Conteúdo e constitucionalização do direito humano à moradia

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INTRODUÇÃO

O direito à moradia foi reconhecido pelo ordenamento jurídico pátrio como um direito social apenas através da emenda constitucional nº26 do ano de 2000, em que pese já estar previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos e em outras cartas internacionais. 2 Com isso, nota-se que o enfrentamento de questões pertinentes à moradia como um direito fundamental passou a ocorrer recentemente no Brasil, de maneira que se questiona a eficiência das políticas públicas destinadas a resolver ou amenizar o grave problema social decorrente da falta de uma habitação digna.

Em decorrência do aludido, pode-se averiguar que o acesso à moradia não fez parte da agenda social do país durante longos anos, de maneira que era vista (e por muitos, ainda é) como uma questão meramente relacionada ao acesso facilitado à casa própria, através de uma contraprestação por parte do beneficiado. A própria opção pelo sistema formal de construção civil (através, inicialmente do extinto Banco Nacional de Habitação – BNH) ajudou a gerar uma urbanização informal, favorecendo a construção civil, mas restringindo a compra da casa própria como única forma de acesso à moradia, o que flagrantemente excluía os mais pobres (BONDUKI, 2010).

O que se pode dizer, quanto à implementação dos programas de acesso à habitação é que:

[…] não significou interferir positivamente no combate ao déficit habitacional, em particular nos segmentos de baixa renda. De uma maneira geral, pode-se dizer que se manteve ou mesmo se acentuou uma característica tradicional das políticas habitacionais no Brasil, ou seja, um atendimento privilegiado para as camadas de renda média. Entre 1995 e 2003, 78,84% do total dos recursos foram destinados a famílias com renda superior a 5 SM, sendo que apenas 8,47% foram destinados para a baixíssima renda (até 3 SM) onde se concentram 83,2% do déficit quantitativo. (BODUKI, 2010, p. 80)

O conteúdo do Direito à moradia abrange a questão da habitação, mas também aspectos relacionados à qualidade e forma de exercício dessa habitação, estando intimamente ligado à ideia da dignidade da pessoa humana e exigindo para a sua efetivação, dessa forma, a concretização de vários pressupostos, como por exemplo, a qualidade do meio ambiente em que se vive, as condições de saneamento básico do lugar, a distância que há entre a moradia e o local de trabalho, etc.

A questão do urbano é tratada por Henri Lefebvre, o qual através da ideia do Direito à Cidade pondera sobre a estreita ligação entre o acesso à moradia digna, a ocupação do espaço público e o resgate do prazer de viver no ambiente urbano. Segundo o autor, este Direito à cidade está relacionado ao “direito à vida urbana, condição de um humanismo e de uma democracia renovados” (LEFEBVRE, 2008, p.7). Destaca ainda, neste contexto, que o Direito à Cidade não está relacionado a um único elemento do urbano, mas a uma verdadeira prática desse urbano, envolvendo todo o contexto dessa vivência: convívio entre os seus cidadãos, ocupação e fruição do espaço público e de seu habitat, etc.

Diante de tais considerações, pode-se fazer a análise no sentido de que o acesso pleno ao direito à moradia só pode se realizar na medida em que o Direito à cidade se concretizar, na medida em que o urbano passar a ser efetivamente usufruído pelos cidadãos, quando o valor de uso passar a ser o predominante, quando a vida social voltar a ser vivida de forma plena, trazendo aos seus membros a consciência, a identificação com o meio em que vivem.

Neste contexto, pode-se apontar a chamada segregação espacial como um dos reflexos deste distanciamento entre a realidade hoje presente nos centros urbanos e a concretização do direito pleno à moradia. Villaça (2001) argumenta que uma das características mais marcantes das metrópoles brasileiras é a segregação espacial das classes sociais em áreas distintas da cidade. Basta uma volta pela cidade – e nem precisa ser uma metrópole – para constatar a diferenciação entre os bairros, tanto no que diz respeito ao perfil da população, quanto às características urbanísticas, de infra-estrutura, de conservação dos espaços e equipamentos públicos, etc.

[…] a segregação é um processo segundo o qual diferentes classes ou camadas sociais tendem a se concentrar cada vez mais em diferentes regiões gerais ou conjuntos de bairros da metrópole. (VILLAÇA, 2001, p. 142 – grifo no original).

Explicando os motivos do que denomina fração do espaço, destaca Milton Santos:

[…] os circuitos espaciais da produção nos dão a situação relativa dos lugares, isto é, a definição, num dado momento, da respectiva fração de espaço em função da divisão do trabalho sobre o espaço total de um país. Aí se conjugam as relações de produção social, que os circuitos de ramos tipificam, as relações sociais de produção, dadas pelas firmas, mas também as relações de produção do passado, mantidas ou rejuvenescidas pelas relações atuais e representadas por relíquias ou heranças, tanto na paisagem quanto na própria estruturação social. (SANTOS, 1987, p. 130)

A informalidade decorrente da posse também é questão intimamente ligada à segregação do espaço urbano. Na medida em que as classes sociais menos favorecidas não possuem um título de propriedade de seu terreno, há falta de acesso a políticas públicas de construção de casa própria e melhoramento de infraestrutura, a título exemplificativo, assim como há uma maior facilidade do Poder Público deslocar verdadeiras “massas” de cidadãos para as periferias, visando esconder a pobreza e precariedade de suas vidas.

Ainda, sobre a origem da importância atribuída ao título de propriedade, ensina Alfonsin (2006) que no Brasil a promulgação do Estatuto da Terra em 1850 (em seu art. 1º) determinou definitivamente uma dualidade cujas consequências se observam até hoje, em relação aos que detém a propriedade efetiva e os que só têm a posse do imóvel. O referido diploma deslegitimou a posse/ocupação como meio de acesso legal à terra no país. Assim, “a única forma admitida de aquisição da terra no Brasil passou a ser a compra, absolutizando o direito de propriedade e inserindo a terra, sob a forma de mercadoria, em um mercado imobiliário urbano nascente”. (ALFONSIN, 2006, p. 3)

Destaca-se, assim, que a regularização do solo urbano não tem como objetivo maior a proteção ao direito individual à propriedade. Ela vai além disso, ela traz efetiva proteção ao exercício da moradia. A falta de titulação do imóvel causa ao cidadão transtornos e impedimentos importantes, como já referido. O caminho para a concretização do direito à moradia não passa pela segurança da posse, medida flagrantemente paliativa, mas por políticas públicas que visem à solução definitiva do problema fundiário existente não só nos grandes centros, mas na maioria dos municípios brasileiros, tornando meros possuidores em reais proprietários de seus imóveis.

Há, portanto, uma considerável desigualdade jurídica no que tange ao acesso ao espaço urbano, sendo que é pequena a parcela da população que tem título de propriedade de sua terra, de seu lote, de maneira que a maioria da população acessa ao solo por via da posse, perfazendo uma outra cidade, esta à margem do direito privado e da ordem urbanística. (ALFONSIN, 2006, p. 3)

Ademais, o fenômeno da urbanização acentuada é sensível no mundo todo, o que tem provocado uma maior conscientização, inclusive em nível internacional, acerca da importância do tratamento da questão urbana para o futuro da humanidade. Nesse sentido, apesar dos problemas advindos do crescimento acelerado das cidades serem de diferentes grandezas dependendo do “nível” do país em questão, é possível perceber um consenso generalizado de que é necessário se estabelecer, de forma consistente, políticas públicas (e especialmente sociais, ante o caráter dos direitos envolvidos) capazes de conciliar as distintas demandas que se apresentam em cidades inseridas num mundo cada vez mais complexo. No que diz respeito aos países periféricos, mais precisamente o Brasil, o que se constata, para além do crescente processo de urbanização, é o desenvolvimento desordenado das cidades, que resulta num cenário desigual tanto no que diz respeito à constituição do seu espaço urbano quanto no que se refere aos seus aspectos sociais.

Pode-se dizer, ainda, que se partindo do conceito de moradia é que se busca a proteção à função social da propriedade e outros direitos interdependentes e também irrenunciáveis (SOUZA, 2008, p. 43). Note-se que o exercício do direito à moradia não é feito apenas através da propriedade, mas se configura uma das formas de sua manifestação.

Dessa forma, a segregação espacial tem se mostrado um desafio à questão da moradia, à ideia de busca por um lugar que garanta condições básicas para uma vida humana digna.

 

1. O direito social à moradia na Constituição Federal de 1988

Para que se discorra acerca de um direito social, como é o caso do direito à moradia, necessário se faz que sejam enfrentadas primeiramente questões referentes à natureza, ao nascimento e desenvolvimento dessa geração de direitos fundamentais, de maneira que se possa visualizar o contexto jurídico, histórico e filosófico dos mesmos, precisando seu conteúdo e sua importância no cenário social.

Neste sentido, assevera Ingo Sarlet:

[…] o termo direitos fundamentais aplica-se para aqueles direitos da pessoa reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional de determinado Estado, ao passo que a expressão direitos humanos guarda relação com documentos de direito internacional, por referir-se ‘aquelas posições jurídicas que se atribuem ao ser humano como tal (hoje já reconhecendo-se a pessoa como sujeito de direito internacional), independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, por tanto, aspiram à validade universal, revelando um inequívoco caráter supranacional ( 2006, p. 35 e 36).

Os direitos fundamentais são resultantes do processo de constitucionalização surgido no final do sec. XVII dos chamados direitos naturais dos homens. A partir dessa afirmativa, cumpre destacar dois aspectos pertinentes ao surgimento desses direitos, quais sejam, a sua principal fonte filosófico-doutrinária e o grande marco histórico no qual se constitucionalizaram direitos fundamentais.

A raiz filosófica dos direitos fundamentais está vinculada à ideia de postulados universais e que estão acima dos ordenamentos jurídicos, os quais atuam como critério de legitimidade de quem exerce o poder. Tal tese foi difundida amplamente através da doutrina jusnaturalista, a qual foi desenvolvida amplamente nos séculos XVI e XVII. Assim, o fundamento maior sobre o qual se debruçou a teoria jusnaturalista inicialmente, foi gradativamente sendo modificada, de maneira que retirou-se o aspecto divino da concepção de igualdade, passando-se a um racionalismo humanista a partir do filósofo Grócio (PEREZ LUÑO, 1995).

Mais tarde, no século XVIII, Rousseau concebe a mais célebre teoria do contrato social, justificando através dela toda forma de poder, a qual teria sua legitimidade atrelada ao consentimento dos membros da sociedade. Assim, o contrato social consistiria na ideia de que “cada um de nós põe em comum sua pessoa e toda a sua autoridade, sob o supremo comando da vontade geral, e recebemos em conjunto cada membro como parte indivisível do todo” (ROUSSEAU, 2002, p. 25-26). O contrato social, dessa forma, coloca todos os cidadãos em condições de igualdade para expressar a vontade geral, a qual é vista como o fundamento da lei cuja função é garantir e limitar a liberdade (PEREZ LUÑO, 1995).

Já no que tange ao grande marco histórico dos direitos fundamentais, pode-se destacar a Carta Magna de 21 de junho de 1215, a qual é considerada a base da constituição inglesa e, por conseguinte, de todo o constitucionalismo, tendo sido resultado de um acordo entre o rei João Sem Terra e os barões revoltados apoiados pelos burgueses de grandes cidades. Destaca-se que apesar desta Carta não garantir os direitos do Homem, mas só dos ingleses, foram declarados direitos a todos os súditos da monarquia, limitando-se o poder do rei e prevendo garantias específicas em caso de violação de direitos (FERREIRA FILHO, 2009).

Feitas as considerações iniciais, oportuno que se passe à análise das chamadas gerações dos direitos fundamentais, forma amplamente usada pela doutrina para explicar a evolução desses direitos ao longo da história, apontando-se as características de cada geração, dando-se destaque àquela em que surgiram os direitos sociais.

Partindo-se do referido critério, os direitos fundamentais sobre uma tríplice classificação: direitos fundamentais de primeira geração, direitos fundamentais de segunda geração e direitos fundamentais de terceira geração. Três elementos são determinantes para distinção entre eles, quais sejam, a relação Estado versus cidadão, a concepção política do Estado e a espécie de direito garantido – se individual, coletivo ou difuso (SHÄFER, 2005).

O modelo inicial de direitos fundamentais, ou a chamada primeira geração de direitos fundamentais partiu do consenso sobre a limitação do poder (PECES-BARBA MARTINÉZ,1999), sendo a liberdade individual elemento essencial do próprio sistema constitucional, uma vez que o direito constitucional foi pensado como um direito público, capaz de estabelecer limites à atuação do soberano, estabelecendo “círculos privados de intangibilidade” (SHÄFER, 2005, p. 19).

Dessa forma, os direitos individuais tem como titular o indivíduo e são oponíveis ao Estado, tratando-se de uma relação de exclusão, em que o Estado não pode intervir na situação jurídica do indivíduo. A própria ideia do Estado de Direito decorre da referida premissa, destacando-se, porém, que os direitos fundamentais não apenas limitam o poder político, mas também impõe o respeito das liberdades de cada pessoa pelas demais pessoas (MIRANDA, 2000).

Já o surgimento dos direitos sociais, os quais juntamente com os direitos econômicos formaram a chamada segunda geração de direitos fundamentais, decorreu do processo histórico de formação e consolidação do Estado Social. Esta concepção política do Estado se formou após desdobramentos da industrialização (a qual estimulou as diferenças entre as classes sociais, separando e colocando em condições antagônicas o capital e o trabalho) e da democratização do poder político (permitindo o exercício de pressões políticas dialéticas). A soma dos referidos elementos, segundo Shäfer (2005, p. 26), “deslocou a tradicional função do Estado, fazendo-o evoluir de uma função inerte para uma postura promocional perante o cidadão”.

Mais especificamente, pode-se dizer que após o término da Primeira Guerra Mundial os direitos sociais foram reconhecidos, sem negar ou excluir as liberdades públicas, mas somando-se a elas. A Constituição alemã de 1919, conhecida como a Constituição de Weimer, consagra os referidos direitos e se imortaliza como um marco dessa nova era de garantias sociais.

A parte mais relevante na Constituição de Weimer foi a Parte II, que dispunha acerca dos “direitos e deveres fundamentais dos alemães”. Destacam-se do referido rol a função social da propriedade, a possibilidade de socialização de empresas, a proteção ao trabalho, o direito à sindicalização e a previdência social.

A relação entre Estado e cidadão, a partir do advento do Estado Contemporâneo, na segunda década do século passado, foi radicalmente redefinida. Isso porque, a teoria dos direitos fundamentais do Estado Social passa a exigir uma intervenção pública estritamente necessária para a realização dos direitos sociais, de maneira que a intervenção estatal começa a ser concebida não mais como limite mas como fim do Estado (CANOTILHO, 1995).

Assim, a igualdade passa a ser vista como um elemento que qualifica e se torna essencial para a democracia, sendo que os destinatários dos direitos, pela concepção material adotada, devem ter tratamento isonômico, sempre visando o balanceamento das situações fáticas, o que deve ser observado pelo legislador e pelo aplicador da norma.

Destaca Bonavides (2001, p. 519) que os direitos sociais fizeram nascer a consciência de que mais importante do que proteger o indivíduo, como o fazia a teoria clássica dos direitos da liberdade, era proteger a instituição, a qual se mostra uma “realidade social mais rica e aberta à participação criativa e à valoração da personalidade que o quadro tradicional da solidão individualista”.

Ressalta-se, porém, que parte da doutrina faz ressalvas quanto à eficácia dos direitos sociais, principalmente ao destacar que os mesmos serão garantidos pelo Estado dentro do possível, tendo em vista as disponibilidades deste (BARROSO, 1990).

Alexy defende a ideia de direitos sociais mínimos, os quais deveriam ser tratados como efetivamente fundamentais e cuja concretização fosse imprescindível para o respeito ao Estado Democrático de Direito, podendo ser exigidos perante os tribunais: “a cada uno le corresponden las posiciones de prestaciones jurídicas como derechos fundamentales sociales que, desde el punto de vista del Derecho Constitucional, son tan importantes que su otorgamiento o no otorgamiento no puede quedar en manos de la simple mayoría parlamentaria” (1993, p. 494).

Assim, segundo o referido autor, não são todos os direitos sociais prestacionais (nome que dá àqueles direitos fundamentais que exigem uma prestação positiva do Estado) passíveis de cobrança tanto em relação ao poder público, como no que tange aos particulares, dando como exemplo de direitos mínimos sociais o direito a uma moradia simples, à educação escolar, à formação profissional e a um mínimo de assistência médica (ALEXY, 1993).

Fato incontroverso é que os direitos sociais necessitam não só de uma garantia formal, jurídica, mas também uma garantia econômica, material, uma vez que a ausência desta última torna secundários e inferiores os direitos fundamentais de segunda geração, tendo em vista o descumprimento dos mesmos por parte do Estado em face de uma alegada “limitação de recursos e disponibilidades materiais” (BONAVIDES, 2001, p. 596).

Há, ainda hoje, discussões acerca da aplicabilidade dos direitos sociais, discutindo-se se a sua aplicabilidade está atrelada a normas infraconstitucionais reguladoras. Com efeito, destaca Paulo Bonavides a crucial importância da efetiva “observância, prática e defesa dos direitos sociais”, de maneira que a concretização destes direitos configura “o pressuposto mais importante com que fazer eficaz a dignidade da pessoa humana nos quadros de uma organização democrática da Sociedade e do Poder” (BONAVIDES, 2001, p. 518).

Os direitos fundamentais de terceira geração, por conseguinte, decorreram da complexidade das relações intersubjetivas oriundas do pluralismo e das contradições da sociedade contemporânea. A teoria até então adotada dos direitos fundamentais, a qual fundamentava-se na ética individualista passa a se mostrar insuficiente para preservar direitos cuja titularidade é difusa, coletiva, muitas vezes indefinida e indeterminável.

Seguindo a tríade que fundamentou a Revolução Francesa (Liberdade, Igualdade e Fraternidade), pode-se afirmar que essa nova dimensão de direitos fundamentais teve como ênfase o valor da fraternidade, assim como a primeira e segunda gerações tiveram respectivamente os valores da liberdade e igualdade como direito-chave. Os direitos abrangidos a partir deste valor e que devem ser garantidos de forma omissiva e promocional pelo Estado (SCHÄFER, 2005) são os relativos à paz (em que pese alguns doutrinadores já considerarem este como direitos de quinta geração)3, à solidariedade e segurança mundiais, ao desenvolvimento, à proteção ao meio ambiente, comunicação e à conservação do patrimônio comum da Humanidade.

Ainda, tem-se falado acerca dos direitos fundamentais de quarta geração, os quais decorreriam da globalização política na esfera da normatividade jurídica. Essa nova geração seria formada pelo direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo. A garantia dos mesmos significaria “a concretização da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se no plano de todas as relações de convivência” (BONAVIDES, 2009, p. 571).

Após o breve apanhado pertinente à classificação dos direitos fundamentais, tendo-se abordado as características de cada um, passa-se à análise do direito fundamental social à moradia.

Através da Emenda Constitucional 26 de 14 de fevereiro de 2000 o direito à moradia foi incluído expressamente no rol dos direitos constitucionais, mais especificamente no Capítulo II, como Direito Social, mudando o art. 6º para o seguinte teor: “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.

José Afonso da Silva (SILVA, 2009) destaca que em muitos casos o exercício de direitos fundamentais só ocorrerá quando e se os mesmos forem reconhecidos pelo ordenamento jurídico, através da Constituição Federal. Assim, o fato do direito à moradia estar constitucionalmente previsto como direito fundamental social confere a ele determinados atributos, os quais passarão a ser abordados.

Independente do momento histórico, o direito à moradia se manifesta como um direito inerente à condição humana, tal como o direito à liberdade, de maneira que seu exercício está vinculado à própria personalidade do indivíduo. Em razão do aludido, pode-se afirmar que o direito à moradia é um direito inalienável, sendo que essa inalienabilidade diz respeito aos “princípios e direitos fundamentais que concernem ao plano dos bens da personalidade referentes à moradia” (SOUZA, 2008, p. 116).

Além disso, o direito à moradia independente da intercorrência temporal e jamais prescreve, apenas extinguindo-se com a morte do ser humano. Isso porque, a prescrição é um instituto que atinge apenas os direitos de cunho patrimonial, mas não a exigibilidade dos direitos personalíssimos extrapatrimoniais. Isso significa dizer que a cada violação do direito à moradia, nasce um novo direito do lesado ser indenizado ou receber proteção jurídica (SOUZA, 2008).

A irrenunciabilidade é outra característica do direito à moradia, assim como dos demais direitos fundamentais, e significa a impossibilidade do indivíduo renunciar o referido direito, uma vez que intimamente ligado aos princípios fundamentais da cidadania e dignidade da pessoa humana.

A ilicitude decorrente da violação do direito à moradia também é uma característica que decorre do fato do mesmo ter sido incorporado no rol dos direitos fundamentais. Esta violação de direito ocorrerá sempre que ocorrer uma lei infraconstitucional ou um ato de autoridade pública que leve à redução e desproteção do direito à moradia ou atos que inviabilizam o exercício dessa prerrogativa, de maneira que é um dever do Estado, através dos três poderes, de não só respeitar, mas proteger, ampliar e facilitar o acesso a esse direito fundamental (SOUZA, 2008).

O direito à moradia também é considerado um direito universal (SOUZA, 2008), de maneira que alcança todos os indivíduos, independente de qualquer outro requisito, como sexo, raça, crédulo, nacionalidade, condições econômicas ou convicções político-filosófica. Assim, todos gozam plenamente do exercício desse direito, inclusive os estrangeiros residentes no país.

A interdependência e a complementariedade são duas características do direito à moradia que decorrem da mesma ideia, qual seja, a de existe uma relação direta desse direito com o direito à vida, à integridade física, à educação, à assistência, à inviolabilidade de domicílio, etc., de maneira que o pleno exercício do mesmo depende da garantia dos demais, não estando isolado. Além disso, em razão do aludido, o direito à moradia não deve ser interpretado isoladamente, mas conjuntamente com os demais direitos fundamentais (SOUZA, 2008).

José Afonso da Silva (2009, p. 314) ressalta essa ideia da complementariedade e interdependência do direito à moradia, afirmando que seu conteúdo não envolve apenas a faculdade de se ocupar uma habitação, mas exige que esta observem requisitos mínimos que garantam “dimensões adequadas, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar…”. Justifica o autor que

a compreensão do direito à moradia, como direito social, agora inserido expressamente em nossa Constituição, encontra normas e princípios que exigem que ele tenha aquelas dimensões. Se ela prevê, como um princípio fundamental, a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), assim como o direito à intimidade e à privacidade (art. 5º, X), e que a casa é um asilo inviolável (art. 5º, XI), então isso tudo envolve, necessariamente, o direito à moradia. Não fosse assim seria um direito empobrecido (SILVA, 2009, p. 314)

Conforme já se referiu, muito se discute acerca da eficácia dos direitos sociais. Diante disso, passa-se a uma análise acerca da classificação das normas constitucionais vista pelo aspecto de sua eficácia e aplicabilidade, adotando-se a teoria de José Afonso da Silva. O referido autor argumenta que existem as seguintes normas constitucionais: normas constitucionais de eficácia plena, normas constitucionais de eficácia contida e normas constitucionais de eficácia limitada ou reduzida, estas últimas podendo-se dividir em duas categorias: as definidoras de princípio institutivo e as definidoras de princípio programático (SILVA, 2003).

As normas constitucionais de eficácia plena seriam aquelas que têm aplicabilidade integral e imediata, produzindo efeitos diretos e dispensando legislação complementar que lhes dê efetividade. Seriam, assim, normas suficientes em si, não necessitando da intermediação do legislador infraconstitucional.

Já no que tange às normas constitucionais de eficácia contida, pode-se defini-las como sendo aquelas que têm aplicabilidade imediata e integral, porém estão sujeitas a restrições por parte do legislador infraconstitucional. Nestas normas nota-se que o legislador constituinte regulou os interesses relativos a determinada matéria mas deixou possibilidade de restrição por parte da competência discricionária do Poder Púbico, nos termos que a lei estabelecer ou nos termos de conceitos gerais nas próprias normas enunciados (SILVA, 2003.).

As normas de eficácia limitada, por fim, não têm aplicabilidade imediata. Isso porque, para que possam produzir efeitos, as mesmas dependem de legislação ou outra providência. Como já referido, para José Afonso da Silva há dois tipos de normas de eficácia limitada: as de princípio institutivo ou organizativo (nestas, há a previsão de delineamentos gerais de determinado órgão, entidade ou instituição, deixando a efetiva criação, estruturação ou formação para a lei complementar ou ordinária), e as de princípio programático (as chamadas normas programáticas), as quais “são aquelas que traçam princípios a serem cumpridos pelos órgãos estatais (legislativo, executivo, judiciário e administrativo) visando à realização dos fins sociais do estado” (SILVA, 2003, p. 138).

Os direitos contidos no art. 6º da Constituição Federal de 1988, são classificados pela doutrina clássica, quanto ao seu grau de efetividade, como sendo de eficácia limitada e aplicabilidade mediata, considerados, com isso, de cunho programático.

Destaca Paulo Bonavides (2009) que as normas programáticas, as quais alguns querem lhe negar conteúdo normativo e outros restringir-lhes a eficácia a leis futuras, constituem no Direito Constitucional contemporâneo o campo em que mais “fluidas e incertas são as fronteiras do Direito com a Política”, concluindo que

de todas as normas constitucionais programática é indubitavelmente aquela cuja fragilidade mais suscita dúvidas quanto à sua eficácia e juridicidade, servindo assim de pretexto cômodo à inobservância da Constituição (2009, p. 245).

No entanto, mesmo que válida a teoria que defende a existência de normas programáticas constitucionais, entende-se, hodiernamente, que elas não significam meros enunciados ou meras promessas, ressaltando-se que as mesmas são tão jurídicas como as demais, de eficácia plena, exercendo relevante função, “porque quanto mais se aperfeiçoam e adquirem eficácia mais ampla, mais se tornam garantias da democracia e do efetivo exercício dos demais direitos fundamentais” (SILVA, 2009, p. 180). Assim, pode-se dizer que as normas programáticas são dotadas de eficácia jurídica e exigem a vinculação dos poderes públicos para a sua concretização.

O fato é que especificamente em relação ao direito à moradia, pode-se observar diferentes abordagens da doutrina no que se refere ao tipo de norma que o prevê. José Afonso da Silva (2009) defende que os direitos sociais, em regra, têm eficácia contida e aplicabilidade imediata, sendo que há exceções (especialmente os dispositivos que mencionam a necessidade de lei integradora – o que não ocorre com relação ao direito fundamental à moradia) que configuram normas de eficácia limitada, princípios programáticos e aplicabilidade indireta. No sentido de defender a aplicabilidade imediata do direito fundamental à moradia, Sérgio Iglesias Nunes de Souza (2008) ainda ressalta o §1º do art. 5º da CF/1988, no qual consta que “as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”, não referindo nada acerca da eficácia dos mesmos. Canotilho destaca que “a aplicabilidade directa significa, desde logo, nesta sede – direito, liberdades e garantias – a rejeição da ‘ideia creacionista’ conducente ao desprezo dos direitos fundamentais enquanto não forem positivados a nível legal” (1995, p. 186).

Ainda, a Constituição Federal prevê em outros de seus dispositivos o direito à moradia, conforme se passará a expor.

Em que pese o direito à moradia ter sido expressamente previsto no rol dos direitos fundamentais sociais apenas com a emenda constitucional nº26 de 2000, já existia um dispositivo dentro do capítulo dos direitos sociais que dispunha acerca desta garantia, qual seja, o inc. IV do art. 7º, o qual dispõe que são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais: “salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim”.

Apesar do direito à moradia estar dentro dos dispositivos que protegem os direitos sociais, o mesmo não era destinado a toda a coletividade, uma vez que vinculava a prerrogativa apenas à classe trabalhadora (SOUZA, 2008).

Já o art. 183 refere-se à moradia explicitando que “aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural”.

No referido dispositivo constitucional é visível a promoção à função social da propriedade, através da possibilidade da realização de usucapião urbano. Observa-se que um dos requisitos para que ocorra o domínio é a utilização do imóvel como moradia. A relação e diferenças entre o exercício do direito à moradia e o direito à propriedade se verá no próximo item, no qual se abordará o conteúdo do direito à moradia.4

Neste sentido, pode-se observar que o direito à moradia já constava em outros dispositivos constitucionais antes da emenda constitucional nº26 de 2000. Ocorre, porém, que a sua inclusão no rol dos direitos fundamentais sociais deu ao referido direito status diferenciado, reconhecendo-se perante o ordenamento jurídico pátrio a importância desta garantia e a estreita relação, ante a características como complementariedade e interdependência, do direito à moradia com os demais direitos fundamentais. Diante disso, e observando as teorias decorrentes da eficácia dos direitos sociais, pode-se considerar a norma que abriga o direito à moradia como de aplicabilidade imediata, em que pese sua eficácia ficar condicionada a leis infraconstitucionais e, em última análise, à discricionariedade do Poder Público, o qual também deve figurar como verdadeiro promotor da referida garantia.

 

2. O conteúdo do direito à moradia e seu papel para a efetividade da dignidade humana

Para que se faça uma análise do conteúdo do direito à moradia, faz-se necessário traçar um paralelo entre este direito e o direito à propriedade. Isso porque, apesar do direito à moradia poder ser exercido por intermédio da propriedade, há importantes diferenças entre os conceitos e os valores vinculados a cada um.

O surgimento do Estado Liberal no fim da idade média e início do séc. XIX trouxe consigo a ideia da separação definitiva entre o público e o privado, difundindo-se a ideia de separação dos poderes, a proteção dos chamados direitos fundamentais (que, conforme já se viu, vieram a ser chamados de direitos de primeira geração), assim como a ideia do estado mínimo, o qual teria um papel tão somente de garantidor das liberdades individuais, através de um exercício rigoroso da legalidade.

Dentro desse contexto, a ideia da proteção à propriedade privada veio como um dos grandes fundamentos deste modelo. Destaca Fábio Konder Comparato (1997, p. 1) que a partir do modelo liberal a propriedade ficou desvinculada da dimensão religiosa, de maneira que o direito produzido pela burguesia (segundo os moldes do Código Napoleônico) concedeu a esta propriedade um poder absoluto e exclusivo sobre determinada coisa, visando apenas a utilidade exclusiva do seu titular.

Assim, para os liberais se define a liberdade como: “…gozar de uma esfera de ação, mais ou menos ampla, não controlada pelos órgãos do poder estatal […] De fato, denomina-se ‘liberal’ aquele que persegue o fim de ampliar cada vez mais a esfera das ações não-impedidas…” (BOBBIO, 2000, p. 101).

Destaca Paulo Bonavides que os direitos de primeira geração, dentre eles o direito à propriedade, entram na categoria do status negativus referido pela classificação de Jellinek, fazendo ressaltar como valor político a separação notória entre Estado e Sociedade, o que, por fim, demonstra o caráter anti-estatal dos direitos da liberdade. E conclui o autor: “são por igual direitos que valorizam primeiro o homem-singular, o homem das liberdades abstratas, o homem da sociedade mecanicista que compõe a chamada sociedade civil, da linguagem jurídica mais usual” (BONAVIDES, 2001, p. 518).

Ocorre que essa dicotomia entre Estado e sociedade, a qual colocou a propriedade privada como um instituto pertencente tão somente ao direito privado, acabou sendo alvo das críticas socialistas, como as relatadas por Marx, pensador que destacou não haver de fato essa separação, haja vista que o Estado também estava nas mãos dos proprietários. (COMPARATO, 1997, p.2)

No Brasil, a promulgação do Estatuto da Terra em 1850 (em seu art. 1º) determinou definitivamente uma dualidade cujas consequências se observam até hoje, em relação aos que detém a propriedade efetiva e os que só têm a posse do imóvel. O referido diploma deslegitimou a posse/ocupação como meio de acesso legal à terra no país. Assim, “a única forma admitida de aquisição da terra no Brasil passou a ser a compra, absolutizando o direito de propriedade e inserindo a terra, sob a forma de mercadoria, em um mercado imobiliário urbano nascente”. (ALFONSIN, 2006, p. 3)

Através do constitucionalismo liberal de John Locke e da idéia de contrato social desenvolvida por Rosseau, o fundamento maior do direito à propriedade privada decorria de uma exigência natural de cada indivíduo, ideia que perdurou durante o séc. XVIII. A ideia de que o direito à propriedade era o mais sagrado direito dos cidadãos, inclusive, de certa forma, mais do que a liberdade, teve reflexos em importantes documentos políticos do final do referido século: assim como o Bill of Rights de Virgínia, de 12 de junho de 1776, em seu primeiro parágrafo, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, adotada pela Assembleia Nacional francesa em 1789,em seu art. 2º, apresentam a propriedade, juntamente com a liberdade e a segurança, como “direitos inerentes” a toda pessoa, ou “direitos naturais e imprescritíveis do homem”. (COMPARATO, 1997, p.2)

Porém, em decorrência da evolução das próprias ideias liberais pertinentes à propriedade, assim como a proteção ao livre exercício deste direito fora garantido, a ideia de que todo o ser humano deveria ter acesso a essa propriedade como pressuposto de uma vida humana digna passou a gradativamente ganhar força. Assim, destaca Fábio Comparato (1997, p. 3):

A lógica do raciocínio tornou incoercível o movimento político reivindicatório. Se a propriedade privada era reconhecida como garantia última da liberdade individual, tornava-se inevitável sustentar que a ordem jurídica deveria proteger não apenas os atuais, mas também os futuros e potenciais proprietários. O acesso à propriedade adquiria, pois, insofismavelmente, o caráter de direito fundamental da pessoa humana.

Com a evolução histórica e com as consequências do capitalismo ilimitado, o qual mudou drasticamente o contexto social e econômico, com grande contingente de pessoas em situação de miséria, altos níveis de desigualdade social, passou-se a se enfrentar a necessidade de intervenção do Estado nas questões pertinentes à propriedade, de maneira que também foi relativizado o direito à propriedade, através da idéia de sua função social.

A concepção privatista do direito à propriedade passa então a ser substituída por uma concepção moderna, através do direito público, já que o princípio da função social é integrante do Estado social. (SOUZA, 2008, p.218)

A intervenção estatal na economia, na busca de soluções urgentes às demandas sociais decorrentes dos problemas trazidos pela economia de mercado, pelo sistema de produção capitalista livre de qualquer controle do Estado, trouxe não só a transformação de alguns direitos já existentes, como a referida relativização do direito à propriedade, antes absoluto, mas também fez surgir os direitos sociais, culturais e econômicos (os direitos fundamentais de segunda geração, conforme já exposto).

É neste contexto que o direito à moradia começa a ser previsto primeiramente em documentos políticos internacionais5, como um dos direitos humanos e posteriormente passa a ser previsto constitucionalmente como um direito fundamental (art. 6º, caput, CF).

A conceituação de moradia ainda suscita algumas dúvidas, uma vez que está intimamente ligado à ideia de habitação, residência e domicílio, apesar de não se confundir com nenhuma delas. Destaca–se assim que:

A moradia consiste em bem irrenunciável da pessoa natural, indissociável de sua vontade e indisponível, a qual permite a sua fixação em lugar determinado, bem como a de seus interesses naturais na vida cotidiana, estes, sendo exercidos de forma definitiva pelo indivíduo, recaindo o seu exercício em qualquer pouso ou local, desde que objeto de direito juridicamente protegido. (SOUZA, 2008, p. 44)

Assim como no direito à propriedade, também se fala da função social do direito à moradia, já que em grande parte das situações o exercício da propriedade se dá pela posse direta do seu titular e com o exercício ao mesmo tempo da moradia, de maneira que as limitações existentes ao instituto da propriedade, também o são no que se refere ao direito à moradia.

Tendo sido esclarecidos alguns aspectos em torno da relação e diferenças entre o direito à moradia e o direito à propriedade, passa-se a analisar especificamente o vínculo daquele com o princípio da dignidade da pessoa humana.

Immanuel Kant formulou um conceito acerca da dignidade da pessoa humana que serve de referência até os dias atuais, sendo que destacou a impossibilidade da pessoa se atribuir um valor, assim como defendeu que o ser humano deveria ser tratado como um fim em si mesmo, e não como um meio (2004, p. 64). Assim, Kant define dignidade: “no reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo preço, e por isso não admite qualquer equivalência, compreende uma dignidade” (2004, p. 65).

Ingo Wolfgang Sarlet formula a seguinte proposta de conceituação de dignidade da pessoa humana:

Assim sendo, temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deverese fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. (2001, p. 60)

Assim, a dignidade da pessoa humana é vista como um princípio político-constitucional, o qual nada mais é do que uma norma-princípio, ou seja, “normas fundamentais de que derivam logicamente (e em que, portanto, já se manifestam implicitamente) as normas particulares regulando imediatamente relações específicas da vida social” (SILVA, 2001, p. 97) e que “traduzem as opções políticas fundamentais conformadoras da Constituição” (CANOTILHO, 1991, p. 50). E ainda destaca José Afonso da Silva: “dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida” (SILVA, 2009, p. 109).

A Constituição Federal pátria reconhece expressamente o princípio da Dignidade da Pessoa Humana como um dos fundamentos do nosso Estado Democrático de Direito (art. 1º, III, CF). Com isso, o Constituinte reconheceu expressamente que é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, uma vez que o homem constitui a finalidade precípua e não meio da atividade estatal.

Tendo em vista a dignidade ser um valor intrínseco do ser humano, não há como dizer que existe um direito fundamental à mesma, mas sim um direito a uma proteção, a um reconhecimento, ao respeito até à promoção e desenvolvimento da dignidade, assim como a uma existência humana digna, e é por isso que não se pode sustentar que a dignidade da pessoa humana é um direito fundamental (SARLET, 2004).

Ademais, há a premissa de que todos os direitos fundamentais constituem explicitações da dignidade da pessoa humana, mesmo que com intensidades distintas, sendo que em cada um deles há uma projeção deste princípio, o qual exige e pressupõe o reconhecimento e a proteção de todos esses direitos fundamentais de todas as gerações (SARLET, 2004).

Diante do aludido, e tendo em vista que o direito à moradia é considerado um direito fundamental, pode-se depreender duas principais considerações: que a efetividade do direito à moradia é pressuposto para o respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, e, mais além, que a dignidade da pessoa humana informa ao legislador e ao poder público de maneira geral, qual o alcance e real conteúdo do exercício da moradia, a qual deve ser adequada e representar um instrumento para concretização de uma vida digna.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No presente trabalho pode-se averiguar o conteúdo do direito à moradia, sendo que o mesmo não se restringe ao fato de se ter um locus, um habitat, mas exige que se possa viver dignamente nesta habitação, com a certeza decorrente de um título de propriedade, com o mínimo de infra-estrutura de bairro, com uma satisfatória mobilidade do cidadão entre o local em que mora e o local em que trabalha.

Em razão do aludido, a garantia do direito à moradia pressupõe necessariamente o combate a males contemporâneos que se identificam nos centros urbanos, tais como irregularidade fundiária e segregação espacial que literalmente separa as classes sociais em bairros com e sem infraestrutura, respectivamente para os ricos e para os pobres morarem.

Ademais, o fato do direito à moradia estar elencado no rol de direitos sociais faz com que ele tenha características peculiares, inerentes à importância que o ordenamento jurídico dá a essa prerrogativa. O próprio papel do estado na garantia deste direito fundamental social mostra-se diverso daquele meramente passivo que exerce no que tange aos direitos individuais. O direito à moradia deve ser perseguido pelo estado de forma ativa, através de prestações contínuas que garantam à população uma moradia adequada, condizente com o princípio maior da dignidade da pessoa humana.

 

REFERÊNCIAS

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ALFONSIN, Betânia de Moraes. O significado do estatuto da cidade para os processos de regularização Fundiária no Brasil. In: ROLNIK, Raquel et al. Regularização fundiária de assentamentos informais urbanos. Belo Horizonte: PUC Minas Virtual, 2006.

BARROSO, Luis Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas. Limites e Possibilidades da Constituição Brasileira. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 1990.

BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política: a filosofia política e as lições dos clássicos. (organizado por Michelangelo Bovero e traduzido por Daniela. Beccaccia Versiani). Rio de Janeiro: Campus, 2000.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2001.

Curso de Direito Constitucional. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2009.

BONDUKI, Nabil. Política habitacional e inclusão social no Brasil: revisão histórica e novas perspectivas no governo Lula. In: ArqUrb, revista eletrônica de arquitetura e urbanismo. São Paulo: 2010/2.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6 ed., Coimbra: Almedina, 1995.

COMPARATO, Fabio Konder. Direitos e deveres fundamentais em matéria de propriedade. Publicação via internet (www.csf.gov/revista/numero3), setembro-dezembro, 1997.

FERREIRA FILHO, Manuel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

LEFEBVRE, Henri. O Direito à Cidade. Trad. Rubens Eduardo Frias. São Paulo: Centauro, 5ª ed., 2008.

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 3. ed., tomo III. Coimbra: Coimbra, 2000.

PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Los derechos fundamentales. 6. ed. Madrid: Tecnos, 1995.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Tradução de Rolando Roque da Silva. Edição eletrônica: Editor Ridendo Castigat Mores. Versão para eBook, março de 2002. Disponível em: <http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/contrato.pdf >. Acesso em: 10 fev. 2012.

SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1987.

SCHAFER, Jairo. Classificação dos direitos fundamentais: do sistema geracional ao sistema unitário: uma proposta de compreensão. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.

SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das normas constitucionais. 6. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2003.

Curso de Direito Constitucional Positivo. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2009.

SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes de. Direito à moradia e habitação: análise comparativa e suas implicações teóricas com os direitos da personalidade. 2ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.

VILLAÇA, Flávio. Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo: Studio Nobel: FAPESP: Lincoln Institute, 2001.

 

2 A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (ratificada pelo Brasil na mesma data) previu no seu art. XXV, item I: “Toda a pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos(…)”. Em 1966 adotou-se o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, em que pela primeira vez o termo moradia surgia, referiu em seu art. 11: “Os Estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e para a sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como na melhoria contínua de suas condições de vida(…)”. O Brasil só anuiu em 1992 com este Pacto. Também foi previsto o direito à moradia na Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica e por outros tratados internacionais como a Declaração sobre Direitos e Deveres do Homem, a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Descriminação Racial e a Convenção sobre os Direitos da Criança e na Declaração Sobre Assentamentos Humanos de Vancouver (SOUZA, 2008).

3Neste sentido, Paulo Bonavides (2009, p. 584): “Com esse vasco círculo de abrangência dos direitos fundamentais ainda há espaço para erguer a quinta geração, que nos afigura ser aquela onde cabe o direito à paz, objeto das presentes definições”.

4 Neste mesmo sentido, só que em relação ao imóvel rural, o art. 191 da CF/1988: “Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade”.

5 Sobre os documentos internacionais que tratam do direito à moradia, abordaremos o assunto em momento posterior.

Ana Paula Dittgen da Silva

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