O conceito de sujeito de direito em paul ricoeur

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Introdução

Desde que as relações jurídicas passaram a ser classificadas e escritas em textos normativos uma das maiores dificuldades da filosofia do direito é determinar quem é o sujeito de direito. Esta é uma idéia quase que evidente, e uma simples leitura dos nossos códigos revela isso. “Matar alguém”, “Ofender a integridade física de alguém” revela que nosso direito se estrutura em enunciados descritivos de ações.

A busca pelo sujeito de direito procede-se por ações de identificação. Mas essa não é uma procura aberta. A procura da identificação é uma procura por um sujeito capaz. Como diz RICOEUR (2008,21):“Examinando as formas mais fundamentais da pergunta quem? Somos obrigados a conferir sentido plenos a noção de sujeito capaz”.

A capacidade é o núcleo de toda jurisdição. Não é á toa que o Código Civil diz em seu artigo 1º “ Toda pessoa é capaz de direito e obrigações na esfera civil” ( grifo nosso). Mas a idéia de capacidade por si não constrói o direito. À idéia de capacidade está agregada o reconhecimento e o respeito ao homem. Esta operação levada adiante pela tradição liberal é imprescindível para darmos sentido ao direito moderno. Mas não é somente o reconhecimento que está agregado a noção de capacidade. À capacidade designa também atribuição. A identificação de um agente significa atribuir á alguém uma ação.

O sujeito capaz é o sujeito que pode ser avaliado. Podemos dizer que a ação de um sujeito capaz é boa ou má, podemos dizer que um sujeito capaz é ou não é digno de nossa estima. Essa capacidade de valorar os atos do sujeito capaz é para Paul Ricoeur o ponto fundamental da noção de sujeito capaz. Diz Ricoeur (2008, 24): “ é aqui que a noção de sujeito capaz atinge seu mais elevado significado. Nós mesmos somos dignos de estima ou respeito desde que capazes de considerar boas ou más, declarar permitidas ou proibidas as ações alheias ou nossas.

Mas o sujeito capaz, isto é o sujeito dotado de direito de deveres, não é suficiente para considerar-se como sujeito de direito. Um sujeito de direito é aquele que está inserido em um contexto público, que está inserido em um contexto político e comunitário. Paul Ricoeur diz então que um sujeito de direito é aquele que está mediado continuamente por formas interpessoais de alteridade e formas institucionais de associação.

O que isto significa? Quando um sujeito age, ele cria uma polaridade, cria uma relação “eu-tu’. Os atos de fala são os melhores exemplos dessa ligação. Quando alguém fala, ele fala para alguém. O falar sozinho não carece de sentido, ou só tem sentido psicológico”.

Essa interação “eu-tu” torna-se uma relação capaz de criar sujeitos de direito quando o eu se vê no tu, quando acontece o que Ricoeur chama de “eu mesmo como outro”. Nessa relação “eu-tu” deve vir inserida em um contexto de veracidade, de sinceridade. Eu só posso me ver no outro se acreditar que o outro é sincero.

Mas a relação interpessoal não é suficiente para per si para descrever o surgimento do sujeito de direito. Não relações de fala aparecem sempre um terceiro, que é o referente ou a materialização do eu mesmo como o outro. Um exemplo claro do surgimento do terceiro acontece nos atos de promessa. Na promessa a minha capacidade de agir de acordo com minha intenção cria um pacto que se estende pro futuro. Essa distenção para além do eu e tu presente ultrapassa o face-a-face e gera expectativa para toda a comunidade.

Essa capacidade da promessa criar uma relação triádica já era explorada por Nietsche no século XIX. Na segunda dissertação da Genealogia da Moral ele diz (NIETZSCHE,1999.47): “ Criar um animal que pode fazer promessas – não é esta a tarefa paradoxal que a natureza se impôs, com relação ao homem? Não é este o verdadeiro problema do homem?”

Esse embrião jurídico que nasce pela promessa reforça a tese de que a noção de sujeito de direito é fundamental para a filosofia jurídica contemporânea.

Após a promessa todo âmbito jurídico está ligado. Após a promessa, o sujeito de direito está devidamente criado. O sujeito capaz se inseriu na espera pública como sujeito de direito.

Isso nos leva a crer que todo problema jurídico é também um problema político. “ O poder político, através de todos os níveis de poder considerados, apresenta-se em continuidade como o poder por meio da qual caracterizamos o homem capaz” ( 2008,29).

Como elemento político a noção de sujeito capaz foi fundamental para o florescimento do liberalismo.O liberalismo isolou o sujeito de direito do contexto da esfera pública e recolocou em um espaço de contrato fundacional e a-político. È como se no momento em que pactua, o homem se isola de toda comunidade para decidir o futuro dessa comunidade.È um relação paradoxal em que um sujeito de direito dado pelo jogo comunitário se torna sujeito de direito apartado da sociedade. Por exemplo, em Hobbes o sujeito que pactua em ceder parte de sua liberdade para o estado é um sujeito que entrou no jogo contratual plenamente capacitado como sujeito de direito.3

A idéia de surgimento de terceiro pela promessa e a idéia de sujeito de direito que pactua encobriu a relação primordial eu-tu. “Ora quem é o defrontante da justiça? Não o tu identificado pelo teu rosto, mas cada um na qualidade de terceiro” (2008.30).

Assim, a idéia de justiça surgida no liberalismo é fundamentada no elemento terceiro e não na relação binária “ eu-tu” Essa justiça universal, a justiça de terceiro atingiu seu apogeu em Kant. Com uma justiça baseada no imperativo categórico, do “faça como se tua ação fosse uma máxima de ação universal”

No século XX o filósofo norte-americano Richard Rorty percebeu esse esquecimento da relação pessoal para a construção da justiça.

No célebre texto Justiça como lealdade ampliada, Rorty nos dá uma excelente descrição pragmatista da justiça. A partir de um cenário em que temos um familiar nosso procurado pela justiça, não temos pudor ao esconde-lo da polícia. Aparece aí a lealdade. Mas se esse ato de lealdade preocupar alguém, podemos nos sentir balançados entre o contar e o esconder. Quando maior a identificação com o prejudicado maior será o dilema. Será que nesse momento existe um conflito entre lealdade ou justiça, ou será esse um conflito entre lealdade com grupos amplos e lealdade com grupos pequenos.

A substituição de justiça por lealdade é a própria ética pragmatista, que abidicar-se de usar conceitos universais.

Rorty nos conta que a tradição filosófica, principalmente Platão e Kant, associam lealdade á sentimentos e justiça a racionalidade.Porém não há nada que diga que essa ligação é validade e que, o certo é sempre estar no lado da razão. Não há um tribunal da razão, que atua como ultima estância de julgamento de nossas ações.

O filósofo americano está querendo dizer que a lealdade, ou a relação eu-tu na terminologia de Ricoeur” é importante para a construção da justiça. Não é somente por imperativos universais que iremos resolver nos dilemas éticos e morais. O terceiro elemento que surge da relação interpessoal é inevitável, mas isso não que dizer que devemos construir uma justiça pautada exclusivamente nesse elemento. A noção de sujeito de direito é fundamental para a sustentação de nossa justiça. A partir dessa idéia a relação dever e responsabilidade é posta em espaço público. Usar dessa noção de sujeito de direito para construir uma justiça excessivamente universalista talvez não seja o melhor caminho para resolvermos nossos problemas jurídicos. Temos que ter sempre em mente que o sujeito de direito advém do sujeito capaz. E um sujeito capaz é aquele que tem deveres e responsabilidades. O esquecimento do sujeito capaz é o esquecimento de nossas responsabilidades e dos nossos jurídicos. Trazer de novo a cena, esses dois elementos nos colocará melhor capacitados para resolver questões jurídicas.

 

Referência Bibliográficas:

NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo, Cia das letras p.47.

RICOEUR,P: O Justo. Tradução Ivoneti Beneditti. Ed. Martins Fontes São Paulo 2008. p. 21-31.

Rorty, R: Justiça como lealdade ampliada. Tradução: Paulo Ghiraldelli Jr. Disponível em << http://portal.filosofia.pro.br/arquivo-rorty.html>> Acesso em: 28/08/2010.

Vade Mecum, Código Civil. Ed. RT,2007 .

 

 

3 Ricoeur, Paul: O Justo. P.31. 2008.

Maria Cristina Vidotte Blanco Tarrega

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