O direito à divergência, a ser minoria, ao reconhecimento: alguns apontamentos críticos sobre legitimidade em uma democracia constitucional

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Quando a Revolução Francesa condena e executa, em 1793, a Luís XVI, a base naturalizada do direito divino, que dava sustentação às monarquias absolutistas foi, definitiva e radicalmente, invalidada, abrindo o caminho para uma compreensão secularizada do significado de legitimidade, pois os revolucionários franceses pretendiam instaurar um “novo pacto” para o exercício do poder, ou como escreve Camus, “the condemnation of the king is at the crux of our contemporary history. It symbolizes the secularization of our history and the disincarnation of the Christian God.” (CAMUS apud WALZER, 1992: 86)

Todavia, principalmente a partir da leitura de ARENDT (1988) da Revolução Francesa, aprendemos que o “absoluto” pode reentrar, pois a cadeira vazia do Rei teria, ali, sido ocupada, não mais por uma pessoa, mas por um ente, ou melhor, por um “nome”: “povo”, o qual teria passado a possuir quase os mesmos poderes legitimadores que o antigo monarca, podendo se tornar fonte a-histórica indiscutível do poder secular que se instaurava, permanecendo, por muito tempo, além do político, do discurso, o que teria levado a um ato de fundação tão opressivo quanto ao anterior do Ancien Régime, substituindo um absoluto por outro, onde a nação, encarnada na soberania do “povo”, assume uma instância mítica, predominando a unidade, não a pluralidade, ocasionando o que Arendt, poeticamente, qualificou como o “tesouro perdido”, isto é, “the true revolutionary spirit of the deliberative exercise of power among equals.” (BENHABIB, 2000: 163).

O “povo”, deste modo, é construído com uma força e autoridade que vão além do direito, possuindo uma “aura divina”, tornando-se titular absoluto da soberania, erigido como o “novo” critério de legitimidade, princípio necessário do desejo de unidade e, em razão disso, passa a ser, cada vez mais, um enorme problema, pois “povo” é um conceito vazio, “gordo”, admitindo as mais variadas interpretações, podendo ser o fundamento das liberdades fundamentais e, simultaneamente, a justificativa anti-política para todas as atrocidades, bastando lembrarmos que os regimes totalitários da primeira parte do século XX sempre “lutaram” pelo e para o “povo”.

Nesta linha, como bem escreve Ralph Christensen, (…) o ‘nós’ do povo não pode tornar-se idêntico consigo mesmo por meio da lógica da adição, a comunidade deve ser permanentemente refundamentada e relegitimada pela inclusão de diferenças” (CHRISTENSEN, 2000: 40), ou seja, correndo o risco de nos adiantarmos, podemos já colocar que qualquer estudo do que seja legitimidade para “nós”, não pode desconsiderar a crescente luta por novas identidades e alteridade constitutiva, as quais forçam, continuamente, o conceito de soberania popular a se refundar, não podendo mais ser reduzido ao querer de “Um só”, ainda que esse se coloque como o representante de “todos”.

Tais assertivas são de suma importância, pois revelam o fato de que a legitimidade das decisões e escolhas passa a ser um problema, tornando-se visível, pois inserido em uma realidade mundana, aprofundando-se, de maneira incomensurável, gerando, inclusive, um angustiante “mal-estar” em nossas hipercomplexas sociedades, pois, nas mesmas não há mais, em termos psicanalíticos, o “grande outro” que imponha, inquestionavelmente, as regras que devemos seguir, demonstrando, novamente com ARENDT (2001) que, empregando um aforismo do poeta René Char, afirmava “nossa herança nos foi deixada sem testamento”.

Partindo de tal posição, podemos verificar que em um Estado Democrático de Direito constitutivamente plural, essas “heranças”, quando criticamente assumidas, ressaltam que a legitimidade não possui mais um fundamento último que a justifique independentemente dos contextos e marcos temporais concretos, haja vista que a mesma revela-se como ininterrupto e sempre inconcluso “movimento discursivo”, um “vir-a-ser argumentativo”, onde “nossa” geração, aqui e agora, não obstante “dialogar” com os significados de mundo que as gerações precedentes edificaram por e para si mesmas, busca, recorrentemente, responder suas próprias perguntas, travar suas próprias batalhas.

Em outros termos, reconhecer esse necessário “conversar” geracional, não pode ocultar o fato de que o peso das decisões tomadas, no que concerne à construção de uma “constitutional order that is more just and free than the one we inherited” (ACKERMAN, 1995:05), será sempre “nosso”, pois somos, como destinatários e construtores dos sentidos das normas que seguimos, co-responsáveis pelas conseqüências advindas de nossas escolhas e ações.

Dito isto, como pensar legitimidade em tempos de uma sociedade marcada pelo fetiche de uma existência dominada pelo “espetáculo”, onde o “aparecer” prevalece sobre a condição do “ser”, na qual o espaço público, construtor de possibilidades, de necessárias mediações, é dominado pela dimensão midiática? Como refletir sobre o trajeto democrático em um período dominado por uma racionalidade que objetiva o homem, cega ao que se encontra além dos sistemas conceituais, ao que está “fora” das tentativas modernas de domínio do contingente?

Alia-se a tais indagações o fato de que é “comum” qualificarmos a sociedade atual como complexa, onde as possibilidades de agir são infindáveis, na qual, só ingenuamente existem informações simples, isto é, uma sociedade funcionalmente diferenciada, resultado de uma revolução tecnológica que derrubou os marcos espaço-temporais, fazendo imperar, assim, uma nova dinâmica para todas as ações e interações sociais.

A improbabilidade, portanto, é a marca da modernidade, pois a referida complexidade não nos permite guiar a sociedade em apenas uma determinada direção, nem mesmo prever o futuro, já que este é melhor apresentado como a expressão de um processo, ou seja, não há como desplugarmos a concepção do que seja legítimo do fato que qualquer conhecimento é relativo, pois qualquer teoria elaborada para entender a sociedade é apenas uma visão entre inúmeras outras possíveis, sendo que todas estarão sempre submetidas ao imprevisível, pois como ensinava o filósofo alemão Karl Jaspers, “tudo é transitório, só este é permanente.” (JASPERS, 1971: 30)

Assumindo tal pano de fundo de incertezas e risco constante é que buscamos compreender, dentro do processo histórico, a construção de um Estado de Direito que se afirma democraticamente legítimo, marcado por uma inerente incompletude, sendo um projeto de aprendizagem sempre aberto e inacabado, demonstrando que o sentido do que seja legitimidade não pode mais advir de alguma “qualificação pela autoridade”, já que no paradigma em que nos movemos não “existe só aquele Um que sabe, quer e pode, que seja ao mesmo tempo quem faz e aplica a Lei, que se confunde com ela para administrar os membros impotentes do grupo. A lei interessa a todos, ela é algo que se constrói, se discute, se adapta…” (BARUS-MICHEL,2001: 33).

Eis aí, novamente, alguns dos pressupostos que nos permitem afirmar que vivemos em um contexto1 marcado por uma “crise de legitimidade”, pois não há mais um consenso sólido de fundo que a todas decisões justifique e seja, passivamente, aceito, isto é, não temos mais a transcendência absoluta ou a velha metafísica que “nos coloquem no colo e nos façam dormir”.

Em outros termos, existe, em uma modernidade que a tudo dissolve, onde tradições e a transmissão de experiências são, cada vez mais, esvaziadas, um “locus” privilegiado que produz decisões legítimas apenas por ser “qualificado” por uma justificativa externa? Para onde migrou o “inquestionável”? “Onde” reside a legitimidade das decisões? “Quem” detém tal poder?

Ora, como acima já dito, se a Revolução Francesa decapitou o “Rei-Pai”, o qual possuía legitimação por “vontade de Deus”, para onde migrou a “nova” legitimidade? Para as leis republicanas? Isto é, no atual estágio do processo histórico-democrático, o lugar daquele que decide é ainda personalizado, ou tal posição revela-se dispersa, conformando uma identidade constitucional que não mais admite ser ocupada definitiva e inquestionavelmente, seja por um rei, um republicano chefe do executivo ou, até mesmo, por uma entidade denominada “povo” ? 2

Radicalizando nossas reflexões sobre a legitimidade das decisões em uma “era pós-paterna”, para empregarmos novamente um pensamento lacaniano, questionaríamos se o projeto moderno foi capaz, realmente, de construir um sentido de legitimidade vinculado à exigência normativa de igualdade e liberdade, a qual impõe a idéia de (co)responsabilidade, já que teríamos atingido a “maioridade” ou, ainda estaríamos presos, mesmo que tão-somente no plano simbólico, a um “discurso da servidão voluntária”3 que remeteria o problema da legitimidade a algum tipo de fundamento “externo a nós”, ainda ligado, por exemplo, a um medieval princípio da autoridade.

Em outras palavras, será que uma “legitimidade secularizada” revelou que podemos “viver em comum” sem a necessária presença de um “pai redivivo que sabe”, de “um amo que nos guie” ou, ao contrário, ainda nos moveríamos pelo argumento central do magistral “Grande Inquisidor” de Dostoyesvski, o qual dizia que “el más vivo afán del hombre libre es encontrar un ser ante quien inclinarse”?

Neste ponto, é importante lembrarmos, com Barus-Michel, que:

 

a democracia supõe uma concepção inédita de poder. Não se trata mais do poder compreendido em seu sentido clássico, encarnado em figuras que ostentam seus atributos e sua natureza, ou em instituições impenetráveis, umas e outras irradiando uma força sagrada. Trata-se de um espaço vazio, ponto de convergência das expectativas e das vontades coletivas. (…) Ninguém ocupa de fato a cadeira, apenas fica à sua frente… (BARUS-MICHEL, 2001: 34).

 

Por conseguinte, em época de perda de referenciais e unicidades, de dessacralização da justificação do poder, de eticidade dissolvida, onde o único consenso possível é o potencial dissenso democraticamente estabelecido, o questionamento em torno da legitimidade da autoridade – não do autoritário – na conformação da nossa identidade constitucional revela-se um tema polêmico, perpassado por tensões, contradições e, obviamente, pré-compreensões, isto é, denota-se que, em uma democracia constitucional, a sociedade encontra-se “órfã”, para parafrasearmos Ingeborg Maus, haja vista a ausência de uma suposta autoridade última, imperando, na verdade, uma pluralidade de formas de vida que determinam que o lugar do exercício da titularidade do poder deve permanecer vazio,4 impondo repensarmos as nossas tradições, as nossas concepções do que seja legitimidade constitucional, ou seja, refletirmos sobre como nos constituímos.

Aqui, entendemos ser possível uma aproximação com a obra de Jürgen Habermas no que tange à assunção do deslocamento temporal do sistema de direitos, interpretando-os desde o Estado Democrático de Direito no qual estamos inseridos como um projeto inconcluso, que possui um início inscrito na história, não obstante se reconhecer que essa abertura para o futuro caracteriza-se como um processo de aprendizagem que não está imune a quedas, configurando-se uma “continuação falível do evento fundador” (HABERMAS, 2003:165).

Essa linha, reflexivamente crítica, diante dos temas que gravitam em torno dos mecanismos tradicionais de legitimação é que pode nos permitir questionar a adequação de raciocínios que nos conduzem a nos vermos como “menores ininputáveis” , irresponsáveis diante do nosso “projeto constitucional”, como se não fôssemos capazes de escrever e transmitir uma nova narrativa constitucional, construindo livremente novas significações de legitimidade, repletas de riscos, mas que podem demonstrar que a sombra do “passado” não pode justificar concepções naturalizadas que pretendem fechar futuros possíveis, ou seja, devemos ir além da procura incessante por a prioris fundantes/transcendentais.

Daí, porque visualizamos que a legitimidade democrática vincula-se a uma abertura argumentativa, sendo um movimento discursivo ininterrupto, fio condutor de um fluxo interminável e rico de diálogos, onde tradições, que escondem o que não é visível, podem também serem fontes de uma compreensão emancipadora, haja vista que constitutivas de “nós mesmos”, isto é, tal sentido do legítimo “depende de um procedimento que não protege ‘nossos’ argumentos contra ninguém nem contra nada. O processo de argumentação como tal deve permanecer aberto para todas as objeções relevantes e para todos os aperfeiçoamentos das circunstâncias epistêmicas” (HABERMAS, 2002: 59).

São esses pressupostos que nos permitem afirmar que “descobrir” o sentido do que seja “legitimidade”, não é a busca por algo que está apenas esperando ser encontrado, mas sim “descoberta” de que qualquer sentido é sempre construção, isto é, uma legitimidade que vai além da “clássica” regra da maioria ou de algum tipo de legitimação meramente formal ou aritméticamente disposta, mas, ao contrário, aberta ao diferente, ao conflito, reconhecendo o “outro”, àquele que discorda de “nós”, a igual possibilidade do diálogo.5

Legitimidade, assim, impõe assumirmos que jamais há, na escrita democrática, um “pleno e acabado”, pois democracia constitucional é o espaço do que não pode ser totalmente calculado, onde não há um Ponto de Arquimedes que nos conduziria a uma suposta verdade que “encaixaríamos” em um conceito pronto, buscando representar a “realidade” na união do significante com o significado, esquecendo que o homem é perplexidade, não explicação, onde desorientação é condição de liberdade, onde um o movimento democrático vai, para nos apropriarmos de um escrito poético de um escritor israelense, para “um lugar que desconhece e cujo caminho lhe está oculto.”6

Desta maneira, assumindo a democracia constitucional como espaço da possibilidade e do devir, onde o pensar pode exercer sua capacidade de crítica dissolvente do “estabelecido” historicamente, o direito ali só pode ser legitimado ao assumir um pressuposto: o diálogo, haja vista que o mesmo está indissociavelmente aberto ao “outro”, à diversidade que só pode ser visualizada na liberdade de sermos espontaneamente iguais.

Esse arcabouço teórico é que nos possibilita visualizar que a legitimidade democraticamente afirmada constrói-se publicamente, onde o reconhecimento mútuo de igual respeito na diversidade é condição de possibilidade para o exercício das denominadas liberdades individuais, isto é, o direito não como uma imposição moral, mas fomento e garantia de “pluralismos responsáveis”, criando estruturas nas quais a heterogeneidade possa se realizar.

Daí, que o direito assim legitimado deve atuar no sentido de ser um mecanismo de responsabilização de ações que se revelem pretensões abusivas do exercício dessas mesmas liberdades fundamentais, admitindo-se que nenhuma ordem normativa elimina discriminações ou perigos, mas responsabiliza tais condutas nas situações de “vida concreta”, buscando garantir o potencial universalizável do princípio da democracia.

Essa perspectiva de funcionamento do direito coaduna-se com a própria noção de uma legimidade aberta aos múltiplos discursos presentes em nossas sociedades, pois não implica em posturas normativas que venham a edificar verdadeiras “censuras prévias”, em leituras “pseudo-moralistas” do ordenamento jurídico, ilegítimas por buscarem controlar a priori o contexto de aplicação, o que só faz revelar a diferença essencial entre censura e responsabilização.

Trata-se de um direito que não pode ser tido como legitímo de uma maneira inquestionável, pois sabe que opera em um contexto cada vez mais complexo, onde os conflitos, ao contrário de serem contraproducentes, mostram-se ricamente produtivos, haja vista que acaba não sendo mais justificável uma legitimidade que se baseia em um “consenso por exclusão”, pois, o que para um pensador como Carl Schmitt (1956, 1992) era o problema a ser eliminado, sociedades plurais e fragmentadas, é, para nós, a solução a ser vivida, isto é, não nos satisfazemos mais com “a paz do silêncio, da não-democracia. Exigimos hoje, como o ar que respiramos, relações democráticas que incluam, pacificado, algo do que antigamente se chamaria guerra – ou subversão, insubordinação, rebelião. Exigimos nosso quinhão de revolta” (JANINE RIBEIRO, 2004:223).

A legitimidade do direito, nesta linha, aparece como um fenômeno social, uma realidade que se desenvolve no espaço e no tempo, em permanente busca de afirmação de identidades, colocando, cotidianamente, em xeque todas as visões unidimensionais de ética, estado, direito ou valor, ou seja, não podemos mais reduzir a legitimidade da democracia ao resultado do dia das eleições, ao número de votos que um governante ou partido recebe, pois agindo assim, só aumentamos o risco sempre presente de uma deslegitimação, abrindo espaço para “saídas” tentadoramente fundamentalistas.

Ora, a pluralidade humana impossibilita pensarmos um consenso de fundo absoluto, pois os muitos ou a maioria não são todos, sendo que os antagonismos não abolem necessariamente a legitimidade do poderes constituídos, já que a conflituosidade característica do “novo” pode sempre torna-se uma alternativa histórica.

Assim, buscando lidar com algumas questões postas no decorrer deste artigo, entendemos que o “legítimo” não é um dado valor “positivado” apenas porque uma suposta “maioria” assim o quer ou deseja, ainda mais quando não desconhecemos a circunstância de que o processo eleitoral, em nossas atuais sociedades, revela-se por demais manipulado, isto é, tal posição acoberta que em tal “democracia da maioria”, a minoria não tem o que dizer, pois o próprio sentido da distinção entre maioria e minoria é apenas visto em sua dimensão quantitativa, em uma abordagem por demais naturalizada.

Alia-se a este quadro de crítica diante da “força da maioria” em definir quais são os valores “adequados” e quais devem ser “descartados” pelo direito, o fato de que o próprio ordenamento jurídico reconhece a importãncia da divergência, bastando lembrarmos da importância que possuem, no processo judiciário, os argumentos dos “votos vencidos”, da “posição minoritária”.

Necessário se faz, então, confrontarmos as concepções do que seja legitimidade democrática, sejam quais forem, com o sistema de direitos fundamentais, o qual, em uma democracia constitucional, garante o dissenso e a voz ativa das “minorias” – mesmo que de um só! – as quais podem procurar realizar suas demandas identitárias, tendo para isso a liberdade de expressão e o direito constitucional da desobediência civil para criticar quaisquer valores ditos majoritários, tradicionais ou dominantes em dado contexto.

Para visualizarmos esses argumentos, basta refletirmos sobre recentes casos ocorridos em nosso contexto, os quais expuseram, enormemente, a complexidade que a definição do que seja “legítimo” possui em uma democracia constitucional que reconhece a ausência de um consenso de fundo, normativamente forte, que seria compartilhado por “todos”. Em outros termos, a “pesada” reação de parte da sociedade brasileira diante da eleição de um torneiro mecânico para a Presidência da República – o qual teria “descumprido” seu “papel” esperado, tendo “implodido” o caminho que lhe estava interditado por estruturas “naturalizadamente” condicionantes – e a rejeição a temas “tornados públicos”, como o reconhecimento da união homoafetiva, das questões de gênero e da inclusão social das classes mais desfavorecidas economicamente, mostraram que algumas práticas jurídico-políticas assentadas historicamente tiveram sua legitimidade colocada “entre parêntesis”.

Podemos também citar, neste mesmo diapasão, o movimento dos direitos civis comandado pelo Reverendo Martin Luther King Jr., o qual lutou e morreu em razão de não reconhecer como “legítimo” um “direito” de base segregacionista, até então tido como constitucionalmente adequado, como se fosse validado pelo tempo e uma dada tradição.

Ora, a legitimidade do direito, nesta perspectiva de abertura para o “outro” em sua singularidade, não pode ser visto como uma ordem hierarquizada de valores, tida como objetivamente posta, sendo acessível apenas a poucos “experts”, “iluminados”, pois no paradigma em que nos movemos, como escreveu Peter Haberle (1997), conformamos uma sociedade aberta de intérpretes da Constituição, ou seja, não há mas aquele soberano, seja um supremo tribunal ou um eleito chefe do executivo, que a todos os valores pode definir e aplicar.

Em resumo, devemos buscar superar a tentação de reduzirmos legitimidade à legalidade, a um procedimento tão-somente formal, onde uma norma jurídica é vista como válida se produzida em conformidade com o ordenamento, o que, por si só, diz muito pouco sobre sua legitimidade, isto é, legitimidade requer um “algo mais”, um potencial reconhecimento pelos seus destinatários, em uma auto-legislação democrática, onde os cidadãos, por serem responsáveis por suas escolhas, podem ser vistos como autores e intérpretes ativos das normas jurídicas que pretendem reger suas vidas em comum.

Deste modo, legitimidade surge como um movimento contínuo de perfectibilidade, um processo histórico arriscado e interminável de podermos questionar a tudo e a todos, mas não a própria possibilidade de questionar, sendo este uma espécie de mínimo ético-normativo insuperável em uma democracia constitucional, não encontrando-se a disposição do atores/destinatários na esfera pública de debates, ou seja, “só consente quem pode efetivamente discordar.” (DUARTE, 2000: 250)

Como bem ensina José Eduardo Faria, em duas passagens em que trabalha a questão da legitimidade no contexto dos Estados Unidos, “o consenso não se deve ao fato de que todos estejam de acordo a respeito de certos valores, mas sim da possibilidade de que estejam de acordo sobre a maneira de discordar”, isto é, “legítimas são aquelas decisões oriundas de situações em que as crises, conflitos e impasses são garantidos constitucionalmente, sem a eliminação das partes descontentes.” (FARIA, 1978: 65-66)

Leia-se, aqui encontramos uma “ética da responsabilização discursivamente posta”, onde todo limite é também condição de possibilidade, estabelecendo uma partilha ao mesmo tempo que vincula os opostos, os quais se unificam justamente ali onde se separam, bastando, para isso, pensarmos a idéia das “fronteiras”, como coloca Hannah Arendt (1990), ou seja, nossa hipótese está vinculada à circunstância de que a “a legitimidade da sociedade moderna reside na impossibilidade de nela se produzir uma representação natural e sem concorrência da sociedade e que lhe sirva de fundamento inquestionável já que compartilhado por todos.” (CARVALHO NETTO, 2002:XIII)

Dito isto, podemos perceber que as indagações sobre o sentido de “legitimidade” podem ser melhor trabalhadas em ambientes de democracia inclusiva, com todos os riscos que esta apresenta, já que a mesma revela-se como um movimento contínuo de formação e avaliação crítica do exercício do poder, potencializando que os cidadãos realmente consigam intervir na produção normativa, efetivando uma democracia mais abrangente através da possibilidade de desnaturalização do “uso do poder” , compartilhando a gestão e definição do sentidos de “público”, isto é, o problema dos “sub” e “super” integrados na sociedade, onde alguns “falam” e a outros só é permitido “ouvir”, “legitimando” as estruturas decisórias com o seu “imposto silêncio”, é confrontado com um contexto dialogicamente aberto, espaço intersubjetivo e cotidianamente construído de legitimação.

Legitimidade poderia advir, assim, do fato de que os cidadãos sejam entendidos como co-partícipes e co-responsáveis pela configuração social, onde mecanismos acessíveis e transparentes possam possibilitar que as mais variadas pretensões a direitos sejam levantadas e discutidas, sendo as decisões políticas e judiciais determinadas pelo contraditório e pela coerência argumentativa empregada, isto é, faz-se necessário à presença daqueles que serão atingidos pelos efeitos dessas mesmas decisões, demonstrando que o legítimo decorre, em grande medida, da ampla participação da sociedade civil no procedimento normativo, o qual não se exaure no ato de votar.7

Concretizar essa concepção participativa de democracia é um processo histórico descontínuo e complexo, exigindo transformações nas estruturas da sociedade, em como a mesma se forma, se reproduz e se perpetua, propiciando o campo para mudanças culturais mais amplas que podem vir a (re)significar o papel e o significado do que seja “autoridade legítima” em democracias constitucionais, reconhecendo outras variáveis existentes em nossos contextos, buscando superar a perversa dependência mútua entre “senhores e servos”, incompatível com um ambiente social que se afirma plural e democrático.

Em outras palavras, uma democracia constitucional nunca é, pois está sempre sendo, onde o sentido do que seja legitimidade também não pode ser entendido a partir de um ponto fixo revelado por alguma teoria totalizante ou algum procedimento formal que a tudo pretendesse regrar e determinar, pois não há mais autojustificações ou medidas transcendentes que expliquem as ações realizadas e o porque de obedecermos as normas postas, ou seja, legítimo implica reconhecimento intersubjetivo, a possibilidade do divergente, de sermos o “outro”, obrigando-nos a sempre procurar novos meios e argumentos para legitimar, publicamente, o exercício do poder.

De tudo o exposto, percebe-se que o significado de legitimidade, em uma democracia constitucional, jamais se encontra “pronto e acabado”, pois defronta-se, cotidianamente, com uma soberania discursivamente fluida, sempre carente de concretização, que não mais aceita pacificamente sua personificação, ainda que tão-somente simbólica, onde os limites de ação são sempre perenes, incorporando um pluralismo crescente, uma alteridade radical, em uma acentuada intersubjetividade, sendo a potencial releitura da nossa identidade constitucional entendida como condição de legitimação das decisões tomadas, tanto jurídicas quanto políticas.

Portanto, dando primazia a essa noção de legitimidade e seu impacto na configuração da identidade constitucional, é que podemos vislumbrar que:

A democracia é constituída de fugazes momentos e não é uma condição permanente e inabalável. Não há regime político no mundo que seja inteira e absolutamente democrático ou ditatorial todo o tempo (…). O importante é sabermos que somos homens não deuses e, com todas as nossas imperfeições, bem como com as das coisas que criamos, vivermos o máximo possível dos momentos democráticos que alcançamos realizar.” (CARVALHO NETTO, 1999: 12)

Eis-nos, por conseguinte, em um contexto onde não há mais uma “posição” que permititiria legitimar todas as decisões tão-somente em razão de alguma qualificação extraordinária, pois em nossas sociedades, marcadas pelo pluralismo, não encontramos mais aquele “Um” que criaria, por si só, um consenso normativo inquestionável, isto é, o sentido de legitimidade revela-se como uma construção social, vinculada aos princípios do constitucionalismo, ao reconhecimento intersubjetivo do cidadãos, haja vista, que na modernidade, ninguém mais detém, definitivamente, o enorme poder de nomear o mundo.

 

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1 “Devemos ter presente que vivemos em uma sociedade moderna, uma sociedade complexa, uma sociedade em permanente crise, pois, ao lidar racionalmente com os riscos da sua instabilidade, ela faz da própria mutabilidade o seu motor propulsor. A crise, para esse tipo de organização social, para essa móvel estrutura societária, é a normalidade.” (CARVALHO NETTO, 2004: 281-282)

2 A noção de identidade do sujeito constitucional aqui exposta é formulada, explicitamente, com base no instigante ensaio, de mesmo nome, de Michel Rosenfeld, o qual, já no início diz que “a identidade do sujeito constitucional (constitutional subject) é tão evasiva e problemática quanto são difíceis de se estabelecer fundamentos incontroversos para os regimes constitucionais contemporâneos.” (ROSENFELD, 2003:17)

3 A grande obra de Etienne La Boétie – “Discurso da Servidão Voluntária” – se mostra por demais atual, ainda mais quando estamos a refletir sobre a base de legitimidade das decisões no contexto moderno, pois como Newton Bignotto afirma, ao analisar a citada obra de La Boetie, “o que é estranho a La Boétie é que nós, que somos nascidos para a comunicação e, portanto, para nos reconhecermos como irmãos, suspendamos esse movimento e nos deixemos enfeitiçar pelo nome de Um. A linguagem que é a possibilidade da liberdade transforma-se assim, ao ser suspensa, num dos pilares da servidão”. (BIGNOTTO, 1984: 33-34)

4 A compreensão do lugar da soberania como um “vazio” não implica aceitação de qualquer “conteúdo”, já que se assim fosse estaríamos a admitir um relativismo ético absoluto, assumindo uma postura não cética, mas cínica em relação ao contexto moderno, já que “este conteúdo” será construído discursivamente em esferas públicas ampliadas, sendo sempre passível de ser revisto, sendo marcado pela contingencialidade e risco, mas que tal constatação não implica abdicarmos do “ganho maior” do direito moderno, qual seja, a indisponibilidade da forma – leia-se, liberdade e igualdade – como meio de legitimidade.

5 Neste ponto, explicitando o “lugar do qual falamos”, assumimos que pensar discursivamente o Estado Democrático de Direito impõe uma linha crítica-metodológica, a qual pode possibilitar visualizarmos as tensões e contradições presentes em nosso processo histórico de luta e afirmação de “direitos”, recusando, assim, visões auto-suficientes ou unívocas.

6 AGNON apud LAGES, Susana Kampff. Walter Benjamin: Tradução e Melancolia. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo (EDUSP), 2007, p.102.

7Para se poder apreender, adequadamente, toda a amplitude de categorias tais como “processo” ou “contraditório”, principalmente quando aplicadas ao Processo Legislativo democrático, será preciso abandonar, de uma vez por todas, uma compreensão rousseauniana, excessivamente concretista, da soberania popular, e compreender que, para uma visão procedimentalista do Direito e da política deliberativa, a soberania popular é difusa e tão-somente garantida em termos procedimentais.” (CATTONI DE OLIVEIRA, 1998: 11).

Francisco de Castilho Prates

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