Considerações acerca das transformações contemporâneas na ciência jurídica

Scarica PDF Stampa

SUMARIO: Introdução. 1. Pos-positivismo e Positivismo jurídico. 2. Nova etapa no direito contemporâneo: O Direito Comunitário. Considerações Finais. Referência Bibliográfica e Webgrafia.

SUMMARY: Introduction. 1. Pos-positivism and legal positivism. 2. New stage in the contemporary law: Community law. Final considerations. Bibliographic reference and Webgrafia.

 

RESUMO

Desenvolver-se-á algumas considerações sobre duas transformações contemporâneas essenciais na ciência jurídica. A primeira delas verifica-se com o surgimento do pos-positivismo, movimento jusfilosófico que produze uma reformulação paradigmática no direito em relação ao positivismo Kelseniano. Para verificar isso se analisarão os pressupostos das referidas doutrinas a partir da perspectiva constitucional. A segunda transformação contemporânea verifica-se com o surgimento do Direito Comunitário. Esta última implica uma mudança radical na estrutura do direito e a constituição de um novo paradigma na ciência jurídica representado na ordem constitucional de um direito ampliado ao plano supranacional.

RESUMEN

Se desarrollaran consideraciones sobre dos transformaciones contemporáneas esenciales en la ciencia jurídica. La primera de ellas se verifica con el surgimiento del pos-positivismo, movimiento iusfilosófico que produce una reformulación paradigmática en el derecho en relación al positivismo Kelseniano. La segunda transformación contemporánea se produce con el surgimiento del Derecho Comunitario. Esta última implica una transformación radical en la estructura del derecho y la constitución de un nuevo paradigma en la ciencia jurídica representado mediante el orden constitucional de un derecho ampliado al plano supranacional.

SUMMARY

Will develop some considerations about two transformations contemporary essential legal science. The first one is with the emergence of pos-positivism, jusfilosófico movement that yields a reformulation of paradigm in right in relation to Kelseniano positivism. To check this if you examine the assumptions of these doctrines from constitutional perspective. The second contemporary transformation occurs with the emergence of Community law. The latter implies a radical change in the structure of the law and the Constitution of a new paradigm in legal science represented in constitutional right extended to supranational.

 

PALAVRAS-CHAVES: Positivismo; Pos-positivismo; Direito Comunitário.

PALABRAS-CLAVES: Positivismo; Pos-positivismo; Derecho Comunitario.

KEYWORDS: Positivism; Pos-positivism; Community law.

 

INTRODUÇÃO

A humanidade tem passado por mudanças em todos os seus aspectos. No plano da ciência jurídica dois pontos de relevante interesse, no que concerne ao Estado e às suas relações com os demais sujeitos internacionais, serão aqui destacados: o desenvolvimento da doutrina pos-positivista e do direito comunitário.

Primeiramente, desenvolver-se-á a doutrina constitucional pos-positivista a fim de visualizar a transformação paradigmática no pensamento jurídico contemporâneo em relação ao positivismo Kelseniano. O pos-positivismo evidencia uma transformação no direito, especialmente no que tange aos paradigmas juspositivistas.

Neste novo cénario, introduzido por este movimento jurídico, emerge a seguinte pergunta: A transformação contemporânea na ciência jurídica só verifica-se com o surgimento do pos-positivismo ou existe um estágio atual de renovação do direito que é necessário estudar?

A partir deste questionamento, ao fazer uma revisão dos pressupostos teóricos do positivismo e do pos-positivismo jurídico, destacando as diferenças e semelhanças a partir da ótica constitucional, e ao analisar a crise nos pressupostos do Estado moderno e sua soberania assim como o surgimento do Direito Comunitário sustentar-se-á que se passa por uma etapa de transformação na ciência jurídica e de constituição de um novo paradigma jurídico, segundo Luigi Ferrajoli.

 

1. POS-POSITIVISMO E POSITIVISMO JURÍDICO

No constitucionalismo contemporâneo já não são as regras escritas as únicas referências válidas para condicionar ou regular a conduta humana e, conseqüentemente, operar sobre a realidade social. O fato não só se subsume a uma regra escrita que determina uma conduta senão a princípios.

Aparecem os princípios como a Lei maior: “A Lei das Leis”:

[…] pos-positivismo,… corresponde aos grandes momentos constituintes das últimas décadas deste século. As novas Constituições promulgadas acentuam a hegemonia axiológica dos princípios, convertidos em pedestal normativo sobre o qual assenta todo o edifício jurídico dos novos sistemas constitucionais (BONAVIDES, 2002, p. 237).

Uma das propostas atuais que esta doutrina desencadeia consiste em interpretar o direito a partir dos signos3 estabelecidos na norma escrita, mas, agora condicionado por princípios. A norma jurídica se amplifica, não se resume a um texto escrito. A solução de um caso dado não se encontra só na literalidade ou na expressão semântica do direito, senão, na conjunção adequada entre a regra escrita (requerimento do dever ser normativo4) e os princípios.

A partir desta doutrina contemporânea considera-se que o direito não é só norma. Há, por tanto, detrás de todo esse fenômeno normativo “posto” pelo Estado uma serie de princípios que refletem os valores de uma sociedade determinada, sua cultura, sua forma de vida. Realidade subjacente à norma estabelecida pelo Estado que também o jurista tem a obrigação de perquirir ou descobrir.

Willis Santiago Guerra Filho (2001, p. 134) concorda:

A questão central que se coloca, então, para enfrentar o problema do correto entendimento de nossa Constituição da República, é a de se estabelecer o princípio e valor maior à luz do qual poderão se esclarecer dúvidas quanto à forma adequada de equacionar o conflito… O princípio construtivo e fundamental que procuramos encontra-se, portanto, implícito e pressuposto na reunião entre Estado de Direito e Democracia.5

Para determinação e especificação destes princípios é necessário um procedimento hermenêutico que inclua uma perspectiva valorativa, dado que os princípios são por si mesmo uma dimensão axiológica do direito. Considera Guerra Filho (2001, p. 128):

Esse método, portanto, não só se dirige primordialmente a apreciar e implementar valores expressos em princípios, como também, ele próprio, é estruturado por meio de uma valoração, na qual se explicitam os objetivos que, como seu emprego, se pretende alcançar. Isso revela determinações históricas, políticas e culturais a atuar a adoção e elaboração de um tal método, que será tanto melhor quanto maior a sua adequação às necessidades de uma sociedade, em dado momento, o que, por sua vez, pode-se tentar atingir tematizando, explicitamente, as opções que se oferecem e indicando aquela escolhida.

O positivismo clássico, só circunscrito à norma “posta” pelo Estado (existente e, portanto, válida por ser sancionado por órgãos públicos com competência jurídica) e de subsunção (dado A deve ser B) agora aparece mitigado.

Assim, o jurista tem que ir além da norma “posta” por meio de um método hermenêutico (que significa criação) para descobrir a realidade subjacente à norma: valorá-la, atribuir-lhe significado axiológico, para logo adequá-la aos princípios imperantes.

Este meio é uma forma superadora do tradicional positivismo por incluir múltiplas variáveis e perspectivas para o correto entendimento da norma constitucional, considerando-se que o ambiente social também condiciona o atuar do homem6 e o conhecimento desse ambiente amplifica a visão do jurista.

Assim:

[…] Há que se encontrar um modo superador daquilo que foi o estudo do Direito durante o século XX, marcado pelo positivismo jurídico. Este concebeu o direito como um ordenamento composto de normas, em forma de regras jurídicas, menosprezando princípios e valores. Predominou, assim, uma visão formalista do direito, despreocupada com o conteúdo daquilo que deve ser… Exige-se a confluência de vários enfoques no estudo do Jus, isto é, de diversas perspectivas. O conjunto destas possibilitará a percepção de que o Direito é fenômeno que se manifesta no ambiente social (GOMES, 2010, ps. 150-153).

De forma contrária a este movimento jurídico encontra-se o positivismo Kelseniano. Para este a ciência jurídica deve concentrar-se em dilucidar seu pressuposto básico, quer dizer: a “norma fundamental” de Kelsen7. Esta é um axioma da teoria pura consistente em considerar que a conduta humana deve ser guiada por uma forma predeterminada (uma regra formal válida determina o sentido objetivo e correto da conduta). Por isso se associou ao conductivismo que concebe as ações humanas por meio de estímulos-respostas.

Esse axioma (constituído pela “grundnorm”) serviu para fundamentar em sua teoria pura a validade da norma jurídica e estruturar uma pirâmide de fontes normativas. O sentido objetivo da conduta estaria predeterminado, ou dado, por uma norma que vale porque, por sua vez, ela também tem um fundamento objetivo de validade dado por uma norma superior. Portanto, a conduta é correta ou incorreta e não justa ou injusta, se adéqua ou não à norma.

Por isso o emprego de uma linguagem prescritiva: em caso da conduta não se adequar leva, inevitavelmente, à aplicação da conseqüência preestabelecida (= prescrição). Assim, o “Dever Ser” não aparece como uma categoria moral (ou fundada em algum princípio suprapositivo), senão, como categoria analítica contida na própria norma posta pelo Estado.

É uma categoria lógica transcendental que o positivismo introduz no objeto: O “dever ser normativo”. Dimensão amoral e atribuída à linguagem que mostra o universo legal. A norma fundamental é um imperativo hipotético que não se encontra na linguagem descritiva da norma senão que se pressupõe.8

Daí que a norma jurídica não proíbe matar em Kelsen. A norma ao tratar uma situação de fato, repudiada por uma sociedade, por exemplo, o homicídio –mundo do ser – concatena uma sanção. Esta lógica interna é fatal: verificado o fato, a conseqüência é inexorável.

Esta estrutura básica, que tanto pesou no pensamento jurídico do século XX, foi fortemente criticada pela sociologia do direito. Esta verificou que o fundamento de validade da teoria pura (base da ciência jurídica e do modo de atuar de um amplo espectro da comunidade de advogados, juízes, doutrinadores etc.) não resulta suficientemente corroborado com a realidade.

Funda-se todo um sistema racional cientifico em um pressuposto. Desde o ponto de vista epistemológico, descobre-se um problema de verificação da hipótese central: quando observando a realidade detecta-se que muitas das condutas humanas não seguem uma guia predeterminada, ou não respondem a um estimulo específico. A sanção que estipula uma norma jurídica já não vai diminuir necessariamente o delito. O homem em suas inter-relações constrói também normatividade própria, paralela ao sistema formal estabelecido pelo Estado, e essa normatividade tem o mesmo grau de validade e eficácia que a norma estatal. Não existe norma superior, nem atribuição de sentido objetivo dado à conduta. O sentido é configurado pelas inter-relações do sujeito num contexto social e cultural determinado.

Fora desta sucinta observação, os princípios que traz o pos-postivismo são também uma categoria analítica baseada no mesmo pensamento binário: “Ser” e “Dever Ser” – num caso “substancial-axiológico-cultural-social”, no outro “amoral-normativo”.

Os princípios não deixam de ser um pressuposto condicionante. E é assim porque o principio é aberto e necessita de determinação.9 Só se precisa seu significado e alcance por meio de um procedimento interpretativo que, por natureza, é construtivo e criativo. O interprete por meio de suas considerações valorativas atribui uma dimensão axiológica ao direito para lhe permitir explicitar os valores sociais da comunidade.

O ponto inovador do pos-positivismo está em que nessa construção de determinação da dimensão axiológica, expressada por meio dos princípios, o interprete o terá que fazer nos limites semânticos estabelecidos no texto da regra jurídica.

Enfim, no positivismo Kelseniano vai ser a subsunção do fato à norma, ou seja, tomar a norma (material posto e objeto de analise do jurista) para deduzir sua aplicabilidade ao caso concreto. No pos-positivismo se considerará a norma, mas como limite do mecanismo hermenêutico. Exige um foco realístico e pragmático do fato para poder interpretá-lo, valorá-lo, descobrir relações de causa-efeito para poder aportar um significado preciso e concreto do principio regulador aplicável.

Esta perspectiva permite conceber o fenômeno normativo como universo circundante à realidade social histórica e atual de uma sociedade determinada, configurando um novo paradigma e a conformação do Constitucionalismo contemporâneo.

Como destaca Ferrajoli (2001) o “iusnaturalismo” em suas variantes foi a filosofia jurídica dominante da época premoderna, enquanto carecia do monopolio estatal da produção jurídica, o “iuspositivismo” o foi a partir das codificações e o nascimento do Estado Moderno, e o “Constitucionalismo” é hoje um novo modelo paradigmático depois da introdução da garantía jurisdicional da rigidez das constituições.

Este câmbio revolucionário de paradigma no Direito contemporâneo verifica-se no seguinte: alteram-se, em primeiro lugar, as condições de validade das leis que dependem do respeito já não somente em relação às normas processuais sobre a sua formação, senão também em relação às normas substantivas sobre seu conteúdo, isto é, dependem de sua coerência com os princípios de justiça estabelecidos pela Constituição; em segundo lugar, altera-se a natureza da função jurisdicional e a relação entre o juiz e a lei; em terceiro, altera-se o papel da ciência jurídica que, devido ao câmbio paradigmático, resulta investida de sua função não somente descritiva, senão crítica e contrutiva em relação ao seu objeto (FERRAJOLI, 1995 apud STRECK, 2004, p. 181).

Ferrajoli destaca que a constitucionalização rígida dos direitos fundamentais e a divisão dos poderes, impondo obrigações e proibições aos poderes públicos, tem produzido efetivamente na democracia uma dimensão “substancial”, que corresponde ao modelo neo-iuspositivista do Estado Constitucional de Direito (o Estado Constitucional) –modelo paradigmático contrário ao modelo paleo-iuspositivista do Estado Legislativo de Direito (o Estado Legal)– (FERRAJOLI, 2001, p. 31).

A subordinação da lei aos princípios constitucionais equivale a introduzir uma dimensão substancial, não só nas condições de validez das normas, senão também na natureza da democracia. O constitucionalismo rígido produz o efeito de completar tanto o estado de direito como o mesmo positivismo jurídico, que alcança com ele sua forma última e mais desenvolvida (FERRAJOLI, 2001, p. 35)10.

Altera-se, neste estágio, a relação entre política e direito, uma vez que o Direito já não está subordinado à política como se dela fosse instrumento, senão que é a política que se converte em instrumento de atuação do Direito, subordinada aos vínculos a ela impostos pelos princípios constitucionais (FERRAJOLI, 1995, apud STRECK, 2004, p. 182).

 

2. NOVA ETAPA NO DIREITO CONTEMPORÂNEO: O DIREITO COMUNITÁRIO

Estes modelos precitados estão em crise, manifestada igualmente em outras tantas formas de regresão a um direito jurisprudencial de tipo premoderno: por um lado, o colapso da capacidade reguladora da lei e o retorno ao papel criativo da jurisdição; por outro, a perda da unidade e coerência das fontes e a convivência e superposição de diversos ordenamentos concorrentes (FERRAJOLI, 2001, p. 35).

Assim também, essa crise pode ser percebida em outros aspectos como no modelo político e jurídico do Estado (próprio da Modernidade). Verificada nos pressupostos modernos do Estado, e em sua Soberania, introduzidos pela nova forma de relacionamento entre os Estados que expõe o mundo Ocidental.

Neste sentido, como considera Floriano Peixoto, o “Estado Desafiado”, verificado a partir das mudanças econômicas, sociais e políticas contemporâneas, significa uma reformulação dos elementos tidos como típicos e constitutivos dos Estados-Modernos (DE AZEVEDO MARQUES NETO, 2002, p. 129).

A integração comunitária dos Estados dimensionou o direito a espaços além das fronteiras clássicas tradicionalmente limitadas por territórios, cultura, língua, costumes etc., estimulando e fortalecendo um novo sentimento de pertença nos cidadãos. Surge uma nova consciência subjetiva (HABERMAS, 2001, p. 69) que, entre outros fatores, redimensiona e relativiza a soberania clássica dos Estados modernos.

A soberania dimensionou sua concepção e caracterização jurídico-política tradicional a um espaço mais amplo, agora dentro da órbita do Direito Internacional.

De fato o que entrou irreversivelmente em crise, bem antes do atributo da soberania, é precisamente seu sujeito: o Estado nacional unitário e independente, cuja identidade, colocação e função precisam ser repensadas à luz da atual mudança, de fato e de direito, das relações internacionais… [hoje, em conseqüência, não podem cindir-se quaisquer problemas jurídicos da órbita do Direito Internacional]. Fora do horizonte do direito internacional de fato, nenhum dos problemas que dizem respeito ao futuro da humanidade pode ser resolvido, e nenhum dos valores do nosso tempo pode ser realizado: não apenas a paz, mas tampouco a igualdade, a tutela aos direitos de liberdade e sobrevivência, a segurança contra a criminalidade, a defesa do meio ambiente concebido como patrimônio da humanidade, conceito que também inclui as gerações futuras. E isso depende não apenas do caráter já global do tamanho desses problemas, pois uma integração do mundo já se realizou em todos os planos e em todas as esferas de vida em relação às quais tais problemas se colocam: na economia, na produção, na exploração e no aproveitamento dos recursos, nos equilíbrios ecológicos, na grande criminalidade organizada, no sistema das comunicações (FERRAJOLI, 2002, p. 45-51).

Emerge neste contexto o Direito Comunitário incidindo notoriamente sobre o direito interno dos Estados e reformulando os conceitos e categorias jurídicas tradicionais, a ponto tal que se corre risco de produzir-se uma dissolução da modernidade jurídica (FERRAJOLI, 2001, p. 36).

O Direito Comunitário não é um ramo direito internacional clássico. É um fenômeno que emerge a partir da formação dos blocos regionais de integração, mas, com a delegação de soberania a órgãos supranacionais.

[…] é fundamental distinguirmos o Direito da Integração do Direito Comunitário. O primeiro é um desdobramento do Direito Internacional Público… não tem autonomia positivo-epistemológica, pois parte do próprio Direito Internacional Público. O Direito Comunitário, por sua vez, só se faz presente no processo de integração acompanhado da delegação de soberania e da formação de uma esfera político-jurídica supranacional… estágio bastante avançado da integração econômica, política, social e jurídica entre Estado soberanos (SILVA, 1999, p. 44).

Este direito implica sim uma transformação em relação à ciência jurídica contemporânea e o nascimento de uma nova etapa. O universo institucional criado pela integração produz uma diversidade de normas jurídicas atentando diretamente contra o monopólio da produção jurídica ostentado pelo Estado moderno.

Como sustenta Ferrajoli:

É uma conseqüência do fim do estado nacional como monopólio da produção jurídica. É emblemático a respeito o processo de integração da Europa. Por um lado, tal processo esta deformando a estrutura constitucional das democracias nacionais, tanto no aspecto da representatividade política dos órgãos comunitários dotados de maiores poderes normativos, como em sua rígida subordinação a limites e controles constitucionais claramente ancorados na tutela dos direitos fundamentais. Por outro lado, tem situado fora dos limites dos estados nacionais grande parte dos centros de decisão e das fontes normativas, tradicionalmente reservadas a sua soberania. (2001, p. 36). (Tradução livre).11

Direito este que tem seu próprio estatuto epistemológico, diferenciado do direito internacional, e que reformula diretamente a fonte de legitimação jurídica interna de cada Estado. O caráter de eficácia direta e supremacia da norma comunitária transformam o espírito e a natureza do direito interno (tanto público como privado).

No universo de países integrados a referência deixa de ser diretamente o direito nacional, inclusive a própria constituição, para passar a ser um direito supranacional, sem violar o Estado de direito interno. Assim se tem pronunciado a jurisprudência do Tribunal Constitucional da Espanha e da maioria dos Tribunais Constitucionais Europeus (SENTENÇA N° 183 apud FERRAJOLI, 2001, p. 43):

A operação de sessão do exercício da competência à União Européia e a integração conseguinte do Direito Comunitário em nosso próprio impõem limites inevitáveis às faculdades soberanas do Estado, aceitáveis unicamente em tanto o Direito Europeu seja compatível com os princípios fundamentais do Estado Social e Democrático de Direito estabelecido pela Constituição Nacional… Esses limites materiais, não recolhidos expressamente no preceito constitucional, mas que implicitamente derivam-se da Constituição e do sentido essencial do próprio preceito traduzem-se no respeito da soberania do Estado, de nossas estruturas constitucionais básicas e do sistema de valores e princípios fundamentais consagrados em nossa Constituição (Disponível em: http://www.tribunalconstitucional.es/Stc2004/DTC2004- 001.htm). (Tradução livre)12

Este fenômeno, que não é novo, por ter mais de meio século de existência, nunca antes existiu na cultura jurídica da humanidade. Como assinala Ferrajoli é a terceira mudança de paradigma na ciência jurídica: O primeiro estaria no trânsito do direito jurisprudencial premoderno, fundado na doutrina jusnaturalista (na idéia de justiça), ao Estado legislativo de direito (com o nascimento dos Estados modernos e do positivismo jurídico); a segunda transformação paradigmática verificar-se-ia no trânsito deste último modelo para o Estado constitucional de direito (onde o poder, ademais de surgir de uma fonte legal, contêm limites fundado nos princípios e direitos fundamentais); e, por último, a terceira mudança paradigmática hoje verificada neste novo modelo: “[…] a ordem constitucional do direito ampliado ao plano supranacional, que já não tem nada do velho Estado embora conserva dele as formas e garantias constitucionais” (2001, p. 40).

Esta transformação não só existe no mundo ocidental Europeu, também existe no âmbito da América Latina. O MERCOSUL tem consolidado projetos e realizados muitos dos seus objetivos, independente de um padrão ideal, mostrando-se como um processo que reflete tanto iniciativas políticas internas dos Estados membros, como eventos econômicos reais ocorridos na região (ex.: migração, circulação de fatores da produção, incremento do comércio intra-zona), não controlado pelos dirigentes políticos, mas, que por sua força constitutiva iniludível passaram a integrar a agenda de trabalho do projeto integracionista, ou seja, formar parte da política interna dos Estados membros.

Assim, o Ministro-Conselheiro na Embaixada do Brasil em Washington afirmou:

[…] Algumas dessas iniciativas… confirmam a vocação do MERCOSUL em ultrapassar seus meros efeitos comerciais ou derivações econômicas no sentido de firmar-se como pólo de desenvolvimento desse espaço integrado e democrático na América do Sul, objetivo implícito na letra e no espírito do tratado (SCIENTIA IURIS, 2002, p. 38).

Apesar dos países do MERCOSUL decidiram não atribuir às normas constitutivas e derivadas dos órgãos do processo de integração regional operatividade, nem eficácia direta, até que não sejam incorporadas pelos ordenamentos jurídicos internos, vem se conformando um ordenamento especial como expressão do desenvolvimento pleno e efetivo das manifestações econômicas, políticas e sociais que naturalmente existem na região.

Como destaca Granillo Ocampo (2007, p. 580):

É importante salientar que o MERCOSUL trata de uma realidade que, além de suas falências, exterioriza a existência de um ordenamento jurídico especial, que vem impulsionando e desenhando transformações substanciais no relacionamento entre os Estados Partes e os cidadãos do espaço integrado. (Tradução livre).13

Em suma, o Direito Comunitário representa esta nova etapa de transformação na ciência jurídica. É a preocupação e o desafio atual da ciência jurídica contemporânea: propor um constitucionalismo sem Estado à altura dos novos espaços de poderes criados pela integração jurídica e institucional, já não Estatal senão supraestatal (FERRAJOLI, 2001, p. 38). Muitos autores até defendem a idéia de instituir um governo mundial sem fronteiras por meio de um constitucionalismo internacional.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O pos-positivismo contemporâneo representou um movimento iusfilosófico que reformulou os pressupostos paradigmáticos do positivismo Kelseniano, trazendo os princípios constitucionais como reguladores e imperantes do sistema jurídico. Esta perspectiva permite incluir múltiplas variáveis e perspectivas para o correto entendimento da norma jurídica amplificando a visão do jurista.

Alteram-se, em primeiro lugar, as condições de validade das leis que dependem do respeito às normas substantivas, isto é, dependem de sua coerência com os princípios de justiça estabelecidos pela Constituição. Altera-se a natureza da função jurisdicional, a relação entre o juiz e a lei e altera-se o papel da ciência jurídica.

Logo o surgimento do Direito Comunitário vem a representar uma nova transformação contemporânea na ciência jurídica. Implica uma mudança radical na estrutura do direito positivo, a ponto de pensar-se, como dito acima, na dissolução da modernidade jurídica.

Significa, segundo Ferrajoli (2001, p. 40), a constituição de um novo paradigma na ciência jurídica por representar um novo modelo de direito: a ordem constitucional de um direito ampliado ao plano supranacional.

A transcendência do fenômeno da integração comunitária entre Estados soberanos, que vem reformulando profundamente o direito de raiz ocidental Europeu, evidencia-se a partir do trânsito do direito positivo interno do Estado para instancias supranacionais que produz, conseqüentemente, uma transformação radical na natureza do ordenamento interno de cada Estado membro. Por isso a importância de estudar esta disciplina e aprofundar em seu estatuto epistêmico.

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA E WEBGRAFIA

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 12° Ed., 01.2002, Brasil, Malheiros Editores Ltda.

DE AZEVEDO MARQUES NETO, Floriano Peixoto. “Regulação Estatal e Interesses Públicos”. Brasil, Malheiros Editores, 2002.

FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno: nascimento e crise do Estado Nacional. Trad. Carlo Coccioli, Márcio Lauría Filho. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

Pasado y Futuro del estado de derecho. Universidad de Camerino (Itália), RIFP / 17, 2001.

GOMES, Sergio Alves. Hermenêutica Constitucional: um contributo à construcao do Estado Democrático de Direito. Curitiba: Juruá, 2010.

HABERMAS, Jürgen. A constelação Pos-Nacional: Ensaios Políticos. São Paulo: Littera Mundi, 2001.

HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional. Centro de Estudios Constitucionales. Madrid, 1983.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado, 7° Edição – São Paulo: Martins Fontes, 2006.

NEVES. Marcelo. Teoria da Inconstitucionalidade das Leis. São Paulo: Saraiva, 1988.

OCAMPO, Raul Granillo. Derecho Público de la Integración, Capitulo XV – El Mercosur”. Ed. Abaco de Rodolfo de Palma, 2.007.

SANTIAGO GUERRA FILHO, Willis. Teoria Processual da Constituição. 2° Ed. São Paulo: Celso Bastos Editor. Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 2002.

Teoria da Ciência Jurídica. São Paulo: Saraiva, 2001.

SCIENTIA IURIS. Revista do Curso de Mestrado em Direito Negocial da UEL. Universidade Estadual de Londrina. Centro de Estudos Sociais Aplicados. Roberto De Almeida, Paulo. Dez Anos de Mercosul: Uma Visão Brasileira. V.4 – 2002.

SILVA, Roberto Luiz. Direito Comunitário e de Integração. Ed. Síntese Ltda, 1999, 1° edição.

STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. 2° Edição. Rio de Janeiro: Forense, 2004.

Declaración STC 2004-001, de 13 de Diciembre de 2004. Disponível em: http://www.tribunalconstitucional.es/Stc2004/DTC2004-001.htm.

 

3 Cf. Marcelo Neves. Teoria da Inconstitucionalidade das Leis, São Paulo: Saraiva, 1988, p. 73. Sustenta o autor: “[…] numa perspectiva semiótica… o tratamento e solução jurídicos são condicionados intensamente pelo contexto fático-social e pelo ideológico, em face das propriedades semânticas e pragmâticas da linguagem cosntitucional, que implicam um modo de pensar situacional – nao sintático-semânticamente isolado”.

4 Cf Konrad Hesse. Escritos de Derecho Constitucional. Centro de Estudios Constitucionales. Madrid, 1983, p. 46. Assim: “[…] el interprete… se halla obligado a la inclusión [del problema] en su ´programa normativo´ y en su ´ámbito normativo´”.

5 Grifado no texto me pertence.

6 No dizer de Èmile Durkheim: “fatos sociais consistem em maneiras de agir, pensar e sentir exteriores ao indivíduo, e dotadas de um poder coercitivo em virtude do qual se lhe impõem” (apud GOMES, 2010, p. 158).

7 Para Kelsen a norma tem uma lógica pura, e só pelo fato de existir “supõe” validade, quer dizer, tem força objetiva para condicionar a conduta humana. Observemos, sucintamente, alguns trechos do seu pensamento: “Se o ato legislativo, que subjetivamente tem o sentido de dever-ser, tem também objetivamente este sentido, quer dizer, tem o sentido de uma norma válida, é porque a Constituição empresta ao ato legislativo este sentido objetivo. O ato criador da Constituição, por seu turno, tem sentido normativo, não só subjetiva como objetivamente, desde que se pressuponha que nos devemos conduzir como o autor da Constituição preceitua. Se um homem que se encontra em estado de necessidade exige de outro que lhe preste auxílio, o sentido subjetivo da sua pretensão é o que o outro lhe deve prestar auxílio. Porém, uma norma objetivamente válida que vincule ou obrigue o outro só existe, nesta hipótese, se vale a norma geral do amor do próximo, eventualmente estabelecida pelo fundador de uma religião. E esta, por seu turno, apenas vale como objetivamente vinculante quando se pressupõe que nos devemos conduzir como o fundador da religião preceituou. Um tal pressuposto, fundante da validade objetiva, será designado aqui por norma fundamental (grundnorm)”. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado, 7° Edição – São Paulo: Martins Fontes, 2006, pag. 9. O grifado me pertence.

8 Neste ponto pode verificar-se alguma semelhança entre o pos-positivismo e o positivismo: um “suposto” ou “pressuposto” como fundante da validade e legitimidade do sistema normativo. No primeiro, de natureza axiológica-social e cultural, no segundo, de natureza exclusivamente normativa.

9 “Os princípios fundamentais… devem ser entendidos como indicadores de uma opção pelo favorecimento de determinado valor, a ser levada em conta na apreciação jurídica de uma infinidade de fatos e situações possíveis, juntamente com outras tantas opções dessas, outros princípios igualmente adotados, que em determinado caso concreto podem se conflitar uns com os outros, quando já na são mesmo, in abstrato, antinômicos entre si”. Cf. Willis Santiago Guerra Filho. Teoria Processual da Constituição. 2° Ed. São Paulo: Celso Bastos Editor. Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 2002, p. 17.

10 Cital literal em Espanhol: “La subordinacion de la ley a los principios constitucionales equivale a introducir una dimension sustancial, no sólo en las condiciones de validez de las normas, sino tambíen en la naturaleza de la democracia […] el constitucionalismo rígido produce el efecto de completa tanto el estado de derecho como el mismo positivismo jurídico, que alcanzan con él su foram última y más desarrollada” (Tradução livre).

11“Es una consecuencia del fin del estado nacional como monopolio exclusivo de la producción jurídica. Es emblemático al respecto el proceso de integración de Europa. Por un lado, tal proceso esta deformando la estructura constitucional de las democracias nacionales, tanto en el aspecto de la representatividad política de los órganos comunitarios dotados de mayores poderes normativos, como en el de su rígida subordinación a límites y controles constitucionales claramente anclados en la tutela de los derechos fundamentales. Por otro lado, ha situado fuera de los limites de los estados nacionales gran parte de los centros de decisión y de las fuentes normativas, tradicionalmente reservados a su soberanía”. O autor faz uma cita na pagina 43 [ponto 7] considerando o seguinte: “Se ha calculado que son directa o indirectamente de origen comunitario el 80 % de nuestra legislación; cfr. M. Cartabia y J.H.H. Weiler, L´ Italia in Europa, Profili istituzionli e costituzionali, II Mulino, Bologna, 2000, p. 50”.

12 “La operación de cesión del ejercicio de competencias a la Unión Europea y la integración consiguiente del Derecho Comunitario en el nuestro propio imponen límites inevitables a las facultades soberanas del Estado, aceptables únicamente en tanto el Derecho Europeo sea compatible con los principios fundamentales del Estado Social y Democrático de Derecho establecido por la Constitución Nacional… Esos límites materiales, no recogidos expresamente en el precepto constitucional, pero que implícitamente se derivan de la Constitución y del sentido esencial del propio precepto, se traducen en el respeto de la soberanía del Estado, de nuestras estructuras constitucionales básicas y del sistema de valores y principios fundamentales consagrados en nuestra Constitución”.

13 “Es importante resaltar que el MERCOSUR se trata de una realidad que, mas allá de sus falencias, exterioriza la existencia de un ordenamiento jurídico especial, que viene impulsando y diseñando transformaciones sustánciales en el relacionamiento entre los Estados Partes y los ciudadanos del espacio integrado”.

Gaston J. Giuffre

Scrivi un commento

Accedi per poter inserire un commento