Direito de matar?

Monica Gusmao 27/03/13
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Deixem-me contar-lhes uma parábola. Dizem que o diretor de um grande jornal americano precisava de um jornalista para a função de editorialista e abriu oportunidade para que todos os que se julgassem preparados se habilitassem. O editorial de um jornal, todos sabem, é a cara do jornal. O editorial é, talvez, o único lugar num jornal em que não há nem pode haver isenção. O editorial é a linha ideológica que o jornal adota, é o que o jornal pensa. O editorial é a cara do jornal. No dia da seleção, centenas de jornalistas se apresentaram. Um por um iam entrando, dizendo a que vieram. O diretor lhes indicava um computador e pedia que escrevessem um editorial sobre a participação americana na Guerra do Vietnã. Nem bem o candidato sentava e começava a digitar, era sumariamente reprovado. Assim foi durante todo o dia, até que um deles sentou-se ao computador e quando lhe pediram para redigir um editorial sobre a participação americana na Guerra do Vietnã, virou-se para o diretor e disse: “Muito bem, diretor: a favor ou contra?”. Dizem que foi contratado e está lá até hoje.

Certas questões sociais dotadas de grande dramaticidade exigem de todos uma tomada de posição, isto é: a favor ou contra? Pois bem. A Constituição Federal tem como princípios maiores o direito à vida e a dignidade da pessoa humana. A banalização dos princípios tem o mau efeito de tornar as discussões estéreis, desimportantes. Triviais. Mas esses princípios provocam acirrada discussão em torno do aborto, tema antigo, mas sobre o qual não há nenhum consenso. O atual Código Penal tipifica o aborto como crime, com ou sem o consentimento da gestante. Também equipara a aborto a interrupção inconsentida, por ato de terceiro. O aborto é permitido em situações excepcionais, como as previstas no art. 127 do Código Penal: se não houver outro meio de salvar a vida da gestante e se a gravidez resultar de estupro. Neste caso, o aborto deve ser autorizado pela gestante. Se a gestante for incapaz, ou por qualquer outro modo não puder expressar validamente a sua vontade, por seu representante legal.

Os jornais informaram que o Conselho Federal de Medicina vai enviar à comissão do Senado que analisa a reforma do Código Penal um documento em que defende o direito de mulheres abortarem até a 12ª semana de gestação, posicionamento compartilhado por todos os 27 conselhos regionais de Medicina, representando, ao todo, 400 mil médicos no país. Essa decisão foi tomada durante o 1º Encontro Nacional de Conselhos de Medicina, realizado entre 6 e 8 de março do corrente, em Belém. Como dito, atualmente, no Brasil, o aborto somente é permitido em casos de risco para a saúde da gestante ou quando a gravidez é resultado de estupro. Segundo a Comissão, a proposta não tem como objetivo a descriminalização do aborto, mas uma releitura do rol de hipóteses que o autorizam, nos casos em que a excludente de ilicitude poderia ser invocada para descaracterização do crime, tais como quando houver risco à vida ou à saúde da gestante; se a gravidez resultar de violação da dignidade sexual ou do emprego não consentido de técnica de reprodução assistida; se for comprovada anencefalia ou anomalias graves e incuráveis no feto que inviabilizem a vida independente (quadro a ser atestado por dois médicos); ou por vontade da gestante, até a 12ª semana de gravidez. Para os Conselhos de Medicina, a norma continua em pé: como regra geral, aborto é crime, admitindo-se exceções para os casos em que a mãe teria o direito de escolha sobre a possibilidade de interromper gestação.

A discussão não é nova. O princípio da preservação da vida do nascituro não admite aborto, ainda que o feto tenha sido concebido de forma não-consentida, com extrema violência, ou se já na concepção o nascituro padecer de alguma anomalia irreversível que impeça a vida fora do útero. Por outro lado, o princípio da dignidade da pessoa humana consagra o direito de a gestante decidir pela interrupção de uma gravidez indesejada, de ser não ser obrigada a conviver durante nove meses com uma vida que destruíra a sua pela violência sexual ou pela dor da mãe em saber que gera um sonho impossível de ser realizado porque carrega na barriga um cadáver adiado.

Outra provocação minha: uma médica do Paraná está sendo acusada de matar ou concorrer para a morte de dezenas de pessoas na UTI de um Hospital Evangélico mandando desligar aparelhos vitais que os mantinha vivos. A hipótese, segundo as notícias, não é de “morte piedosa” (eutanásia) para aliviar o sofrimento dos doentes terminais impotentes diante da dor, mas tem um viés econômico. A médica estava mais interessada em criar vagas nos leitos para provocar rotatividade entre os pacientes e, com isso, aumentar a arrecadação do hospital. Ainda é cedo para qualquer julgamento. A médica pode estar sendo vítima de uma cadeia de imputações falsas que escondem interesses ainda não revelados de desafetos ou de pessoas diretamente interessadas na desmoralização do hospital ou da profissão médica. Mas pode ser que tenha culpa. Como saber? A médica está sendo processada e, se provada a sua culpa, certamente terá seu registro cassado pelo Conselho Regional de Medicina. Ninguém concebe que não tenha de ser assim. Houve homicídio ou apenas se pôs o princípio da dignidade do ser humano acima da moral média da sociedade?

É claro que toda a sociedade civil é parte interessada no resultado dessas investigações, como o é no caso da posição do Conselho de Medicina quanto à possibilidade de que a gestante decida o destino do feto. A questão de fundo, contudo, não é essa. O que estamos fazendo, afinal?

Criando um direito de matar?

Monica Gusmao

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