O conhecimento do conhecimento científico

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Edgar Morin, um dos principais teóricos e pensadores contemporâneos, é judeu de origem sefardita, formado em Direito, História e Geografia. Realizou estudos em Filosofia, Sociologia e Epistemologia, sendo atualmente pesquisador do CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique). Autor de mais de 30 livros, dentre eles Introdução ao Pensamento Complexo, Ciência e Consciência, Os Setes Saberes Necessários para a Educação do Futuro, sua principal obra é constituída de seis volumes, denominada La Méthode, escrita durante três décadas e meia.

No capítulo 2 da obra Ciência e Consciência, o autor aborda o conhecimento do conhecimento científico, apresentando um balanço da aventura epistemológica vivida entre o mundo germânico e anglosaxão, que parte da evidência de que a cientificidade não se define pela certeza, e sim pela incerteza. Neste contexto, Karl Popper, aguçado em estudar o modelo da ciência, iniciou sua reflexão sobre o conhecimento científico e introduziu a idéia do falibilismo, demonstrando que uma teoria é científica pelo fato de ser falível e aceitar ser refuta.

Partindo da idéia de que a ciência era um modelo, cientistas, lógicos e matemáticos que formavam o Círculo de Viena queriam que o pensamento filosófico fosse baseado no que é observável e verificável. Karl Popper, o mais importante filósofo da ciência do século XX, mantendo contatos indiretos com os membros do círculo, contribuiu decisivamente na reflexão sobre o conhecimento científico, articulando todo o seu pensamento na Teoria do Falsificacionismo.

(…) é o falibilismo, sem dúvida nenhuma, o ponto de arranque de sua reflexão sobre o conhecimento científico. No domínio das ciências empíricas, naturais ou sociais, nenhuma teoria pode ser considerada uma aquisição definitiva do espírito humano, ou seja, nenhuma teoria pode ser considerada como definitivamente estabelecida ou definitivamente provada2.

Para Popper, a certeza teórica só pode se basear na dedução, pois a indução, partindo de fatos da observação incessantemente verificados, não leva a certeza verdadeira, porque:

(…) nenhuma teoria cientifica pode ser provada para sempre ou resistir para sempre à falseabilidade, existem teorias que subsistem, mas, posteriormente, são substituídas por outras que resistem melhor à falsificação. Popper troca a certeza pelo falibiüsmo, porém não abandona a racionalidade. Ao contrário, ele diz que o que é racional na ciência é que ela aceita ser testada e aceitar criar situações nas quais uma teoria é questionada, ou seja, aceita a si mesma como “biodegradável” (MORIN, 2000, p. 39).

Por ser a ciência uma atividade de investigação e pesquisa, os dados nos quais se baseiam as teorias científicas são objetivos, obtidos por comunicações críticas e antagônicas, com base na tradição histórica e cultural, feitas no meio da comunidade científica, “a própria objetividade dos dados científicos é mantida por um processo regenerador ininterrupto que questiona as mentes, os indivíduos, os grupos sociais etc. (…) a objetividade dos enunciados científicos reside no fato de eles poderem ser intersubjetivamente submetidos a teste.

Segundo Popper, a teoria científica é concebida como uma construção de pressupostos e postulados metafísicos, baseados em fatos impuros. Holton, voltado para as idéias bizarras dos cientistas, realizou estudos notáveis sobre o tema da imaginação científica e propôs a noção de Themata, “que é uma preconcepção fundamental, estável, largamente difundida e que não se pode reduzir diretamente à observação ou cálculo analítico do qual deriva, tem uma característica obsessiva, pulsional, que estimula a curiosidade e a investigação do pesquisador.”

Thomas Kunh inseriu o paradigma na construção das teorias. Conforme a época, “é o núcleo obscuro que orienta os discursos teóricos neste ou naquele sentido, sendo que as grandes mudanças da revolução científica acontecem quando um paradigma cede seu lugar a um novo paradigma”.3 Partindo desta idéia, Kunh e outros autores inferiram a incomensurabilidade das teorias científicas, afirmando que as teorias não se acumulam uma sobre as outras.

Outro conceito de destaque, desenvolvido por Lakatos e inserido na história da ciência, é o programa de pesquisas, que consiste em um grupo de teorias ligadas umas às outras, por princípios e postulados comuns. Os grupos possuem um núcleo duro, de postulados fundamentais que incentivam a pesquisa. Esta idéia de núcleo duro se aproxima muito da idéia de paradigma de Kuhn, por introduzirem na cientificidade os elementos aparentemente impuros (não científicos), mas necessários para o desenvolvimento científico.

Os diferentes tipos de conhecimento científicos são impulsionados por interesses diferentes, que se misturam na mente dos pesquisadores. Para Habermas, a ciência, ao conquistar a objetividade, dissimula os interesses fundamentais aos quais ela deve não só os impulsos que a estimulam, mas também as condições de toda objetividade possível. Neste sentido, Habermas propõe um tipo de psicanálise científica dizendo “conscientizem-se dos interesses que os animam, dos quais vocês não têm consciência.”

A construção das teorias envolve as noções por operações lógicas e a atividade individual criadora, em que o destino das pesquisas é entregue a comissões compostas por mentes notáveis individualmente. Estruturando-se a pesquisa com as atividades da mente e com os papéis da imaginação e invenção, visualizamos algo em comum entre a arte e a ciência, vez que há uma dimensão artística na atividade científica.

A ciência é impulsionada por um poder de transformação e antagonismo de idéias, totalmente inseparável do contexto histórico social. Ela é estimulada por conflitos fecundos e permanentes entre themata, metafísica e postulados que exprimem os desdobramentos da ciência fundada em “(…) quatro pernas, independentes entre si: empirismo e racionalismo, imaginação e verificação” 4.

Para Edgar Morin a ciência é uma comunidade/sociedade, ou seja, comunidade porque unida por seus ideais comuns e com a regra verificadora do jogo aceita pelos seus membros e sociedade por ser divida por antagonismos de todas as ordens, pessoas e vaidades. Trata-se de um fenômeno normal para todas as sociedades organizadas que buscam um tecido comunitário e fraternizante, em que a regra é a verificação e a originalidade em relação às realidades culturais.

Ao refletir sobre ciência e democracia, Popper afirma que a ciência é uma sociedade democrática, em que o sistema não tem verdade absoluta. A democracia é propriamente científica e a verdade é sempre provisória, considerando que a regra é a investigação.

Introduzindo uma idéia hegeliana, Popper desenvolve o papel “positivo” do negativo, em que, por serem os erros refutados (razão “negativa”) e eliminados, a ciência progredia (razão positiva).

A regra do jogo científico é institucional e mental, em que não há pluralidade de debates, pois a democracia não deve contaminar a comunidade científica. Esta idéia é aceita pela sociedade moderna por os próprios estados são os beneficiados com as grandes descobertas.

Por fim, Morin considera a ciência como um processo recursivo auto-ecoprodutor. Por meio de um movimento ininterrupto da objetividade, consenso, comunidade/sociedade e tradição crítica, a ciência se autoproduz, mas também se autoecoproduz, com base no contexto histórico/social. O processo é recursivo, porque os efeitos ou produtos do processo se tornam produtores e causas.

Neste contexto, a ciência inseparável do contexto histórico/social, deve ser considerada uma atividade de investigação e pesquisa, em que os erros são sistematicamente assinalados e constantemente corrigidos.

Os posicionamentos de Kuhn, Lakatos e principalmente a teoria de Popper, proporcionaram uma reviravolta epistemológica. A definição das regras do jogo, a avaliação detalhada e atenta das idéias alheias, a busca de aperfeiçoamento das idéias e a possibilidade de escolha racional entre conjecturas disponíveis é um projeto com repercussões não só na ciência, mas também no plano social.

Contudo, críticas contundentes recaem principalmente na teoria desenvolvida por Popper. Partindo do bojo da filosofia proposta, toda e qualquer teoria deve ser refutada, assim, isso se aplica a própria teoria da falseabilidade popperiana. Portanto, a falseabilidade deve ser falseável em si mesma.

Edgar Morin evidenciou que Popper contribuiu com destaque no campo da filosofia das ciências, opondo seu pensamento a duas tendências marcantes da epistemologia anglo-saxônica: a do positivismo lógico e a da filosofia da “linguagem”, que inspiraram, de um lado, o neopositivismo lógico e, do outro, a filosofia “lingüística”. Para ele, o que importa é que as teorias científicas sejam formuladas do modo mais aberto e menos ambíguo possível, a fim de estarem sujeitas ao critério da refutabilidade.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MORIN, Edgar, Ciência com consciência, Tradução de Maria de Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória – Ed. Revista e modificada pelo autor 4ª ed. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

OS FILÓSOFOS – Clássicos da Filosofia, Vol. II, Organização: Rossano Pecoraro – Editora: Vozes – Rio de Janeiro: Puc Rio – 2008.

 

2 OS FILÓSOFOS – Clássicos da Filosofia, Vol. II, Organização: Rossano Pecoraro – Editora: Vozes – Rio de Janeiro: Puc Rio – 2008, p. 329.

3 MORIN, Edgar, Ciência com consciência, Tradução de Maria de Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória – Ed. Revista e modificada pelo autor 4ª ed. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 45.

4 MORIN, Edgar, Ciência com consciência, Tradução de Maria de Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória – Ed. Revista e modificada pelo autor 4ª ed. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 53

Lidiane Mauricio dos Reis

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