O cumprimento das obrigações zoosanitárias como forma de promoção da função social da propriedade rural

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Ricardo Maravalhas de Carvalho Barros*
 
RESUMO
            Buscou-se com o presente artigo trazer à discussão aspecto secundário da função social da propriedade rural. Secundário não pela menor ou maior relevância da feição constitucional da função social da propriedade rural, mas sim, por tratar-se de tema implícito nos requisitos constitucionais e garantidores da função social estabelecidos nos incisos do artigo 186 da Constituição Federal. Muito pouco se aborda quanto aos desdobramentos destes requisitos constitucionais resultantes do exercício legal e regular da posse e propriedade rural. Num país de dimensões continentais como o Brasil, diversificadas atividades agropecuárias produzem externalidades que podem conflitar de forma primária ou secundária com os requisitos constitucionais garantidores da função social da propriedade rural. Dentre todas as possibilidades secundárias de confronto entre o exercício do direito de posse e propriedade e os requisitos da função social expressos na Constituição Federal buscou-se neste artigo aprofundar o entendimento quanto às obrigações zoosanitárias, especificamente a febre aftosa. Passada a fase introdutória e histórica que posicionou a moderna propriedade rural e sua proteção constitucional contra o seu mau uso e gozo, o artigo cientifico fixou discussão quanto à relevância do cumprimento das obrigações zoosanitárias como forma e condição do cumprimento da função social da propriedade rural, nos termos estabelecidos na Constituição Federal de 1988. Demonstrou-se, ao final do presente artigo, através de dados sociais e econômicos, as nefastas conseqüências do descumprimento desta obrigação secundária – obrigações zoosanitárias – o que infringe de forma latente o inciso IV do artigo 186 da Constituição Federal. Tal infração, como poderá ser verificada através da leitura do presente artigo atrairá ao proprietário descumpridor graves conseqüências jurídicas.  
Palavras Chave: Febre Aftosa, Função Social, Propriedade Rural.
 
ABSTRACT
 
The present article has tried to bring up the discussion about the secondary aspect of the rural property. That’s not secondary by the smallest or the largest constitutional relevance of the rural´s property social function, but as it has treated of an implicit theme in the constitutional requirements and the social function guarantors just established in the 186th article of the Federal Constitution. Just few abordations are found in the unfoldings of these constitutional requirements in the legal and regular activity of possession of the rural property. In a Continental size country as Brazil, several farming activities produce external aspects that may get into conflict in a primary or secondary way with the constitutional requirements guarantors of the social function. Among all the secondary possibilities of confrontation between the right of possession and property and the requirements of the social function expressed by the Federal Constitution, the present article has tried to go deep in the knowledge in the zoosanitarians obligations, mainly the aftosa fever. After the introductory and historical phase that has placed the modern rural property and its constitutional protection against the bad using, the scientific article has established a discussion about the relevance of the fulfilment of the zoosanitarian obligations as a way of fulfilment of the rural’s property social function, established in the 1988 Federal Constitution. By the end of the article, it was shown, through the social and economical data, the ominous consequences of the unfulfilment of this secondary obligation – zoosanitarian obligations – that infringes in a latent way the IV interpolated proposition of the 186th Federal Constitution article. That infraction, as it will be verified through the present article reading, will bring up to the disregarding owner serious juridical consequences.
 
Key Words: Aftosa fever, Social Function, Rural Property.
 
1. Introdução
            Cada vez mais, inúmeros autores escrevem acerca da função social da propriedade rural e seus requisitos legais.
            Ainda se discutem quanto aos requisitos estabelecidos nos incisos do artigo 186 da Constituição Federal. Para poucos doutrinadores, o aspecto econômico, expressado através dos índices de produtividade fornecidos pelo INCRA (GUT e GEE) ainda é a única via de definição quanto ao cumprimento ou não da função social da propriedade rural.
            Este posicionamento não é comungado pela maioria dos doutrinadores, muito menos por este artigo científico que, de forma clara, definiu como impossível a aplicação isolada do inciso II do artigo 185 da Constituição Federal ignorando-se os demais artigos e princípios constitucionais, como por exemplo, os artigos 1º, 3º, 5º, 170, 184, 186 e 225.
            O objetivo proposto neste artigo tem como premissa que para o cumprimento da função social da propriedade rural se faz necessário cumprir de forma cumulada os requisitos econômicos, ambientais, trabalhistas e sociais expressos nos incisos do artigo 186 da Constituição Federal. O presente abordará a obrigatoriedade por parte dos proprietários rurais em promover as medidas zoosanitárias (vacinação) e sua correlação com o cumprimento da função social da propriedade rural.
            O trabalho pretende demonstrar os impactos negativos advindos do surgimento de um foco de febre aftosa, principalmente os econômicos e sociais que evidenciam quando da omissão do proprietário rural na adoção de medidas zoosanitárias (vacinação), exposição de toda uma sociedade a riscos desnecessários.
            Sendo assim, se comprovada a negligência no cumprimento das obrigações zoosanitárias, em razão dos impactos sobre a economia do setor e sociedade, configura-se a propriedade rural, como descumpridora de sua função social da propriedade rural nos termos dos incisos do artigo 186 da Constituição Federal conforme restará demonstrado abaixo.
 
2. O Estado Social e a propriedade
            O Estado Liberal que pressupunha o total distanciamento do Estado dentro das relações individuais acabou por promover gigantesca deterioração social. A premissa do laissez-faire, laissez-passer resultou na criação de excluídos sociais, miséria, explorações entre outros problemas jamais vistos na humanidade. 
            Os ideais da proteção individual contra o absolutismo do soberano provocaram, na verdade, terreno fértil para a assunção ao poder pela classe burguesa emergente e a dominação do capital nas relações econômicas.
            O Estado, abstinente, garantidor do pacto social e da autonomia de vontade das partes, assistiu a triste história de famílias inteiras arrasadas pela exploração das fábricas da época que contratavam suas crianças para o trabalho.
            O caos instalado na época e o vácuo formado pela ausência de proteção estatal forçaram a necessidade da criação de um novo Estado, capaz de abrigar as necessidades sociais, destituindo-se a propriedade, o individualismo marcante e ponto central do Estado Liberal, idealizado por pensadores como Rousseou, Montesquie, Hobbes, Locke entre outros.
            Surge, então, através de inúmeros pensadores, a idéia do socialismo e suas vertentes que foi lentamente construída a partir de movimentos em defesa da classe e dos interesses operários.
            Em meados do século XIX, Marx e Engels, através da edição do “Manifesto do partido comunista[1] e dos Manuscritos econômicos e filosóficos”, negaram totalmente o conceito de propriedade privada, principalmente a agrária, e assim como todos os outros bens de produção.
            Marx, aliás, apostava no comunismo que permitiria “a eliminação positiva da propriedade privada como auto-alienação humana e, desta forma, a real apropriação da essência humana pelo e para o homem”[2]. Surge então o socialismo científico, ou marxista.
O socialismo marxista ou “científico” baseia-se em uma teoria de valor do trabalho e uma teoria de exploração dos assalariados pelos capitalistas. Embora Marx e Engels desprezassem o capitalismo com entusiasmos, eles respeitavam o grande aumento na produtividade e a produção resultantes dele. (…)[3]
            Segundo Ana Frazão de Azevedo Lopes[4] o socialismo surgiu como uma forma de suplantar a auto-alienação e assegurar a plenitude do homem. Para o comunismo, a sociedade burguesa ancorada e legitimada pelo Estado Liberal, longe de ter abolido diferenças, estabeleceu novas classes, novas condições de opressão, novas formas de lutar no lugar das antigas.
            As idéias socialistas de Marx eram radicais e extremistas, colocavam o capitalismo em xeque, ameaçado após a histórica vitória bolchevique na revolução russa.
 
            Assim, num passo adiante às idéias marxistas, como um peso mediano fazendo força de contra ponto às idéias socialistas e liberais, surge a idéia de que para superar a crise existente, estabelecida pelo Estado Liberal, seria necessária uma reforma social sem o rompimento definitivo com o capitalismo e a propriedade privada.
 
            Tal passo foi dado no século XX, na esteira do pensamento de Augusto Comte[5], pai do positivismo sociológico, segundo o qual a ciência deveria se basear exclusivamente nos fatos positivos observados e identificados pelas leis causais. Comte propôs segundo Ana Frazão de Azevedo Lopes[6], resolver a crise do mundo moderno por meio do estudo das leis da sociedade, a partir das quais se poderia estabelecer um sistema de idéias científicas que presidiria a reorganização social.
            Para Paulo Bonavides o Estado Social seria, por conseguinte, meio caminho andado, importando, pelo menos da parte da burguesia, o reconhecimento de direitos do proletariado[7] .
O estado social representa efetivamente uma transformação superestrutural por que passou o antigo Estado Liberal. Seus matizes são riquíssimos e diversos. Mas algo, no Ocidente, o distingue, desde as bases, do estado proletário, que o socialismo marxista intenta implantar: é que ele conserva sua adesão á ordem capitalista, principio cardeal a que não renuncia[8] .
              Passou-se, então, a defender-se o intervencionismo estatal no campo econômico e social, acabando com a igualdade formal, presente no Estado Liberal pela igualdade material com meta na justiça social.
Assim é que ‘a doutrina da função social emerge como uma dessas matrizes’, limitando institutos de conformação nitidamente individualista, em contraposição aos ditames do interesse coletivo – que se apresentam acima dos interesses particulares – concedendo aos sujeitos de direito não só uma igualdade em seu aspecto estritamente formal, mas permitindo uma igualdade e liberdade aos sujeitos de direito os igualando de modo a proteger a liberdade, de cada um deles, em seu aspecto material[9].
            Seguindo na esteira de Comte, importante lembrar do pensamento de Leon Duguit[10] para quem a propriedade nada mais era do que produto momentâneo da evolução social, sendo o direito do proprietário limitado pela missão social que lhe incumbe. Aliás, segundo Gustavo Tepedino e Anderson Schreiber[11], a Duguit é devida à difusão do termo função social da propriedade.
 
Com a concepção da propriedade direito natural, fica-se ao mesmo tempo na impossibilidade de limitar o exercício do direito de propriedade. A propriedade individual deve ser compreendida como um fato contingente, produto momentâneo da evolução social; e o direito do proprietário, como justificado e ao mesmo tempo limitado pela missão social que lhe incumbe em conseqüência da situação particular em que se encontra[12].
 
            Os pensamentos sociais citados acabaram por influenciar a legislação moderna de inúmeros países, dentre estes o próprio Brasil que, desde 1946 traz no corpo de suas constituições o aspecto funcional difundido por Duguit; porém, somente a partir de 1988, com a promulgação da Constituição Federal passou-se a disciplinar o princípio da função social como direito e garantia fundamental.
 
Com o advento da Carta Magna de 1988, ganha relevo a questão da função social na cena jurídica. As discussões doutrinárias passam a focar o tema a partir de sua base constitucional. De fato a Constituição Federal, ao adotar o princípio da função social, retomou a discussão da finalidade social do próprio direito[13].
 
            A partir de 1988 o ordenamento pátrio positivou a função social em inúmeros artigos constitucionais que disciplinavam o direito de propriedade e seu dever para com a função social, o que mais tarde, a partir de sua base, por força hierárquica, influenciaram inúmeras leis infraconstitucionais.
 
3. Conceito de função social da propriedade rural e seus requisitos
 
            Uma vez transmitida à evolução sistêmica pelo qual floresceu a função social que para o ordenamento pátrio atingiu seu ápice com a promulgação da Constituição de 1988, neste ponto se faz necessária uma precisa conceituação deste princípio para que se possa visualizá-lo, caracterizá-lo e dimensioná-lo, inclusive quanto às suas repercussões.
 
            O direito de propriedade encontra-se garantido ao indivíduo quase que a totalidade das leis do mundo e, na maioria dos casos, condicionado a função social que lhe é inerente. 
 
            Nesse contexto, a Constituição de 1988 garante através de seu artigo 5º, inciso XXII o direito de propriedade; porém, o faz de forma relativa e condicional ao cumprimento da função social da propriedade estabelecido no artigo 5º, inciso XXIII e no artigo 184.
 
(…) da mesma forma que é conferido um direito subjetivo para o proprietário reclamar a garantia da relação de propriedade, é atribuído ao Estado e à coletividade o direito subjetivo público para exigir do sujeito proprietário a realização de determinadas ações, a fim de que a relação de propriedade mantenha sua validade no mundo jurídico[14].
 
            Segundo Teizen Junior o texto constitucional inclui a propriedade privada como um dos princípios da ordem econômica e ditames da justiça social, ao lado da função social da propriedade. Considerada como princípio próprio (art. 170, incs. II e III)[15].
 
            Apesar de alguns autores entenderem que o termo função social da propriedade é vago e indeterminado, o que reflete o pensamento míope e minoritário, senão quase que extinto, inúmeros pensadores vêm definindo o instituto de forma clara e precisa.
 
            Comparato ensina que a Constituição Federal em pelo menos dois de seus dispositivos (art. 182, parágrafo 2º e 4º, e artigo 186), a função social da propriedade é apresentada como imposição do dever positivo de uma adequada utilização dos bens em proveito da coletividade e que o Estado exerce papel decisivo e insubstituível na aplicação normativa[16].
 
            Antônio C. Vivanco, citado por Grace Virginia Ribeiro de Magalhães Tanajura, assim define o instituto da função social da propriedade:
 
La función social es mi más ni menos que el reconocimento de todo titular del domínio, de que por ser um miembro de la comunidad tiene derechos y obligaciones com relación a los demás miembros de ella, de manera que si él há podido llegar a ser titular del domínio, tiene lá obligación de cumplir com el derecho de los demás sujetos, que consiste em no realizar acto alguno que pueda impedir u obstaculizar el bien de dichos sujetos, o sea, de lá comunidad. El direto a la cosa se manifesta concretamente em el poder de usaria y usufructaria. El deber que importa o comporta la obligación que se tiene com los demás sujetos se traduce em la necessidad de cuidarla a fin de que no pierda su capacidad productiva y produzca frutos em beneficio del titular e indirectamente para satisfaccíon de lãs necessidades de los demás sujetos de la comunidad[17].
 
            Já Antônio José de Mattos Neto define o mesmo termo da seguinte forma: A função social é paradigma que congrega duas atribuições: a social propriamente dita e a econômica. Ambos os aspectos – o social e o econômico – fazem parte do conceito função social da propriedade[18].
 
            Nota-se que ambos os doutrinadores citados são enfáticos ao trazerem para dentro do princípio da função social, a obrigação social e, não somente a obrigação econômica. Ou seja, visa o bem estar coletivo no sentido mais amplo que se possa dar a palavra, relegando ao segundo plano o interesse individual.
 
            No entendimento de Luciano de Souza Godoy:
 
A propriedade agrária, como corpo, tem na função social sua alma. Se a lei reconhece o direito de propriedade como legítimo, e assim deve ser, como é da tradição de nosso sistema, também condiciona ao atendimento de sua função social. Visa não só o interesse individual do titular, mas também ao interesse coletivo, que suporta e tutela o direito de propriedade. A propriedade agrária como bem de produção, destinada à atividade agrária, cumpre função social quando produz de forma adequada, respeita as relações de trabalho e também observa os ditames de preservação e conservação do meio ambiente[19].
 
            Destacam-se, assim, fazendo coro as palavras de Cristiane Lisita Passos[20], três princípios primordiais quanto ao cumprimento da função social do imóvel rural: o ecológico, o social e o econômico.
 
           Ainda de acordo com Tepedino e Schreiber[21], a doutrina italiana soube conceituar a função social, não como categoria oposta ao direito subjetivo, mas como um elemento capaz de alterar-lhe a estrutura, atuando como critério de valoração do exercício do direito.
 
            Diante dos conceitos transcritos, evidente que há cumprimento da função social da propriedade rural de forma ampla e genérica quando se cumpre à legislação fundiária, agrária, ambiental, trabalhista, tributária e civil.
 
            A função social da propriedade rural nada mais é do que a função/obrigação constitucional que a propriedade rural tem de, na forma da legislação em vigor, promover o crescimento econômico e social de todos aqueles que dela dependam respeitando-se o meio ambiente e as relações de trabalho.
 
            Ainda de encontro à idéia doutrinária acima no plano superior das normas nacionais, a Constituição Federal de 1988, há definição dos requisitos primários da função social definidos no artigo 186 como sendo: Aproveitamento racional e adequado; utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; observância das disposições que regulam as relações de trabalho; exploração que favoreça o bem estar dos proprietários e dos trabalhadores.
 
            Nota-se, inclusive, que o texto constitucional que fixa a forma de cumprimento da função social (art. 186), descrevendo todos os requisitos que devem ser atingidos, possui em sua redação o advérbio de modo “simultaneamente”, que acaba por exigir o cumprimento conjunto de todos os requisitos da função social sob pena de atrair a desapropriação estabelecida no artigo 184 da Norma Maior.
 
            Assim, não há como afastar do cumprimento da função social da propriedade rural questões sociais e econômicas; ou seja, deve o proprietário da terra exercer sua atividade de forma que garanta o desenvolvimento econômico e social de sua região, bem como promover o desenvolvimento social e econômico. O proprietário da terra tem por obrigação proteger sua região, através do exercício responsável da propriedade rural, social e economicamente.
 
            Como será visto adiante, uma das formas responsáveis de exercício da propriedade rural, como meio protetivo econômico e social da região onde se localiza o imóvel é através do cumprimento das obrigações zoosanitárias.
 
            Uma vez cumpridas as obrigações zoosanitárias, pode-se afirmar que toda uma sociedade estará resguardada contra os nefastos efeitos desencadeados pelo surgimento de algum foco de doença animal, como por exemplo, ocorreu nos Estados do Mato Grosso do Sul e Paraná há dois anos.
 
4. A febre aftosa e a obrigatoriedade de vacinação do rebanho
 
            O presente artigo jurídico é de grande desafio por trazer consigo ciência distinta ao direito. A pretensão de se ingressar em campo desconhecido, turvo e de difícil compreensão aos operadores do direito, a biologia animal, se faz necessária para o aprimoramento e compreensão do tema aqui levantado.
 
            Trata-se de matéria que foge a ciência jurídica, as questões técnicas envolvendo a sanidade animal – febre aftosa – serão abordadas neste artigo de forma superficial; porém, com dosagem suficiente para uma clara compreensão dos operadores do direito.
 
            A febre aftosa deve ser separada das zoonoses de grande potencial, ou seja, aquelas que possuem potencial de risco a vida humana[22]. Há de se fazer um esclarecimento que, apesar da febre aftosa não trazer ao homem riscos a saúde, alguns autores a consideram como zoonose de potencial menor, uma vez que pode, raramente, causar aftas nos lábios e mucosa oral humana, mas mesmo assim, a aftosa não é uma doença comum ao homem sendo este considerado um hospedeiro acidental.
 
A Febre Aftosa é considerada uma zoonose, embora o homem raramente se infecte e adoeça, sendo este um hospedeiro acidental. Fato comprovado pelo reduzido número de casos humanos descritos no mundo, mesmo perante as freqüentes oportunidades de exposição ao agente, a ampla distribuição geográfica e a alta incidência da enfermidade nos animais domésticos[23].
 
 
            Importante deixar esclarecido que apesar do pequeno risco de transmissão da enfermidade animal ao homem e o potencial e conseqüente surgimento de aftas, a febre aftosa não representa qualquer risco a vida humana, uma vez tratar-se de uma enfermidade tipicamente animal.
 
Clinicamente a aftosa pode ser confundida com outras enfermidades vesiculares, por este motivo, invalida qualquer diagnóstico realizado apenas com base clínica, sem a confirmação laboratorial. É importante salientar que apenas 40 casos foram documentados com isolamento e identificação de anticorpos no sangue de pessoas recuperadas, e a maior parte desses foram registrados na Europa onde as fontes mais freqüentes de infecção decorreram de acidentes de laboratório e infecção em ordenhadores, que foram expostos por contato direto, através de feridas cutâneas da mão durante a prática da ordenha de animais infectados[24].
 
            A febre aftosa é uma doença infecciosa de alta contagiosidade entre os animais, uma vez que se espalha pelo ar, de caráter agudo causada por inúmeros tipos de vírus e suas variações. A doença caracteriza-se por lesões vesiculares na boca, língua, espaço interdigital e úbere dos animais[25].
 
Atualmente sabe-se que produtos contaminados transmitem a infecção aos animais susceptíveis (PITUCO, 2001). O vírus se dissipa pelo contato entre animais doentes e susceptíveis, e pode contaminar o solo, água, vestimentas, veículos, aparelhos e instalações. O vento pode transportar o vírus a até 90 quilômetros. A doença atravessa fronteiras internacionais por meio do transporte de animais infectados e da importação (STEIN et al, 2001)[26]
 
            Os principais sintomas da doença nos animais são: perda de apetite; salivação excessiva; dificuldade de locomoção; cascos deformados; diminuição da produção de leite e a perda de peso[27].
 
            Fica evidente pelo exposto até aqui que a aftosa possui grave impacto econômico á toda atividade pecuária (a doença ataca todos os animais de casco fendido, mas principalmente os bovinos) uma vez que os prejuízos decorrentes da contaminação são extremos diante da perda de produtividade da atividade, e de sua fácil propagação e contaminação de outros rebanhos.
 
            Os prejuízos causados na esfera econômica, num primeiro momento, não são os únicos a surgirem com o foco da doença, pois inúmeros outros problemas sociais são desencadeados num segundo momento ao surgimento da aftosa. A barreira sanitária imposta à região foco de aftosa, acaba por paralisar todas as atividades econômicas secundárias e interligadas a pecuária (frigoríficos, curtumes, indústria de cosméticos, laticínios, leilões de gado, feiras de exposição, comércio, etc…), resultando em desempregos, perda de receitas de municípios, alto índice de inadimplência no comércio provocando prejuízos desastrosos a toda uma região e Estado.
 
Os impactos diretos e indiretos da doença são difíceis de mensurar. Uma série de aproximações e pressuposições seria necessária, já que os efeitos podem compreender desde prejuízos decorrentes da redução nos preços dos negócios que continuariam sendo realizados, limitação de exportação para alguns países, causando prejuízos econômicos a todos os segmentos da cadeia produtiva, desgaste na credibilidade nacional quanto à qualidade e sanidade dos rebanhos, até custos adicionais públicos e privados em adotar as medidas necessárias para conter o foco e retomar o status[28].
 
            Ainda hoje, a única e melhor maneira de se combater a enfermidade animal é através de vacinação periódica, conforme determina os órgãos oficiais dos entes da federação.
 
            No âmbito nacional existem inúmeras leis que determinam obrigatoriedade de vacinação dos rebanhos animais contra a febre aftosa, como por exemplo, o Programa Nacional de Erradicação da Febre Aftosa.
 
            Num plano superior das leis, precisamente a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 187, estabelece as diretrizes constitucionais que deverão ser adotadas pela política agrícola nacional, sendo certo que o parágrafo primeiro do referido artigo estabelece e fixa a obrigatoriedade do planejamento agropecuário que será definido através de lei infraconstitucional.
 
            Deve-se abrir parênteses aqui para esclarecer que o artigo 187 da constituição Federal não pode ser interpretado de forma isolada, mas sim, conjugado com os artigos 1º, 3º, 5º, 7º, 170, 186, 225 todos do mesmo ordenamento máximo.
 
            A regulamentação do artigo constitucional acima descrito ocorreu em 1991 com a edição da lei n. 8.171 de 17 de janeiro de 1991 que em seu artigo 4º estabelece ações e instrumentos para a defesa agropecuária. A mesma norma adiante, em seu artigo 27 “A”, se estabeleceu como objetivos da defesa agropecuária a saúde dos rebanhos.
 
            Anteriormente a Constituição de 1988, mais ainda em vigência, pode-se mencionar a lei federal de n. 569 de 21 de dezembro de 1948 estabelece as medidas de defesa sanitária animal em caso de febre aftosa, além de disciplinar a forma de indenização no caso de abate do rebanho contaminado.
 
            Além das normas mencionadas, inúmeras instruções normativas a respeito da febre aftosa são editadas ano a ano pelo MAPA (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento). Esse arcabouço de normas superiores e infraconstitucionais serve como diretrizes que devem ser seguidas pelos produtores, órgãos governamentais federais, estaduais e municipais para a erradicação da aftosa.
 
            As normas descritas acima, acabam por delegar aos entes da federação o dever/poder de disciplinar, fiscalizar e erradicar com a doença em questão, como, por exemplo, a executada no Estado de São Paulo através do Decreto 36.543 de 15 de março de 1993.
            Sem ingressar na seara das discussões políticas quanto a maior ou menor eficiência das políticas públicas de sanidade animal e proteção da pecuária nacional, até porque não é o objetivo do presente artigo, não se pode negar que existem políticas nacionais e regionais definidas em lei para o combate e erradicação da febre aftosa. 
 
            Logo, sendo uma exigência legal, o dever de vacinação por parte do produtor rural, objetivando a erradicação da febre aftosa, o seu não cumprimento deverá ocasionar conseqüências ao produtor, uma vez que sua atitude omissa acarretará reflexos desastrosos a toda uma sociedade o que conflita com as normas expressas na Constituição Federal de 1988.
 
5. Reações zoosanitárias ao surgimento de foco de febre aftosa
 
            O surgimento de um foco de febre aftosa força o desdobramento de inúmeras medidas administrativas, zoosanitárias e legais como forma de preservação da sanidade dos demais rebanhos existentes em regiões próximas ao foco, bem como no restante do país. Tais medidas visam, também, a proteção da atividade econômica, pois países importadores impõem embargos e restrições comerciais quando do surgimento de um foco da moléstia.
 
            Segundo as normas internacionais zoosanitárias e normas inferiores nacionais como, por exemplo, a Instrução Normativa DAS no 82 de 20 de novembro de 2003, para atenuar os efeitos de um foco de aftosa e evitar maiores contaminações, além da necessidade de extermínio de todo o rebanho onde se localizou o foco de aftosa (Lei 569/48), também se faz necessária à criação de uma zona de segurança sanitária, denominada zona tampão, que consiste no isolamento de 25 (vinte e cinco) quilômetros quadrados em torno do foco da doença.
 
            A zona tampão não deve ser confundida com um Estado federativo inteiro, muitas vezes tratado de forma generalizada, mas sim a zona correspondente ao raio de 25 (vinte e cinco) quilômetros do foco da doença.
            Apesar da clareza das normas legais vigentes, inclusive das normas internacionais, as autoridades administrativas de outros entes federativos alheios ao foco da doença, bem como outros países, insistem, como de fato ocorreu no ano de 2005, com o embargo de um Estado inteiro da federação, ou seja, cria-se um Estado tampão, o que acaba por trazer conseqüências sociais gravíssimas a toda uma região que não possui qualquer correlação com o foco de aftosa descoberto.
 
            Apesar de não ser apropriado, mas recorrendo-se a ferramenta da metáfora, guardadas as devidas proporções, na prática, quando do aparecimento de um foco da enfermidade aftosa, seja por cautela excessiva, por interesses econômicos e comerciais, ou mesmo por razões políticas, utiliza-se de uma bala de canhão para se aniquilar uma mosca.
 
            O Código Internacional Zoosanitário é de clareza solar na definição da zona tampão:
 
Uma zona é uma parte de um país delimitada para efeitos de controle sanitário.
(…)
Uma região é um conjunto de países ou de partes de países contíguos, delimitado para efeito de controle sanitário…
(…)
… Uma zona infectada é aquela na qual a doença está presente, porém que se acha em um país livre dela. Uma zona de vigilância separará a zona infectada do resto do país(acrescentamos Estado).Os deslocamentos de animais suscetíveis da zona infectada às partes do país livres da doença deverão ser objeto de controle estrito[29].
 
            Assim, verifica-se que qualquer outra atitude de bloqueio, embargo ou vedação ao trânsito animal que ultrapasse a criação da zona tampão no raio de 25 (vinte e cinco) quilômetros quadrados do foco da doença, torna-se descabida, exagerada e desnecessária o que acarreta prejuízos financeiros e instabilidade a toda uma sociedade.
 
            Além da criação da zona tampão que aniquila com toda a região onde se localiza o foco da doença, todo o rebanho das propriedades onde constadas à presença do vírus é abatido e enterrado sumariamente, nos temos da legislação acima descrita.
 
            Dependendo da extensão do foco da enfermidade contabiliza-se o extermínio de milhares de animais, podendo atingir proporções incomensuráveis, como ocorreu na Inglaterra no ano de 2000 quando do surgimento da síndrome da vaca louca, que resultou no aniquilamento de todo o rebanho nacional e extinção momentânea de toda uma atividade econômica[30].
 
6. Conseqüências econômicas e sociais pós-reconhecimento de foco da febre aftosa
 
            A história recente de nosso país demonstra precisamente às conseqüências socioeconômicas nefastas do surgimento de um foco de febre aftosa. Desta forma, a melhor maneira de se analisar e visualizar as conseqüências econômicas e sociais decorrentes do surgimento da enfermidade animal é através dos fatos pretéritos e concretos.
 
O OIE (Office International des Epizooties – Escritório Internacional de Saúde Animal) classifica doenças animais, baseado na significância relativa socioeconômica ou de saúde pública. Segundo o OIE, a febre aftosa é uma doença pertencente à lista A, ou seja, é uma doença transmissível possuindo um potencial de difusão muito sério e muito rápido, independente das fronteiras nacionais, trazendo conseqüências sócio-econômicas graves, de maior importância no comércio internacional de animais e produtos de origem animal. Por isto, esta doença tem, por parte dos organismos internacionais e governos, prioridade de exclusão, pois sua presença dita o fechamento das exportações[31].
 
            Aos 10 dias de outubro de 2005 viu-se nos noticiários a tragédia anunciada, a descoberta de foco de Febre Aftosa na cidade de Eldorado, localizada ao sul do Estado do Mato Grosso do Sul, precisamente na fazenda Vezozzo[32].
 
            Seguindo as normas internacionais zoosanitárias, todas as autoridades competentes do país foram notificadas e criou-se zona tampão de isolamento sanitário de raio de 25 (vinte e cinco) quilômetros em torno do foco de febre aftosa descoberto. Tal zona tampão de controle zoosanitário compreendeu os municípios Sul-Mato-Grossenses de Eldorado, Japorã, Itaquiraí, Iguatemi e Mundo Novo.
 
            A partir daquele momento, nenhum animal, produto ou subproduto de espécie animal entrou ou saiu da região do foco de febre aftosa. Posteriormente surgiram os embargos internos e externos a todo o Estado do Mato Grosso do Sul.
 
            Foi adotado, ainda, como medida de controle, o extermínio de todas as cabeças de gado existentes na Fazenda Vezozzo, e na região continuou-se a pesquisar a existência de outros focos da febre aftosa.
 
            As conseqüências econômicas foram desastrosas, as exportações diminuíram vertiginosamente uma vez que inúmeros países embargaram a entrada de carne brasileira o que representou quedas na exportação de carne na ordem de milhões de dólares americanos.
 
Alguns países restringiram as importações apenas do Estado do Mato Grosso do Sul, como a Rússia, o Chile e a Inglaterra. (…) Com isso, a restrição atinge cerca de 80% do volume exportado de carne bovina in natura e 20% da carne de suíno. Permanecendo esta situação e considerando-se que não haja desvio de exportações para os Estados não embargados, a queda esperada nas exportações seria de US$ 196 milhões em 2005. (…) De acordo com dados da Secretaria de Comércio Exterior (SECEX, 2005), a média diária de embarques caiu de US$ 46,2 milhões na primeira semana de outubro, para R$ 35,4 milhões na semana seguinte. Na primeira semana de novembro as vendas de carne somaram US$ 32 milhões. Em outubro de 2005, após o surto de febre aftosa no Mato Grosso do Sul, ocorreu decréscimo do volume exportado com relação ao mesmo período para 2004 de 27,18%.Em dezembro, ainda sem reflexos do novo surto no Paraná, houve um crescimento do valor exportado em 9,45%.
 
            Como se não bastassem os efeitos econômicos outros problemas sociais surgiram em decorrência do foco da febre aftosa no ano de 2005 no Estado do Mato Grosso do Sul, problemas graves inclusive desempregos com extensões nacionais.
 
            Tal fato obrigou aos empregados do setor produtivo da carne celebrar acordos garantidores dos respectivos empregos, como por exemplo, a realocação dos demitidos em razão da cessão das atividades econômicas na região do foco.
 
Trabalhadores de frigoríficos de estados vizinhos ao Mato Grosso do Sul começaram ontem a articular negociações para preservar os empregos. Só no Estado de São Paulo, 70 mil pessoas trabalham no setor de carnes e derivados. No Paraná, cerca de 30 mil. No país, o setor emprega 250 mil. Ontem, os trabalhadores de frigoríficos paulistas conseguiram garantia de emprego por 30 dias. O acordo foi resultado de negociação entre representantes da Força Sindical e do Sindicato da Indústria de Frios do Estado de São Paulo (Sindfrio). A central vai negociar, a partir de amanhã, a extensão do acordo de manutenção do nível de emprego para pelo menos quatro estados – Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina e Goiânia. Em razão do embargo às exportações brasileiras de carne, em conseqüência dos focos de febre aftosa registrados no país, frigoríficos da região ameaçavam demitir até 30% dos trabalhadores do setor. Parte deles já concedeu férias coletivas, outros, licença-remunerada[33].
 
            Infelizmente, conforme acima exposto, os reflexos oriundos do não cumprimento das obrigações zoosanitárias superaram a esfera econômica atingindo sobremaneira as relações sociais de toda uma coletividade.
 
            Inegavelmente a legislação nacional e a internacional exige o esforço conjunto de proprietários rurais e órgãos governamentais no combate da febre aftosa. Sem ingressar no mérito político e administrativo quanto à omissão e a má-gestão pública no combate a enfermidade, os produtores rurais descumpridores de suas obrigações, possuem grande parcela de responsabilidade quando deixam de exercer suas obrigações zoosanitárias..
 
            As conseqüências da ausência de vacinação estão acima contempladas, sendo certo que atos isolados de irresponsabilidade causam impactos e externalidades negativas no âmbito social e econômico.
 
            Uma vez comprovada a omissão do proprietário rural na sua obrigação legal de vacinação estará exercendo a propriedade do imóvel rural, de forma contrária aos ditames da função social, e deverá ser penalizado nos termos constitucionalmente expressos.
 
            O artigo 184 da Constituição Federal é claro ao definir como desapropriável, mediante justa indenização, o imóvel rural que “não esteja cumprindo sua função social”.
 
            A lei regulamentadora do artigo constitucional citado (Lei n. 8.629/93) traz em seu corpo todos os requisitos e procedimentos necessários para que, o imóvel descumpridor da função social, seja desapropriado.
 
            Comprovado o desrespeito o comando constitucional definidor do cumprimento da função social da propriedade rural, o infrator zoosanitário poderá, dependendo da gravidade da extensão de sua omissão, perder a propriedade do imóvel rural, nos termos e procedimentos da Lei n. 8.629/93.
 
            Importante esclarecer que não basta a ocorrência da simples omissão no cumprimento das obrigações fixadas na campanha de vacinação para que haja a incidência das conseqüências previstas no artigo 184 da Constituição Federal cumulado com os artigos da Lei n. 8.629/93. Será necessária a caracterização da omissão consciente de vacinação por parte do proprietário rural bem como a configuração de prejuízos sociais decorrentes da omissão.
 
            A não caracterização dos prejuízos sociais decorrentes da omissão de vacinação por parte do proprietário rural afasta a aplicação da pena/sanção da desapropriação para os fins da reforma agrária, pois não restará comprovado a existência de prejuízos econômicos e sociais, nos termos dos incisos do artigo 186 da Constituição Federal Brasileira.
 
            De outra borda, como reforço a argumentação, a simples infração legal zoosanitária, sem prejuízos econômicos e sociais é ínfima se comprado com o direito constitucional de propriedade. Ou seja, a existência de prejuízos superiores ao direito individual da propriedade, como por exemplo, os direitos sociais fundamentais, é que permitirá e autorizará a perda da propriedade individual.
 
Direitos sociais são os direitos do individuo e da coletividade que estão relacionados às prestações positivas do poder público nas áreas econômica e social, que tenham por objetivo a melhoria das condições de vida e de trabalho da sociedade[34].
 
            Em sua obra Direitos Humanos Fundamentais, Alexandre de Moares escreveu que Roberto Berinzone aponta a necessidade de uma interpretação constitucional, em especial em relação aos direitos humanos fundamentais, dinâmica e finalisticamente concorde com os reclamos mais latentes da comunidade[35].
 
            Assim deve ser a interpretação do hermeneuta no caso em concreto, pois a função social da propriedade rural é função protetora dos direitos sociais contra o abuso no exercício individual da propriedade rural; bem como porque na ocorrência de conflito de princípios constitucionais sendo eles o princípio individual do direito de propriedade versus os princípios sociais fundamentais, estes últimos devem prevalecer em razão da interpretação sistêmica da Constituição Federal e da ponderação do peso dos princípios conflitantes, conforme ensina Alexy[36].
 
            A inexistência de conflito entre direitos fundamentais sociais versus o direito individual de propriedade ensejará ao infrator da norma zoosanitária, apenas e tão somente as medidas disciplinares descritas nas respectivas leis instituidoras das campanhas de vacinação (leis de competência estadual), restando resguardado e inabalável o seu direito individual de propriedade.
 
7. Conclusão
 
            A função social da propriedade rural é uma garantia constitucional a toda a sociedade adquirida com a evolução do pensamento social, que protege ‘todos’ contra irresponsabilidades de proprietários rurais que, infelizmente, ainda nos dias de hoje, pensam no exercício da propriedade de forma soberana conforme estabelecido no Código Civil paternalista de 1916.
 
            Ao desdobrar os incisos do artigo 186 da Constituição Federal percebe-se que o proprietário rural, além do direito de propriedade, possui o dever de promover social e economicamente toda a sua região.
 
            Não apenas promover a sociedade, mas este é responsável, através do cumprimento de suas obrigações legais, pela proteção da sua região contra possíveis problemas sociais e econômicos desencadeados por razões diversas.
 
            É nesse feixe que se encontra o dever do proprietário rural em cumprir com todas as suas obrigações legais zoosanitárias, sob pena de descumprimento da função social.
 
            Os efeitos sociais e econômicos da confirmação de um possível foco de doença animal, precisamente a aftosa, já foram sentidos no país há poucos anos, sendo certo que acabaram por prejudicar não só a região onde se localizava a fazenda Vezozzo, no município de Eldorado, mas todo o setor produtivo da pecuária.
            Uma vez estabelecido em normas legais às obrigações zoosanitárias, os proprietários de imóvel rural, possuem o dever de seu cumprimento sob pena não só de medidas administrativas estabelecidas nas normas específicas, mas também de perda do direito de propriedade através da desapropriação estabelecida no artigo 184 da Constituição Federal.
 
            Neste caso o descumprimento da função social fica caracterizado pela infração aos incisos I, III e IV do artigo 186 da Constituição Federal.
 
            Como visto o não cumprimento das obrigações zoosanitárias pode desencadear riscos econômicos a todo o setor produtivo pecuário (inciso I do artigo 186), riscos trabalhistas pelo potencial de demissões em massa (inciso III do artigo 186) e riscos sociais causados pela paralisia do setor produtivo (inciso IV do artigo 186).
 
            Note-se que todos os incisos acima descritos devem ser interpretados de forma ampla a consagrar todos os demais artigos e princípios constitucionais conforme ensina Ronald Dworkin em sua obra Levando os direitos a sério[37].
 
            Comprovado de descumprimento das normas zoosanitárias pelo proprietário rural restará caracterizado a infração aos incisos do Artigo 186 da Carta Constitucional, o que provocará não só sanções administrativas específicas, mas também a perda da propriedade rural, para fins da reforma agrária, nos termos do artigo 184 do mesmo ordenamento superior. 
 
REFERENCIAS
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* Mestrando em Direito pela Universidade de Marília/SP. Advogado com escritório constituído na cidade de Marília, militante nos Estados do Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Paraná e São Paulo. Especialista pela Universidade de Londrina/PR.
[1] MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2002.
[2] MARX, Karl. Manuscritos Econômicos Filosóficos. Tradução de Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2002. 138 p.
[3] BRUE, Stanley. História do pensamento econômico. Tradução de Luciana Penteado Miquelino. São Paulo: Editora Thomson, 2005. Pg 155.
[4] LOPES, Ana Frazão de Azevedo Lopes. Empresa e propriedade: Função social e abuso de poder econômico. São Paulo: Quartier Latin, 2006. 91 p.
[5] COMTE, Auguste. Coleção Grandes Cientistas Sociais. Organizador José Albertino Rodrigues. São Paulo: Ática, 1989.
[6] Op. Cit.
[7] BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. São Paulo: Melhoramentos, 2004. 185 p.
[8] Op. Cit. 184 p.
[9] TEIZEN Jr. Augusto Geraldo. A função social no código civil. São Paulo: RT, 2004, p. 115.
[10] DUGUIT, Leon. Fundamentos de direito. Tradução de Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: LZN, 2003.
[11] TEPEDINO, Gustavo e SCHREIBER, Anderson. Questões Agrárias: Julgados comentados e pareceres. Organizador Juvelino José Strozake. São Paulo: Método, 2002. 120 p.
[12] Op. Cit. 22 p.
[13] FERREIRA, Jussara Suzi Assis Borges Nasser. Função Social e Função Ética da Empresa. ARGUMENTUM Revista de Direito. Universidade de Marília. Vol. 04. Marília: UNIMAR, 2004. 36 p.
[14] DERANI, Cristiane. A propriedade na constituição de 1988 e o conteúdo da função social. Revista de Direito Ambiental. 27 volume. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. 59 p.
[15] Op. Cit. 142 p.
[16] COMPARATO, Fabio Konder. Estado, empresa e função social. RT, São Paulo: RT, n. 732, p. 38-46, out. 1996.
[17] TANAJURA, Grace Virgínia Ribeiro de Magalhães. Função social da propriedade rural: com destaque para a terra no Brasil contemporâneo. São Paulo: LTr, 2000. 24 p.
[18] MATTOS NETO, Antonio de. Função ética da propriedade imobiliária no novo código civil. Direito Agrário Contemporâneo. Coordenação de Lucas de Abreu Barros e Cristiane Lisita Passos. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.   78 p.
[19] GODOY, Luciano de Souza. Direito Agrário Constitucional. O regime de propriedade. São Paulo: Atlas, 1998
[20] Op. Cit. 45 p.
[21] Op. Cit. 120 p.
[22] DOMINGUES, Paulo F. e LANGONI, Helio. Manejo Sanitário Animal. Rio de Janeiro: EPUB, 2001. 203 p.
[23] PITUCO, Edviges Maristela. A importância da febre aftosa em saúde pública. São Paulo: Centro de Pesquisa e Desenvolvimento de Sanidade Animal, 2005. 04 p.
 
[24] PITUCO, Edviges Maristela. Op. Cit. 04 p.
[25] Op. Cit. 163 p.
[26] SILVA, Thalita Gomes R. e MIRANDA, Silvia H. G. A febre aftosa e os impactos econômicos no setor de carnes. Piracicaba: CEPEA, 2005.
[27] Op. Cit. 163 p.
[28] SILVA, Thalita Gomes R. e MIRANDA, Silvia H. G. A febre aftosa e os impactos econômicos no setor de carnes. Piracicaba: CEPEA, 2005.
 
[29] BRASIL. Código Zoosanitário Internacional. Tradutor António João da Silva. Goiás: 1999.
 
[30] SILVA, Thalita Gomes R. e MIRANDA, Silvia H. G. A febre aftosa e os impactos econômicos no setor de carnes. Piracicaba: CEPEA, 2005.
[31] SILVA, Thalita Gomes R. e MIRANDA, Silvia H. G. A febre aftosa e os impactos econômicos no setor de carnes. Piracicaba: CEPEA, 2005.
[32] GRANER, Fabio. Para ministro foi um desastre lamentável. O Estado de São Paulo, São Paulo, 14 de outubro de 2005.
[33] JORNAL DO BRASIL. Disponível em: <http://www.jornaldobrasil.com.br>. Acesso em: 08 set. 2007.
[34] RIBEIRO, Marcus Vinicius. Direitos Humanos e Fundamentais. Campinas: Ed. Russell, 2007. 53 p.
[35] MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. São Paulo: Ed. Atlas, 2006. 05 p.
[36] ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte. 3. aufl. Franckfurt am Main: Suhrkamp, 1996.
[37] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo : Martins Fontes, 2002.

Ricardo Maravalhas de Carvalho Barros

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