Direitos humanos e violência nas sociedades contemporâneas

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“Quanto mais uma sociedade é desigual, tanto mais ela tem necessidade de um sistema de controle social do desvio de tipo repressivo, como o que é realizado através do aparato penal do direito burguês” (BARATTA, 2002).

Sumário: 1 Introdução 2. Os direitos humanos: mera concepção normativa? 3 Criminalidade, violência e estruturas de poder. 4 Considerações finais. 5 Referências Bibliográficas.

 

1. Introdução

Sabe-se que a ideia de direito e os objetivos que se pretende alcançar com ele na sociedade contemporânea resultam de operações valorativas (ou axiológicas) que expressam os interesses e as preocupações daqueles que se envolvem com o fenômeno jurídico. A partir dessas constatações, Antônio Alberto Machado explica que “o direito é um fenômeno ideológico”.1 Portanto, está condicionado por interesses pessoais, coletivos, sociais, econômicos e humanísticos.

Quando se fala em direitos humanos, imediatamente ocorre a ideia de que são aqueles direitos reconhecidos tanto no plano internacional, como também na seara nacional pelas constituições, tratados e declarações.

Autores como Bobbio, Ferrajoli e Habermas são alguns dos pensadores que, ao longo da história, dedicaram-se ao estudo dos direitos humanos. Não se pode negar que há um consenso doutrinário no sentido de que uma faceta importante dos direitos humanos é o seu processo de reconhecimento normativo e de institucionalização.

O professor sevilhano David Sánchez Rubio explica que, no momento em que os movimentos sociais (como por exemplo, o movimento operário no século XIX e os movimentos das mulheres e dos indígenas no século XX) se levantaram e reivindicaram espaços maiores de liberdade e denunciam diversas formas de poder (econômico, cultural, sexual, etc.) o reconhecimento jurídico foi extremamente importante para objetivar tais demandas.2

Assim, tal dimensão jurídico-positiva dos direitos humanos possui grande relevância. Todavia, essa compreensão é escancaradamente insuficiente, levando em consideração o número absurdo de violações que ocorrem, diariamente, no mundo todo, inclusive nos Estados denominados “de Direito”.

Em outras palavras, isso significa que os direitos humanos não podem, de modo algum, ser enclausurados em normas, instituições e teorias prontas e acabadas. Essa concepção excessivamente jurídico-positiva de direitos humanos é notadamente simplista.

 

2. Os direitos humanos: mera concepção normativa?

Uma noção mais aprofundada dos direitos humanos entende que estes são construídos a partir das lutas sociais. Na verdade, conforme David Sánchez Rubio, a luta e a ação social dão origem aos direitos humanos e, mais do que isso, os mantém vivos.3

Portanto, desde já, fica a conclusão de que os direitos humanos estão relacionados aos processos de luta e de práticas sociais contra qualquer tipo de excesso de poder. Logo, quando as relações são baseadas em dinâmicas de respeito, inclusão e reconhecimento, estão sendo construídos direitos humanos. Noutro giro, se estão baseadas em exclusão e dominação, tais práticas não guardam ligação com os direitos humanos.

Por tais razões, é possível concluir que esses direitos não podem ser reduzidos a uma mera concepção normativa. Tal dimensão formal deve ser complementada, há que se ampliar esse olhar.

É a partir dessa compreensão dos direitos humanos numa visão mais aprofundada que se pode compreender melhor a sociedade, bem como a desigualdade presente na sociedade. Sendo assim, pobreza, violência, criminalidade e desigualdade social são conceitos intimamente relacionados.

É de clareza solar o fato de que há uma recusa das elites políticas a encarar de frente as desigualdades vertiginosas. Portanto, o debate sobre criminogênese e os fatores sociais envolvidos é necessário quando se dedica à temática dos direitos humanos. Na obra “Perspectivas Contemporâneas do Cárcere”, Paulo César Corrêa Borges reúne artigos de diversos estudiosos do assunto e trata com grande profundidade sobre o poder do crime organizado no Brasil.4

Nesse livro, é estudada a megarrebelião ocorrida em todo o Estado de São Paulo, organizada pelo Primeiro Comando da Capital – o PCC. Assim sendo, o autor destaca a existência de questionamentos sobre a aplicação dos postulados básicos da teoria do “direito penal do inimigo” rememorada por Gunther Jakobs – totalmente incompatível com o Estado Democrático de Direito – aos casos do PCC. Incompatível, pois o “direito penal do inimigo” possui como características o adiantamento da punibilidade, fixação de penas desproporcionais, bem como a relativização e a supressão de garantias processuais.

Fica evidente que o crime não pode deixar de ser entendido como um grave problema social, cabendo ao Estado planejar linhas de atuação, na busca de diminuir tal mazela, sempre de acordo com os princípios norteadores do Estado de Direito.

Nessa linha, o Estado somente deve buscar as soluções para a criminalidade respeitando os direitos humanos, ou seja, reconhecendo as reais causas sociais da criminalidade “que muitas vezes guardam estreita relação com os aspectos econômicos de um país ou comunidade.” 5

Vale ressaltar o entendimento de Paulo Marco Ferreira Lima, autor do artigo “Pena e Castigo: o RDD e o PCC. Quem é bom juiz de si mesmo?” presente na já citada obra “Perspectivas Contemporâneas do Cárcere”:

Se o Estado impõe princípios e regras e ele mesmo as distorce pelo sentimento de medo, pode vir a fomentar uma intranqüilidade social de tal magnitude que comprometa todo o sistema, sendo por si só fato gerador e alimentador da própria criminalidade organizada dentro dos presídios. 6

O que se busca é a diminuição da criminalidade, para que seja alcançada uma maior tranqüilidade social. No entanto, constata-se que há uma multiplicidade de fatores em relação à problemática da violência, dada a sua complexidade. Pode-se dizer que existem muitas práticas sistemáticas de violência e de violação de direitos cometidas pelo próprio Estado, quando este não garante aos cidadãos os direitos que lhes são assegurados, através da Constituição, como por exemplo, o direito à educação, entre outros. Portanto, a não garantia de direitos aos cidadãos é uma intensa forma de violência praticada pelo Estado, que acaba por gerar as demais formas.

Sobre o tema, Sérgio Shecaira explica que as penas também representam uma espécie de violência: a violência institucional. Assim sendo, possuem um efeito criminógeno grave, na medida em que são “inúteis aos presos e nocivas à sociedade”, pois ao retornarem ao mundo livre, ocorrerá uma “redobrada propensão ao crime, em face do estigma e da discriminação.”7

Na verdade, o eixo central de um Estado Democrático de Direito é o respeito aos direitos humanos. O baixo nível educacional e o desemprego são evidentes fatores criminógenos, sendo que o cárcere representa mais uma forma de cristalizar a desigualdade social, pois atua de maneira altamente seletiva: de nítida inclusão das classes marginalizadas.

 

3. Criminalidade, violência e estruturas de poder.

A superação dos problemas relacionados à criminalidade, à violência e à formação de estruturas de poder, como por exemplo, o crime organizado, dependem da superação da desigualdade social, pois conforme Baratta, o sistema é adequado para o modelo social existente.8

Com efeito, a eficácia das políticas de segurança pública, do sistema prisional e da ordem jurídica continua relacionada à superação das desigualdades sociais. Portanto, a estrutura de poder da criminalidade organizada precisa ter um enfrentamento adequado, coordenado e cooperativo de todas as instituições envolvidas.

Assim, acredita-se que enquanto as desigualdades não forem encaradas de frente, novos ataques do PCC poderão vir a ocorrer. Nenhuma sociedade democrática combate o crime tão somente com sua aparelhagem policial-judiciária.

Paulo César Corrêa Borges, no momento em que se aprofunda nas causas de violência urbana e na formação das estruturas de poder, cita ainda um artigo intitulado “Civilização, sim; barbárie, não”, no qual consta que “embora não haja clima para discutir as medidas de longo prazo” (ou seja, aquelas que se destinam a combater a desigualdade) “enquanto bandidos queimam ônibus e metralham a esmo prédios públicos e privados, torna-se indispensável denunciar que o discurso da truculência estatal visa precisamente esconder essa questão de fundo, porque ela afeta interesses de gente muito poderosa.” 9

Assim, o discurso estatal busca ocultar a violência cometida pelo próprio Estado, quando é ausente na problemática dos direitos humanos, ou seja, quando deixa de cumprir com seu dever de proporcionar tais direitos.

É preciso ter a chamada visão integrada dos direitos humanos. Vale ressaltar o entendimento de Antonio Augusto Cançado Trindade sobre o tema:

A denegação ou violação dos direitos econômicos, sociais e culturais, materializada, e.g., na pobreza extrema, afeta os seres humanos em todas as esferas de suas vidas (inclusive a civil e política), revelando, assim de modo marcante a interrelação ou indivisibilidade de seus direitos. A pobreza extrema constitui, em última análise, a negação de todos os direitos humanos. Como falar de direito à livre expressão sem o direito à educação? Como conceber o direito de ir e vir (liberdade de movimento) sem o direito à moradia? Como contemplar o direito de participação na vida pública sem o direito à alimentação? Como referir-se ao direito à saúde? E os exemplos se multiplicam. Em definitivo, todos experimentamos a indivisibilidade dos direitos humanos no quotidiano de nossas vidas: é esta uma realidade inescapável. Já não há lugar para compartimentalizações, impõe-se uma visão integrada de todos os direitos humanos.10

 

4 Considerações finais.

Portanto, é preciso que o Estado cumpra seus deveres, superando essa ideia de compartimentalização de direitos. Sendo assim, devem ser encaradas as desigualdades sociais, proporcionando educação adequada, moradia, acesso à saúde, dentre outros direitos, para que o Estado possa cumprir também o seu papel destinado à preservação da ordem pública. Desta forma, será combatido o caos social e a ação de grupos armados que visam afrontar o Estado de Direito.

Fazendo eco com Paulo César Corrêa Borges, afastada a aplicação de alguns de seus vícios de constitucionalidade (como o viés autoritário e antidemocrático de neutralização política que se constatou pela sua aplicação durante o regime militar), os atentados realizados por organizações criminosas (sendo o PCC o principal exemplo) devem ser analisados sob á “ótica da Lei de Segurança Nacional.” 11

Ainda conforme o autor acima citado “a gravidade dos ataques reclama uma reação proporcional”, porém devem ser observadas as regras democráticas de aplicação do ordenamento jurídico brasileiro. 12

É preciso que as autoridades públicas assumam o compromisso com a adoção de medidas capazes de mudar o real quadro da segurança pública. De acordo com Carolina Haber, apenas medidas isoladas como a promulgação de leis e a reação violenta dos órgãos de segurança pública aliadas à falta de comprometimento das autoridades públicas não são capazes de mudar tal quadro.13

O fenômeno da extensão da pobreza, bem como de sua profundidade na sociedade brasileira coloca em questão a maneira como tinha sido tratada até então a negação dos direitos humanos. A violência cometida pelo próprio Estado, quando é ausente na problemática dos direitos humanos, isto é, quando deixa de cumprir com seu dever de proporcionar tais direitos jamais pode ser esquecida, independente do contexto. O aparato policial-judiciário, da maneira em que se encontra atualmente, além de ser insuficiente, parece não ser o mais adequado no combate aos crimes.

 

BIBLIOGRAFIA

BARATTA, Alessandro. 2002. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 3.ª ed. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Editora Revan.

BORGES, P. C. C. (Org.) . Perspectivas contemporâneas do cárcere. 1. ed. São Paulo: Editora UNESP, 2010. v. 1. 400 p.

HABER, Carolina Dzimidas. O que (não) mudou um ano após o início dos atentados do PCC. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 15, n. 175, p. 6, jun. 2007

MACHADO, Antônio Alberto. Ensino jurídico e mudança social. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2009. v. 1. 187 p.

RUBIO, David Sanchez. Fazendo e desfazendo direitos humanos. Tradução de Clovis Gorczevski. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2010 (Direito e sociedade contemporânea).

SHECAIRA, S. S. , Prisões do Futuro? Prisões no Futuro? In Conversações Abolicionistas: Uma Crítica do Sistema Penal e da Sociedade Punitiva. 1997.

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de direito internacional dos direitos humanos. 2. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Fabris, 2003

 

1 MACHADO, Antônio Alberto. Ensino jurídico e mudança social. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p.15

2 RUBIO, David Sanchez. Fazendo e desfazendo direitos humanos. Tradução de Clovis Gorczevski. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2010 (Direito e sociedade contemporânea). p.14

3 RUBIO, op. cit., p. 17

4 BORGES, P. C. C. (Org.). Perspectivas contemporâneas do cárcere. 1. ed. São Paulo: Editora UNESP, 2010.

5 Lima, Paulo Marco Ferreira. Pena e Castigo: O RDD e o PCC. Quem é bom juiz de si mesmo?. In: BORGES, P. C. C. (Org.). Perspectivas contemporâneas do cárcere. 1. ed. São Paulo: Editora UNESP, 2010. p. 66

6 Ibid.

7 SHECAIRA, S. S. , Prisões do Futuro? Prisões no Futuro? In: Conversações Abolicionistas: Uma Crítica do Sistema Penal e da Sociedade Punitiva. 1997. p. 173

8 BARATTA, Alessandro. 2002. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 3.ª ed. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Editora Revan.

9 Antônio Visconti, Celso Antônio Bandeira de Mello, Fábio Konder Comparato, Goffredo Telles Jr., Hermann Assis Baeta, João Luiz Duboc Pinaud, José Osório de Azevedo Jr,, Maria Eugênia R. da Silva Telles, Plínio de Arruda Sampaio e Weida Sancaner apud BORGES, op. cit., p. 18.

10 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de direito internacional dos direitos humanos. 2. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Fabris, 2003. v. 1. p. 475.

11 BORGES, P. C. C. (Org.). Perspectivas contemporâneas do cárcere. 1. ed. São Paulo: Editora UNESP, 2010. v. 1. p. 25

12 Ibid.

13 HABER, Carolina Dzimidas. O que (não) mudou um ano após o início dos atentados do PCC. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 15, n. 175, p. 6, jun. 2007

Lillian Ponchio Silva

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