Leis invisíveis

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“O essencial é invisível aos olhos”
(Antoine de Saint-Exupéry)

Sixto Martinez cumpriu serviço militar num quartel de Sevilha. No pátio desse quartel havia um banquinho junto ao qual um soldado montava guarda, dia após dia, noite após noite. Sempre fora assim, e porque sempre fora assim, havia de ser assim. Um dia, alguém quis saber a origem daquela estranha cerimônia. Revirando arquivos, descobriu-se que fazia trinta e um anos, dois meses e quatro dias que um oficial tinha mandado um soldado montar guarda ali para que ninguém se sujasse na tinta fresca de um banquinho recém-pintado.
Essa fábula, contada por Eduardo Galeano em Burocracia, no Livro dos Abraços, reproduz uma outra, muito conhecida, e que circula na internet com o nome de “Os cinco macacos”. Ambas mostram por que as coisas são como são.
Na parábola “Os cinco macacos”, cientistas puseram numa gaiola cinco macacos e uma escada. No alto dessa escada, uma penca de bananas. Toda vez que algum dos macacos tentava subir a escada para apanhar as bananas, acionava um dispositivo que disparava jatos de água gelada e ensopava os demais. Com o tempo, o desconforto da água gelada desencorajou os macacos a comerem as bananas, e sempre que um deles ia em direção à escada com a intenção de pegar as frutas, os outros lhe aplicavam uma surra exemplar. Então os cientistas tiraram da jaula um daqueles macaquinhos e puseram um novato em seu lugar. Sem saber da água gelada, o recém-chegado voou para as bananas, mas assim que pôs os pés na escada, acionou os jatos e os outros quatro, encharcados e raivosos, lhe aplicaram uma coça inesquecível. Depois de algumas surras, o novato aprendeu que não devia se meter com aquelas bananas. Os cientistas, então, tiraram um segundo macaquinho daquele grupo inicial, e o mesmo ritual se repetiu. Quando deu de ir em direção à escada, os colegas deram a ele o castigo que o seu atrevimento merecia. De macaco em macaco, os cientistas foram substituindo todo o grupo, até que restaram na jaula macacos que nunca tinham sido molhados pelos jatos de água, mas participado, cada um a seu tempo, das coças aos demais membros do grupo. Então, os cientistas substituíram um desses macaquinhos por um novato. Quando o sujeito, ainda ressabiado, cismou de ir em direção à escada, os outros quatro, que nunca tinham sido incomodados com os jatos, lhe aplicaram uma sova impiedosa.
Se você pudesse perguntar-lhes por que tinham feito aquilo, diriam:
 — “Sei lá! Desde que chegamos por aqui as coisas funcionam assim: se o sujeito for em direção àquela escada a gente desce o braço!”
DUNCAN J. WATTS conta em seu “Tudo é óbvio, desde que você saiba a resposta” (Ed. Paz e Terra, SP, 2011), que, no início dos anos 70, o psicólogo social Stanley Milgram propôs a um grupo de alunos uma experiência desafiadora. Jovens, e gozando de boa saúde, esses estudantes deveriam entrar num metrô apinhado de gente, em Nova York, e se dirigir aleatoriamente a pessoas presumivelmente mais velhas e cansadas do que eles e pedir para que esses passageiros lhes cedessem seus lugares. O experimento de Milgram permitiu observar que mesmo em um ambiente naturalmente impessoal e de encontros casuais e fugazes como uma simples viagem de metrô, as pessoas também estavam condicionadas a obedecer ao que, anos antes, na Universidade de Yale, ele chamara de “argumento de autoridade”, isto é, em geral, as pessoas se comportam de modo obediente e irrefletido diante de uma ordem contrária ao que é razoavelmente esperado apenas pelo fato de suporem que a pessoa de quem aquela ordem inusitada partiu estava autorizada a dá-la. Milgram concluiu, também, que boa parte das “regras” que modelam a nossa conduta nas diversas situações cotidianas nunca foi enunciada, nem poderá sê-lo, mas essas tais regras existem e compõem um emaranhado de “normas” imaginárias a que chamou de “senso comum”. No caso do metrô, o “normal”, segundo esse “senso comum”, é que os mais novos cedam seus lugares aos mais velhos, ou mais cansados, e não o contrário, mas isso não está escrito em lugar nenhum.Qualquer de nós que se proponha a refletir sobre o experimento estará propenso a concluir que o fato de jovens saudáveis terem pedido àquelas pessoas que se levantassem e lhes cedessem seus lugares era uma conduta que claramente contrariava o “senso comum”, um estado de coisas ao qual estamos naturalmente habituados. Mas onde isso está escrito? O experimento de Milgram provoca ainda outras indagações: em que bases lógicas esse “senso comum” se apoia, e o que faz com que essas regras invisíveis regulem situações cotidianas e se modifiquem de acordo com os diversos ambientes em que atuam, ou se atualizem segundo os costumes, a cultura e o modo de viver das pessoas a quem se destinam? Que tipo de sanção um comportamento contrário a esse “senso comum” pode provocar, e de onde tira a legitimidade para justificar que essa sanção é equitativa ou necessária?
WATTS observa, por exemplo, que se há espaço suficiente para duas ou mais pessoas, em um ambiente qualquer, uma regra não enunciada as empurra o mais longe possível umas das outras. A quebra dessa regra imaginária que determina o afastamento compulsório entre duas ou mais pessoas é razoavelmente tolerada num trem lotado, onde todos disputam um espaço diminuto, com as mesmas dificuldades de acomodação, porque o fato de um punhado de gente ter de se acotovelar para chegar à casa, de certo modo justifica o constrangimento de um indivíduo ficar quase que com o rosto colado no rosto do vizinho da frente. Mas esse mesmo comportamento já não será minimamente tolerado se um indivíduo, num elevador, ficar frente a frente com outro, em vez de entrar e ficar de frente para a porta, como “todo mundo faz”. Em nenhum lugar está escrito que num trem lotado uma pessoa pode ficar frente a frente com a outra, e num elevador deve entrar e ficar olhando para a porta. Essa “norma” de conduta compõe um código de civilidade que pertence ao que Milgram chamou de “senso comum”. WATTS concorda, ainda, que é até bem possível explicar como isso acontece, mas jamais porque isso acontece, e que esse código imaginário que formata o senso comum não ajuda a explicar por que as coisas são como são, mas a aceitar o mundo da forma como ele é. Não há argumentos racionais para explicar como essas regras são enunciadas nesse universo incógnito. No complexo cipoal de regras imaginárias que compõem o “senso comum”, as coisas são porque são.
Se você prestar atenção, boa parte das situações corriqueiras da vida civil está repleta de regras assim, que ninguém sabe quando ou onde começaram a se formar, nem a lógica que as alimenta. Mas é inegável que em certos casos essas normas do “senso comum” são até mais efetivas do que aquelas criadas, deliberadamente, para regrar, e necessariamente acompanhadas de uma eficiente carga de sanção. São as regras do “senso comum” que, verdadeiramente, mantêm a harmonia das relações interpessoais em situações onde o direito ainda não chegou ou não se interessou em chegar.
No mundo jurídico, as coisas não são muito diferentes. Muito do que está na norma posta, no conceito erudito da lei, não é mais do que uma apropriação direta daquilo que é próprio do “senso comum”.  
O art.5° da Constituição Federal brasileira diz, por exemplo, que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, embora seja certo, como está em ORWELL (A Revolução dos Bichos), que “alguns são mais iguais do que os outros”. Essa ideia de que “todos são iguais perante a lei” decorre, obviamente, do senso comum, daquele comportamento que as pessoas naturalmente esperam das leis.
O inciso IV desse mesmo art.5° diz ser livre a manifestação do pensamento, “sendo vedado o anonimato”, mas as políticas públicas voltadas à segurança estimulam a denúncia de crimes e asseguram esse anonimato.
O inciso I do art.5° diz que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”, mas a CLT diz que mulheres não podem, por exemplo, trabalhar em lugares insalubres ou perigosos.
Ao tratar da morte presumida, como uma das formas de se pôr fim à personalidade civil, o art.7°, I, do Código Civil diz que a morte presumida pode ser declarada quando “for extremamente provável a morte de alguém que estava em perigo de vida”. O núcleo teórico do conceito do que é “extremamente provável” obviamente pertence ao “senso comum”. O inciso II desse artigo diz que também se pode presumir a morte se alguém, feito prisioneiro em campanha, não for encontrado em até dois anos após o término da guerra. Essa presunção deflui do “senso comum”, do que ordinariamente acontece, embora não seja incomum a notícia de que prisioneiros tenham sido encontrados vivos, e com boa saúde, muitos anos depois de terminados os combates.
O art.15 do Código Civil diz que ninguém pode ser constrangido a se submeter, “com risco de vida”, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica. O conceito de “risco de vida” é técnico, não pertence ao mundo do direito. O direito, para definir pessoa humana, diz, por exemplo, que a personalidade civil da pessoa natural “começa do nascimento com vida”. Tanto o conceito de “nascimento com vida” quanto o de “risco de vida” são médicos. Quando se dá o “nascimento com vida”? O que é vida? Esses conceitos não estão ao alcance da ciência jurídica, mas da Medicina. A ciência médica define o que é vida e morte; o legislador apenas se apropria desses conceitos para definir uma situação jurídica. Mas esses conceitos de vida e morte, médicos ou jurídicos, fiam-se num inegável “senso comum”.
No campo das obrigações, o art.233 do Código Civil diz que a obrigação de dar coisa certa “abrange os acessórios dela”; o art.237 desse Código diz que “até a tradição pertence ao devedor a coisa”. O conceito de “acessório da coisa” é do “senso comum”, assim como a presunção de que se a coisa está de posse do devedor, a ele lhe pertence até que lha tradite a outrem.
O art.126 do Código de Processo Civil diz que o juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei, cabendo-lhe, em cada julgamento, aplicar as normas legais. Na falta dessas normas, deverá recorrer “à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito”. Todos esses conceitos derivam do “senso comum”.
O art.131 do mesmo CPC diz que o juiz apreciará livremente a prova, devendo indicar, na sentença, “os motivos que lhe formaram o convencimento”. Nesses “motivos” reside muito do “senso comum”.
No Código Comercial, os usos e costumes são fontes materiais de direito. O que são “usos e costumes” senão manifestações repetidas do “senso comum”?
O Código Civil de 2002, declaradamente construído à base de conceitos abertos, utiliza-se, a todo momento, de expressões como “máximas da experiência, “o que ordinariamente acontece”, “razoavelmente deixar de ganhar” e “inadimplemento substancial”, para ficar nesses exemplos. Todos esses conceitos são aplicados em situações jurídicas nas quais o juiz é diariamente exigido, mas são, eles mesmos, grandemente informados pela noção de “senso comum”.
As presunções são outro exemplo disso. O que é a jurisprudência senão a repetição de decisões no mesmo sentido sobre situações reproduzidas na vida civil e que acabam, por uma ou outra razão, desembocando no judiciário quando alguém decide romper o script que ninguém sabe onde ou quando começou a ser desenhado?
As súmulas de efeito vinculante não são, por acaso, um costume repetido nos tribunais, que os juízes, a pretexto de uniformizar a sua jurisprudência, decidiram padronizar para que advogados e juizados inferiores não se sintam, a todo instante, encorajados a desafiar uma espécie refinada de “senso comum”?
Ao tratar dos deveres das partes e de seus procuradores, o art.14 do Código de Processo Civil brasileiro diz que todo aquele que litiga em juízo, ou que de algum modo participa do processo, deve “expor os fatos em juízo conforme a verdade, proceder com lealdade e boa-fé, não formular pretensões, nem alegar defesa, cientes de que são destituídas de fundamento, não produzir provas, nem praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou defesa do direito e cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final”. Todos esses conceitos são, antes de jurídicos, nascidos do “senso comum”.
Aí me ocorreu que se Ulpiano estava certo, e fazer justiça é dar a cada um o seu, o direito não é senão a mais pura manifestação do “senso comum”, com o que o não-direito é tudo o que contraria a lógica imaginária do “senso comum”, o que é, em si mesmo, outro “senso comum”.

Jose Geraldo da Fonseca

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