Jogo do bicho e contrato de trabalho

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Quem passa pela av. Presidente Wilson, próximo ao prédio da Firjan, ou pela rua Graça Aranha, nos fundos do Tribunal Regional do Trabalho, vê um monte de gente sentada numa cadeirinha apontando jogo do bicho. Quem tiver uns minutos a perder e se der ao trabalho de ficar por ali, como quem não quer nada, vai ver homens, mulheres, juízes, advogados, policiais, gente simples e gente engravatada fazendo a sua “fezinha” naquele inocente joguinho de azar. A hipocrisia das leis diz que esse jogo é ilegal, mas é explorado oficialmente e tolerado pela polícia, o que prova que, no Brasil, todos são iguais perante a lei, mas alguns são mais iguais que os outros.

Como juiz do trabalho, julguei alguns casos em que os cambistas do bicho vinham pedir o reconhecimento do vínculo de emprego com o bicheiro, ou com o dono da banca. Em todos os casos que julguei deferi o vínculo de emprego e em todos os casos em que deferi o vínculo de emprego o meu tribunal reformou a minha sentença e julgou o pedido improcedente. Polícia, justiça, governo, poder público. Todo mundo se locupleta à custa do jogo do bicho, menos o cambista, ou apontador. Para ele, tanto faz que o jogo renda milhões de reais por dia. Ele continuará ganhando a sua merreca e fugindo da polícia sempre que a propina não é boa ou o bicheiro fecha a torneira do dinheiro fácil. Jogo do bicho não é crime, mas simples contravenção penal. O melhor a fazer é regulamentar a atividade do jogo. Punir, reprimir, perseguir, só faz aumentar a procura e a ganância da polícia.

Para o direito do trabalho, o trabalhador pode envolver-se em atividades que são proibidas ou ilícitas. A utilização de mão de obra do trabalhador em atividade proibida gera, apenas, irregularidade formal, mas não impede o reconhecimento do vínculo de emprego. Um menor de idade não pode, por exemplo, trabalhar em termas, ou numa boate, mas, se o faz, isso não impede que o juiz reconheça a existência do contrato de trabalho e determine a sua rescisão compulsória porque a atividade não é ilícita, mas apenas proibida para ele em razão da idade. Mas o tratamento é diferente quando se trata de uma atividade ilegal, como é o caso do jogo do bicho. Se explorar o jogo do bicho é uma contravenção penal, então, em tese, quem trabalha apontando o jogo o faz numa atividade ilegal, e não pode, depois de finda essa relação com o bicheiro, ir à Justiça reclamar o reconhecimento do vínculo de emprego. Os que pensam assim não têm nenhuma visão sociológica do problema do jogo nas grandes cidades, e acham que julgando como julgam irão resolver um problema social. Não vão. Pior. Vão criar outro problema maior ainda. De fato, o art.104 do Código Civil exige que um negócio jurídico, para ser válido, deve ter agente capaz, objeto lícito e forma prevista ou não proibida em lei. Como o objeto da atividade do cambista e do bicheiro é o jogo do bicho, e esse jogo é considerado ilícito, em princípio nenhum contrato de trabalho pode ser reconhecido em relação a esse objeto. O TST já pacificou o seu entendimento sobre isso na OJ nº 199 da SBDI-1 proibindo o reconhecimento do contrato de trabalho entre o apontador do jogo e o bicheiro. Essa OJ apenas fecha os olhos à realidade, não resolve o problema.

A mim não importa a evidência de que o jogo do bicho pode estar atrelado ao tráfico de drogas e de armas, ao crime, à prostituição. Isso não é problema meu, mas da polícia. O meu problema é resolver a situação daquele pobre diabo que, por não ter emprego formal, ou não saber fazer outra coisa na vida, viu na profissão de cambista do jogo do bicho a fonte de sua sobrevivência. Por trás daquelas pessoas simples, sentadas por horas a fio naquelas cadeirinhas desconfortáveis há famílias inteiras que dependem desse trabalho.

De minha parte, ainda que o TST diga que a atividade do cambista do bicho é ilegal, e o contrato de trabalho entre ele e o bicheiro não pode ser reconhecido, vou continuar fazendo o que sempre fiz. Se o sujeito que aponta o bicho me provar que recebia salário, tinha de fazer o serviço pessoalmente, cumpria horário, estava debaixo de ordens do bicheiro ou do dono da banca, vai receber de mim o reconhecimento jurídico de que entre eles houve um contrato de trabalho, e vou mandar pagar todos os direitos desse trabalhador como se fosse a coisa mais natural do mundo. Se houver dúvidas quanto ao valor do salário, mando pagar pelo menos o mínimo nacional. Em seguida, oficio à Previdência Social para que cobre ao bicheiro a parte dele nas contribuições sociais devidas em nome do empregado. A coisa mais confortável na vida de um juiz é ser hipócrita. Basta copiar o entendimento do colega e dizer que é seu. Nunca fiz isso. Penso com minha própria cabeça. Quem não gostar, dê sentença melhor. Eu prefiro botar a cabeça no travesseiro e dormir sem sobressaltos ou remorsos.

Jose Geraldo da Fonseca

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