito a forma de punir e reparar a violação de nossos direitos. Só é necessário abrir bem os olhos, ser compassivo e usar a razão.
1 http://www.revolucionnaturalista.com/
2 Antes, evidentemente, de que a tormenta desbaratasse os planos eclesiásticos. Uma forma imaginativa de explicar a imprevista tormenta seria a seguinte: Se um peregrino estrangeiro, naquele momento e lugar, perguntasse a outro camarada espiritual local de donde vem tanta chuva, creio que algo bonito para responder-lhe seria: “Deus está chorando”. E se perguntasse por que Deus está chorando, outra coisa bonita para dizer-lhe seria: “Provavelmente por algo que estamos fazendo”.
3 http://www.revolucionnaturalista.com/
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