Função social da posse: efetivando o princípio da dignidade da pessoa humana

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Resumo:
 
O presente trabalho consiste no exame do instituto jurídico da posse sob sua ótica social. E sobre a importância da posse ser vista como um direito autônomo que permite a utilização do solo como forma efetiva de produzir riquezas, e não apenas como uma forma de proteção ao instituto da propriedade. A partir dos elementos analisados torna-se possível fazer uma relação entre o instituto da posse e da propriedade, verificando-se que a posse não é apenas a exteriorização do direito de propriedade, e sim, um direito muitas vezes autônomo criador de uma relação jurídica entre o possuidor e a coisa possuída. E, como tal, é portadora de função social, uma vez que possibilita ao homem o acesso a terra por seu próprio esforço, garantindo dessa maneira a efetiva realização do princípio da dignidade da pessoa humana, esculpido na Constituição Federal Brasileira.
Palavras-chave: Constituição; propriedade; posse; função social; dignidade da pessoa humana
 
Abstratc:
 
The present work consists in the exam of the juridical institution of possession under the social scope, and also the importance of possession being seen as an autonomous right, that allows the soil utilization, as an effect form of riches production and not just as a form of property protection. From the analyzed elements it is possible to make a relation between the institutions of possession and property, elucidating that the possession is not just the exteriorization of the property right, but an autonomous right creator of a juridical relation between the one that possess and the thing that is possessed. And, therefore, it has a social function, since it allows access to the soil by the effort of the person, guaranteeing the effect realization of the human dignity principle presented in the Brazilian Federal Constitution.
Key-words: Constitution; property; possession; social function; human dignity
 
Introdução
 
            O presente trabalho tem como enfoque principal o estudo do instituto jurídico da posse e, conseqüentemente, a caracterização do princípio da “Função Social da Posse”. Atualmente no ordenamento jurídico brasileiro, a função social da posse não se encontra regulamentada. No entanto, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu a função social da propriedade como um princípio constitucional. Sendo assim, no decorrer do presente trabalho, serão apresentados elementos que demonstram que assim como a propriedade o instituto da posse também cumpre com uma função social.
A escolha deveu-se, principalmente, ao fato de a posse, nos dias atuais, ser uma forma de garantir o efetivo cumprimento do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, uma vez que garante ao homem o acesso a terra por seu próprio trabalho, impondo, assim, ao Direito, o estudo e a reflexão constantes de seu conteúdo e das conseqüências que o reconhecimento do princípio da função social da posse acarretará ao direito de propriedade e à sociedade brasileira.
            A posse, nesse sentido, deixa de ser considerada apenas como uma relação material do homem com a coisa decorrente do poder de vontade, passando a ser vista como uma relação material entre o homem com a coisa decorrente da vontade dotada de função social, ou seja, voltada aos interesses da sociedade e não somente do possuidor.
            Será analisado, portanto, como o reconhecimento do princípio da função social da posse é uma forma eficaz de efetivar o cumprimento dos direitos fundamentais garantidos constitucionalmente aos indivíduos, tais como a dignidade da pessoa humana, a moradia e o aproveitamento do solo para o trabalho.
 
1. Considerações iniciais sobre a função social da posse
 
            Largamente empregado como um atributo que deve qualificar o instituto da propriedade, o termo função social já não pode ser encarado apenas sob a ótica do domínio. Nos dias atuais, mais do que nunca, a dinâmica das relações oriundas dos direitos reais permite ver no instituto da posse também um instituto cumpridor de objetivos sociais[1].
            No entanto, nada sobre esse tema encontra-se explícito nos dispositivos da Constituição Federal de 1998, mas não só a própria Constituição como o Estatuto da Terra e a Lei Agrária têm fornecido elementos para assim qualificar a relação de fato entre sujeito e coisa, de modo a tornar viável o emprego da expressão função social da posse.
            A posse é, em certas condições, condição de origem, constituição e manutenção de direitos reais. Ao mesmo tempo em que a posse possibilita o nascimento dos direitos reais de gozo através da usucapião para os bens imóveis e da tradição na coisa móvel, ela é condição de manutenção dos direitos reais, sendo percebida nas servidões, na superfície, concessão, no usufruto, uso e habitação, se o beneficiário do direito sobre a coisa não o exercitar em certo tempo[2].
            Já no exercício do direito de propriedade, onde a utilização é condição de cumprimento da função social da coisa, o não-exercício da posse gerará, conseqüentemente, um enfraquecimento do direito de propriedade, uma vez que o bem não estará cumprindo com sua função social.
E, nesse talante, Luiz Edson Fachin[3], analisa com proficiência a questão ao afirmar que:
 
                                               A função social da posse situa-se em plano distinto, pois, preliminarmente, a função social é mais evidente na posse e muito menos evidente na propriedade, que mesmo sem uso, pode se manter como tal. A função social da propriedade corresponde a limitações fixadas no interesse público e tem por finalidade instituir um conceito dinâmico de propriedade em substituição ao conceito estático, representando uma projeção da relação anti-individualista. O fundamento da função social da propriedade é eliminar da propriedade privada o que há de eliminável. O fundamento da função social da posse revela o imprescindível, uma expressão natural de necessidade.
 
            Para Saleilles, a posse não é protegida apenas como salvaguarda do direito de propriedade, e sim, refere-se a uma vontade do indivíduo que deve ser respeitada pela necessidade de todos de apropriação e exploração econômica das coisas, desde que esta vontade corresponda a um ideal coletivo, estando de acordo com os costumes e a opinião pública. Segundo Saleilles, “es possedor aquél que mantiene con la cosa una relación tal que, según la costumbre y la opinión públicas, deba respetársele en la apropriación de su atividad para utilizar y beneficiarse de la cosa”.[4]
            Logo, mesmo estando intimamente ligada ao domínio a posse deve ser vista como um fator autônomo, porque ao exercer o direito de propriedade o titular pratica atos de posse, mas também empreende atos estranhos a ela. A posse, portanto, deve ser vista como um instituto capaz de cumprir uma função social e econômica, sem se levar em conta somente o direito de propriedade[5].
 
 
2. Elementos para a formação da teoria da função social da posse
 
            Afirmar que a função social é atributo da propriedade e não da posse, porque a propriedade deve sofrer uma limitação em seu conteúdo por representar o instituto que atribui poderes ilimitados ao proprietário, não parece corresponder a todos os aspectos que envolvem a questão. Se, de um lado, a função social da propriedade impõe limites ao poder absoluto do proprietário sobre a coisa, por outro amplia direitos públicos, maximizando o direito de igualdade e o princípio da dignidade da pessoa humana, em função da realidade social e dentro de um sistema de solidariedade social[6].
            Contudo, tal como o domínio, a posse, ou seja, o exercício de fato sobre as coisas deve ser condicionado aos objetivos eleitos pelo Estado na busca da realização do bem comum e da igualdade social.
            Dessa forma Ana Rita Vieira Albuquerque[7] manifesta-se:
 
                                               A função social da posse não constitui uma nova figura da dogmática do direito privado, mas tem a sua importância ditada como forma de se reinterpretar o direito de posse, que deve passar a ser contemplado sob a sua feição social, sob a importância da sua utilidade social, o que se faz não só com fincas nos princípios constitucionais em vigor, de onde se extrai a sua concretização e interpretação, mas como base em sua essência e nos caminhos metodológicos do Direito Civil Constitucional e da interpretação sistemática do Direito.
 
            Inclusive, pode-se dizer que o início da funcionalização do instituto da função social da posse é a usucapião. Tendo, inclusive, havido uma constante diminuição do prazo necessário para a mesma ser efetivada, chegando o Código Civil de 2002, em seus arts. 1.239[8] e 1.240[9], a estabelecer o prazo de cinco anos para a aquisição do domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
            Nesse sentido, Luiz Edson Fachin[10], também defende que o instituto da posse deve ser visto como um direito autônomo e não apenas como um simples fato inerente ao direito de propriedade:
 
                                               Enquanto vinculada à propriedade, a posse é um fato com algum valor jurídico, mas, como conceito autônomo, a posse pode ser concebida como um direito. […] À medida em que a posse qualificada instaura nova situação jurídica, observa-se que a posse, portanto, não é somente o conteúdo do direito de propriedade, mas sim, e principalmente, sua causa e sua necessidade. Causa porque é sua força geradora. Necessidade porque exige sua manutenção sob pena de recair sobre aquele bem a força aquisitiva. Como se vê, vislumbra-se um patamar diferenciado de tratamento entre o instituto da posse e a propriedade, tomando relevo a questão na usucapião, particularmente aquela incidente em imóvel rural onde se evidencia, com maior clareza, a função social do fenômeno da posse (grifo do autor).
 
            Esse início de funcionalização social do instituto da posse é fruto basicamente da necessidade social, pela crescente necessidade de terra para o trabalho, para a moradia, enfim, necessidades básicas que pressupõem o valor de dignidade do ser humano, o conceito de cidadania, o direito de proteção à personalidade e a própria vida.
            Portanto, conforme bem explicitado por Marcos Alcino de Azevedo Torres[11], o reconhecimento do princípio da função social da posse permite uma visão mais ampla do seu instituto, de sua utilidade social e de sua autonomia diante de outros institutos, principalmente em relação à propriedade. Assim se manifesta o autor:
 
                                               A posse decorrente do direito de propriedade ou de algum direito real é a exteriorização das faculdades inerentes ao domínio, a ela vinculada e submetida, sem qualquer autonomia e em tese, segue a sorte do domínio, salvo se for autonomizada em conseqüência de algum vício no título aquisitivo. A posse desvinculada de qualquer direito subjacente é a verdadeira posse, aquela deve ser considerada como instituto jurídico autônomo, fenômeno isolável, destacado e paralelo ao fenômeno da propriedade como instituto que possibilita o exercício de poderes e faculdades sobre alguma coisa.
 
            Para abordar a posse em seu aspecto dinâmico, isto é, como portadora de uma função econômica e social, é necessário fixar as seguintes premissas, as quais lastreiam a concepção de uma teoria da posse como função social: a) a posse é um direito autônomo; b) a posse é um valor; e c) a posse é um instrumento de realização dos objetivos do Estado[12].
            a) a posse é um direito autônomo: grande parte da doutrina classifica a posse como sendo a exteriorização do direito de propriedade, relegando, assim, o instituto da posse a um plano secundário.
            Ao contrário do direito de propriedade, a posse não foi criada com o intuito de constituir uma soberania privada, opondo ao Estado uma resistência acima do direito de igualdade, uma vez que o direito de posse sempre se harmonizou com os interesses vitais da sociedade, que o reclama frente à necessidade de um uso útil a seu titular sem resultar prejuízos a qualquer membro da sociedade[13].
            Cabe ressaltar que a posse, segundo uma perspectiva histórica, precede ao direito de propriedade. Podendo-se, inclusive, afirmar que o domínio foi criado justamente com o objetivo de proteger o apossamento exclusivo das coisas e afastar a ingerência alheia. Ocorre que num determinado momento, o possuidor, muito provavelmente ao sentir sua posse ameaçada, sentiu a necessidade de resguardar o seu poder sobre a coisa mesmo quando não exercesse a posse direta.
            Assim, parece claro que a posse não poderia ser o sinal exterior do direito de propriedade, simplesmente porque este tipo de propriedade ainda não existia como forma de apropriação de bens. Contudo, a posse (fato) serviu para a concepção do instituto jurídico da propriedade (direito). A circunstância de estar compreendida no domínio relegou-a a um plano inferior, mas jamais a posse deixou de ser um direito autônomo, ainda quando inserida na propriedade.
            Nesse sentido manifesta-se Luiz Edson Fachin[14], quando diz:
 
                                               Antes e acima de tudo, aduz, a posse tem um sentido distinto da propriedade, qual seja o de dar uma forma atributiva da utilização das coisas ligadas às necessidades comuns de todos os seres humanos, e dar-lhe autonomia significa constituir um contraponto humano e social de uma propriedade concentrada e despersonalizada, pois, do ponto de vista dos fatos e da exteriorização, não há distinção fundamental entre o possuidor proprietário e o possuidor não-proprietário. A posse assume então uma perspectiva que não se reduz a mero efeito, nem a ser encarnação da riqueza e muito menos manifestação de poder: é uma concessão à necessidade (grifo do autor).
 
            Portanto, é inegável a função social existente na posse, inclusive podendo ser considerado um valor jurídico superior à propriedade, justamente pelo fato de que a propriedade é uma figura abstrata, que nem os códigos conseguem definir de forma inequívoca, definem somente seus atributos e formas de aquisição.
Já a posse é uma coisa concreta, que decorre da necessidade de se ter uma moradia ou um pedaço de terra para nele trabalhar e dele retirar o seu sustento e de sua família. Sem dúvida é uma forma efetiva de garantir a todo cidadão o princípio da dignidade da pessoa humana.
 
 
            Esse também é o posicionamento de Ana Rita Vieira Albuquerque[15], que diz:
 
                                               Ao contrário do direito de propriedade, a posse não foi criada com o intuito de constituir uma soberania privada, opondo ao Estado uma resistência acima do direito de igualdade, pois o direito de posse sempre se coadunou com os interesses vitais da sociedade, que o reclama frente à necessidade de um uso útil a seu titular sem resultar prejuízos a qualquer membro da sociedade.
 
            Todo homem tem o direito garantido pela Constituição Federal de utilizar a terra como forma de sobrevivência, como forma de realmente efetivar o princípio da dignidade da pessoa humana, sendo que a apropriação individual da terra e seu uso exclusivo através da posse é fundamental não somente para atender às necessidades individuais do indivíduo, mas principalmente para proporcionar vantagens para toda a coletividade. Uma vez respeitadas estas vantagens, justifica-se plenamente a importância da posse na sociedade brasileira.
            b) a posse é um valor: através do poder sobre as coisas, especialmente, sobre a terra, o homem consegue prover a própria subsistência, fazer circular riquezas e assegurar a prosperidade.
            O valor da posse nos dias de hoje é sentido de forma intensa, principalmente porque o direito de posse, pela sua utilidade social, representa antes de tudo o direito à igualdade, o direito do indivíduo obter a terra pelo próprio trabalho, aproveitando os seus recursos e, ainda, tirando-lhe os proventos para sua subsistência e para a sociedade. E, dessa forma, reduzindo a desigualdade social e incrementando a justiça distributiva.
            Não fosse pelo apossamento do solo e o aproveitamento de suas riquezas, não se produziriam nem os alimentos de subsistência nem os sofisticados aparelhos que tornam mais fácil a vida nas casas e nos ambientes de trabalho. A constatação de que a posse concorre em favor dessa situação de bem-estar, é suficiente, por si só, para classificá-la como um valor.
            O instituto da posse, portanto, é o exemplo típico da integração do fato social à norma e que não acarreta apenas conseqüências jurídicas muito importantes, como os interditos possessórios e a usucapião, mas transforma o fato da posse em si em verdadeiro direito de posse.
            Opinião esta, também compartilhada por Roberto Wagner Marquesi[16]:
 
É no terreno econômico e social que a posse exerce papel de destaque no Estado Democrático de Direito, e por dois fatores: primeiro, porque admite a produção de riquezas para o possuidor e para a coletividade; segundo, porque oferece ao possuidor condições de viver com dignidade.
            Logo, admitir a função social da posse é aceitar direito subjetivo ao não-proprietário de, através da terra, obter uma vida digna, assegurando um patrimônio mínimo, ou seja, uma existência autônoma. Ao contrário, negar a função social da posse é continuar acreditando que apenas os proprietários têm direito subjetivo sobre a terra e, de certa forma, respaldar as doutrinas tradicionais clássicas que entende, na função social, apenas seu caráter negativo[17].
            Considerar a função social da posse como um valor é de extrema importância para diminuir a desigualdade social, pois representa uma alteração do paradigma do conceito da posse, maximizando-o, para visualizar ao lado dos elementos internos, que são a apreensão física da coisa e a vontade de possuí-la, um outro elemento que compõe esta vontade, qual seja, a sua utilização econômica, e, também, um elemento externo, a consciência social.
            c) a posse é um instrumento de realização dos objetivos do Estado: o uso e a fruição da coisa deixam clara a importância do instituto da posse para o Estado Democrático de Direito atingir os seus objetivos. Justamente pelo fato de que não basta ao titular apenas possuir um bem, mas sim deve possuí-lo bem.
            Ora, havendo uma efetiva utilização do bem através da posse, que beneficie não somente o possuidor, que dela retirará seus frutos para o seu sustento e de sua família, mas também beneficie toda a coletividade, reduzindo a desigualdade social e aumentando a justiça distributiva, não há dúvidas de que o instituto da posse efetivamente desempenha uma função de extrema importância para o efetivo desenvolvimento do Estado Democrática de Direito.
Nesse sentido, cabe salientar o posicionamento de Marcos Alcino de Azevedo Torres[18]: “Assegurar a moradia e o trabalho na terra através da posse é dar efetividade aos princípios fundamentais da República, conferindo dignidade à pessoa, contribuindo para erradicação da pobreza, formando uma sociedade mais justa e solidária”.
            Logo, ao examinar os três requisitos, constata-se que o instituto da posse, sem o correspondente princípio da função social da posse, representa uma violação ao princípio da igualdade previsto na Constituição Federal de 1988. Inclusive colocando em risco a unidade, a completude e a coerência do ordenamento jurídico brasileiro, tendo em vista a enorme dificuldade que se tem na prática judicial, diante dos casos concretos, de se encontrar o direito justo frente às situações que envolvam posse e propriedade.
            Ademais, diante do caso concreto a função social da posse permite não só uma análise de situações que envolvam a posse em ambos os pólos da relação jurídica, mas também as situações onde um destes pólos fundamenta-se na situação proprietária. Isto é possível justamente pelo fato de que deve ser analisada pelo judiciário a forma como a coisa, objeto do litígio, vem sendo utilizada, se está cumprindo com sua função social, e não simplesmente contentar-se com a apresentação do justo título por uma das partes.
            Assim, segundo Ana Rita Vieira Albuquerque[19]:
 
                                               A posse, como instituto jurídico, tem a sua legitimidade na lei, mas também no fato social, porque decorre da natureza humana, preexistindo à lei. Isso determina a necessidade de o homem aproveitar a terra pelo seu próprio esforço através da ocupação originária. Assim é que constitui a ocupação, como posse de res nullius, uma das teorias na qual se fundamenta a propriedade (grifo da autora).
 
            Logo, a questão da função social da posse está eminentemente voltada não só para o conceito de posse e sua natureza jurídica, como também para o seu dever social frente à realidade brasileira, exigindo, portanto, um aprofundamento do julgador nas exigências da justiça, com a aplicação de uma metodologia que busque entender o conceito de função social, sempre tendo em vista a efetiva realização do princípio da dignidade da pessoa humana.
            A função social da posse, considerando-a como princípio presente no ordenamento jurídico brasileiro, tem suas raízes ditadas pela realidade social e fundiária, pelas diversas interpretações do instituto da posse como fenômeno social, bem como pela interpretação lógica dos valores e princípios contidos na Constituição Federal, como o valor à vida, à moradia, à igualdade, à justiça, todos procurando, da mesma forma, sustentar o princípio da dignidade da pessoa humana como principal objetivo do estado democrático de direito.
 
3. Conseqüências e efeitos frente à situação proprietária
 
            O reconhecimento da função social da posse, além de ser uma forma de efetivar os princípios estruturantes do Estado Democrático de Direito, entre eles a dignidade da pessoa humana, é também uma forma de concretizar objetivos fundamentais no tocante a redução das desigualdades sociais e regionais, uma vez que privilegia-se a posse por si mesma, como forma originária de obtenção de riquezas, podendo o indivíduo obter a terra pelo seu próprio trabalho, aproveitando os seus recursos e ainda tirando-lhe os frutos para si e para a sociedade.
 
            Ademais, o reconhecimento da função social da posse também atinge os despossuídos, na medida em que lhes garante o efetivo cumprimento dos direitos fundamentais dispostos na constituição, através de uma melhor distribuição de terras e da participação nos frutos produzidos, mudando o conceito de uma propriedade estática e da inércia da posse para uma propriedade dinâmica e uma posse construtiva.
Assim também é o entendimento de Ana Rita Vieira Albuquerque[20], quando diz:
 
                                               O principal efeito da função social da posse como princípio constitucional, portanto, é o de elevar o conceito da dignidade da pessoa humana a um plano substancial e não meramente formal, porque atende diretamente as exigências de moradia, aproveitamento do solo, bem como os programas de erradicação de pobreza (grifo da autora).
 
            Portanto, a função social da posse deve ser vista, obrigatoriamente, sob dois sentidos: primeiro, em que a ordenação jurídica seja a exteriorização da realidade social; segundo, em que a função social da posse tende a modificar determinadas estruturas sociais e as correspondentes normas jurídicas.
            Dessa forma para o reconhecimento do instituto da função social da posse é necessária uma modificação da maneira como a população vê o direito proprietário, não podendo ser reconhecida a propriedade simplesmente pela sua averbação no Registro de Imóveis, como um direito absoluto e perpétuo, mas sim pela sua efetiva produtividade, pela sua capacidade de cumprir uma função em prol da sociedade.
Obrigatoriamente a propriedade deve passar a ser vista como uma forma de produzir riquezas não apenas para o possuidor, mas para toda a coletividade, sendo assim, o possuidor não-proprietário, que dá uma destinação social a terra, deve possuir mecanismos judiciais de ser mantido na posse da coisa quando encontrar-se em litígio com o proprietário do bem.
Sobre a importância do atendimento do princípio da função social Luiz Ernani Bonesso de Araújo[21] assim se manifesta:
 
Todo o proprietário tem que cumprir os dispositivos constitucionais quanto à propriedade, pois o atendimento da função social é um mandamento superior ao do próprio domínio. Ao cumprir, portanto, a sua condição de função social, a propriedade rural estará a salvo da desapropriação para fins de reforma agrária.
 
            Como se vê, o princípio da função social é um mandamento superior ao direito de propriedade, portanto, o possuidor que atender ao princípio da função social deve ser protegido, mesmo estando em litígio com o proprietário do bem, uma vez que o ordenamento jurídico deve zelar pelo efetivo cumprimento do princípio constitucional da função social.
            Esta opinião também é defendida por León Duguit[22], que em suas considerações destaca a importância de serem protegidos os atos realizados com o objetivo de alcançar a efetiva realização da função social:
 
                                               En una palabra; venimos a lo mismo, al hecho de la función social, a la noción realista de función social, que substituey en absoluto a la concepción metafísica del derecho subjetivo. Las sociedades modernas no se componem solamente de individuos, sino también de grupos. Los individuos son, sin duda, lãs células que componen el organismo social. Pero al mismo tiempo se unen los unos con los otros y forman los grupos. Cada uno de esos grupos está encargado de una cierta misión; debe, por tanto, cumplir una cierta tarea em la división del trabajo social. Todo acto de voluntad que tiende al cumplimiento de esta misión, a la realización de esta tarea, debe ser socialmente protegido.
 
            Outra conseqüência do reconhecimento da função social da posse é uma possível perda de importância do instituto da usucapião, uma vez que com o reconhecimento da posse como um direito autônomo, ou seja, uma posse originária, independente da propriedade ou de outra relação jurídica, está à função social da posse em condições de defrontar-se com a propriedade que não atende à sua função social, perdendo a posse a necessidade imediata de alcançar, pela usucapião, um direito superior de propriedade.
            Por meio da função social da posse o julgador não ficará restrito ao formalismo da propriedade, podendo analisar cada caso individualmente, garantindo que o possuidor que utiliza a terra de forma adequada dando-lhe uma destinação social, não seja dela retirado, dificultando a atividade de grilagem nas terras brasileiras.
Inclusive, na prática judicial devem surgir situações possessórias conflituosas, diante das quais, o julgador deve admitir como melhor a posse dotada de função social, qual seja, a que atenda à moradia do possuidor e de sua família, bem como à que atenda ao melhor aproveitamento da terra.
            Assim, sua função social passa a exercer um papel de destaque no Estado Democrático de Direito, uma vez que permite a produção de riquezas não somente para o possuidor, mas para toda a coletividade e, principalmente, porque permite ao possuidor condições de viver com dignidade, garantindo seu sustento pelo seu próprio trabalho.
            Nesse sentido, cabe salientar o posicionamento de Ana Rita Vieira Albuquerque[23]:
 
                                               […] a função social da posse não determina apenas a “juridicização” de um fato social – do fato da posse em si –, tampouco um efeito da posse, mas constitui exigência de sistematização das situações patrimoniais de acordo com a nova ordem constitucional, no âmbito de uma Constituição normativa que pretende seja real e efetiva, muito menos condicionada aos fatores do poder e a um destino de simples folha de papel, do que em condicionar e realizar sua força no sentido do bem comum, tendo por base o princípio da igualdade e dignidade da pessoa humana.
 
            Cabe, portanto, um esforço por parte da população no sentido de aceitar a importância da posse como um instituto capaz de diminuir as diferenças sociais aumentando a distribuição de renda, atingindo dessa maneira a efetiva realização dos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana norteadores da Constituição Federal brasileira.
A função social da posse contrapõe-se a uma propriedade estática, utilizada muitas vezes como um instrumento de mera especulação imobiliária pelos seus proprietários em busca de poder. A posse é uma forma do possuidor através do uso da terra gerar riquezas para toda a sociedade, diminuindo as desigualdades sociais e concretizando o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.
 
Considerações Finais
 
            A posse, historicamente, sempre foi considerada como a exteriorização do direito de propriedade, assumindo a forma de visibilidade da propriedade, inclusive, sendo as ações possessórias o recurso utilizado pelo proprietário para poder defender seus bens.
            Contudo, a análise do instituto da posse demonstra claramente que a mesma não poderia ser a exteriorização do direito de propriedade, uma vez que a posse foi a primeira forma histórica de apropriação. Portanto, a posse não poderia ser a exteriorização de um direito que sequer existia, mas sim, um direito independente e autônomo ao direito de propriedade.
O valor da posse nos dias de hoje é sentido de forma intensa, principalmente porque o direito de posse, pela sua utilidade social, representa antes de tudo o direito à igualdade, o direito do indivíduo obter a terra pelo próprio trabalho, aproveitando os seus recursos e, ainda, tirando-lhe os proventos para sua subsistência e para a sociedade. E, dessa maneira, reduzindo a desigualdade social e incrementando a justiça distributiva.
            Atualmente a posse não é mais vista apenas como um fenômeno individual, mas sim como um fato social e jurídico dotado de uma função social. Desse novo ponto de vista resulta uma mudança na importância do instituto da posse, que assume um outro papel na sociedade, e não mais se ajusta ao simples fato de ser considerada a exteriorização do direito de propriedade, ou então, uma mera relação material entre o sujeito e a coisa possuída, sem qualquer conteúdo econômico ou social.
            Dessa forma, a função social da posse tem sua importância destacada como forma de se reinterpretar o direito de posse, que deve passar a ser analisada sob sua feição social, sob a importância de sua utilidade social, e não unicamente como uma forma de proteger o direito de propriedade.
            Ingo Sarlet destaca que a constatação de que uma ordem constitucional consagra a idéia da dignidade da pessoa humana, parte do pressuposto de que o homem, “em virtude tão-somente de sua condição humana e independentemente de qualquer outra circunstância, é titular de direitos que devem ser reconhecidos e respeitados por seus semelhantes e pelo Estado”.[24]
            Destaca ainda Ingo Sarlet[25] que até mesmo o direito de propriedade, especialmente por ter tido o seu conteúdo social consagrado pela Constituição Federal brasileira, se constitui em dimensão inerente à dignidade da pessoa humana, ao asseverar que:
 
Considerando que a falta de uma moradia decente ou mesmo de um espaço físico adequado para o exercício da atividade profissional evidentemente acaba, em muitos casos, comprometendo gravemente – senão definitivamente – os pressupostos básicos para uma vida com dignidade.
 
Assim, a exemplo do que ocorre com o direito de propriedade, reconhecer o princípio da função social da posse é uma forma de garantir a efetividade do Estado Democrático de Direito, uma vez que permite a produção de riquezas não somente para o possuidor, mas para toda a coletividade e, principalmente, porque permite ao possuidor condições de viver com dignidade, garantindo seu sustento e de sua família pelo seu próprio trabalho.
A posse, num país como o Brasil, é forma eficiente de aproveitamento econômico do solo e forma de produção de riqueza não somente para o possuidor, mas sim para toda a sociedade.
Rodrigo Lucietto Nicoletto*
 
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TORRES, Marcos Alcino de Azevedo.A propriedade e a posse: um confronto em torno da função social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.


[1] MARQUESI, Roberto Wagner. Direitos reais agrários & função social. Curitiba: Juruá, 2001.
[2] TORRES, Marcos Alcino de Azevedo. A propriedade e a posse: um confronto em torno da função social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
[3] FACHIN, Luiz Edson. A função social da posse e a propriedade contemporânea (uma perspectiva da usucapião imobiliária rural). Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 19.
[4] SALEILLES, Raymond. La Posesión. Tradução de J. M. Navarro de Palencia. Madri: Libreria General de Victoriano Suárez, 1909, p. 344.
[5] MARQUESI, op. cit.
[6] ALBUQUERQUE, Ana Rita Vieira. Da função social da posse e sua conseqüência frente à situação proprietária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.
[7] ALBUQUERQUE, op. cit. p. 11.
[8] Art. 1.239, do Código Civil – Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como sua, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra em zona rural não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.
[9] Art. 1.240, do Código Civil – Aquele que possuir, como sua, área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
[10] FACHIN, op. cit. p. 13.
[11] TORRES, Marcos Alcino de Azevedo. A propriedade e a posse: um confronto em torno da função social. Lumen Júris: Rio de Janeiro, 2007, p. 303.
[12] MARQUESI, op. cit. p.
[13] ALBUQUERQUE, op. cit.
[14] FACHIN, op. cit. p. 21.
[15] ALBUQUERQUE, op. cit. p. 14.
[16] MARQUESI, op. cit. p. 119.
[17] MORAES FILHO, Odilon Carpes. A Função Social da Posse e da Propriedade nos Direitos Reais. Disponível em: www.amprgsnet.org.br/images/odilonm2.pdf. Acesso em: 19/05/2006.
[18] TORRES, op. cit. p. 376.
[19] ALBUQUERQUE, op. cit. p. 15.
[20] ALBUQUERQUE, op. cit. p. 213.
[21] ARAUJO, Luiz Ernani Bonesso de. O Acesso à Terra no Estado Democrático de Direito. Frederico Westphalen: Ed. da URI, 1998, p. 82.
[22] DUGUIT, León. Las Transformaciones Generales Del Derecho. Buenos Aires: Heliasta, 2001. p. 202.
[23] ALBUQUERQUE, op. cit, p. 217.
[24] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. Porto Alegre. Livraria do Advogado, 2002, p. 37.
[25] Ibidem, p. 93.
* Advogado. Mestrando em Direito Ambiental pela Universidade de Caxias do Sul – UCS.
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Rodrigo Lucietto Nicoletto

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