Compliance

Monica Gusmao 23/06/11
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“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por meio dele”[1].

Imaginem se Deus, em vez de fazer o mundo sozinho, tivesse decidido convidar os anjos, os arcanjos, os querubins e os serafins para tomarem parte nessa empreitada. Passada a estupefação inicial, Ele diria aos circunstantes o que entendia por “mundo”, como e por que constituir essa “empresa”, que negócio era esse e para que serviria,  e com base em quais regras internas e externas deveria funcionar para que bem convivesse com outros mundos. Em seguida, explicaria a todos os princípios gerais que regeriam toda a vida nesse mundo, cometeria a cada qual um feixe de direitos e responsabilidades, explicaria os métodos por meio dos quais os partícipes poderiam diagnosticar eventuais erros de percurso, e a forma de resolvê-los, para que tudo andasse conforme o projeto original, a fim de que todos os que nele vivessem pudessem tirar o maior proveito possível, com o menor custo para cada um, e de tal sorte que todos usufruíssem dele de um jeito equitativo e justo. Se Ele tivesse feito isso, teria construído o mundo debaixo de um magnífico sistema de gestão de riscos, governança corporativa e compliance.

 

Governança corporativa

Já disse, noutro lugar[2], que a expressão “governança corporativa” foi cunhada para definir um sistema de gerência empresarial por meio do qual as sociedades são administradas e monitoradas, permanentemente, e de modo transparente entre acionistas, quotistas, Conselhos de Administração, diretores, auditores internos e independentes, conselhos fiscais e outros mecanismos internos de gestão. É, em suma, uma tomada de consciência empresarial para o enfrentamento da corrupção na empresa e um freio ao desrespeito à lei[3]. A L.nº 10.303/2001 alterou parcialmente a lei das sociedades anônimas e trouxe à cena a governança corporativa, também chamada boa governança ou governança de TI(tecnologia de informação)[4]”. Embora a lei tenha trazido mecanismos para sua aplicação, falta a efetiva concreção. Os contornos jurídicos desse instituto ainda não estão definidos[5]. A expressão  governança corporativa abarca todos os assuntos diretos ou correlatos ao poder de controle e gestão de uma sociedade e, claro, as diversas formas de exercício desse poder. Nos limites da teoria econômica das empresas, uma política séria de governança corporativa constitui um valor que se agrega à sociedade, conquanto ela em si não crie esse valor[6]. Se a sociedade instituiu e executa, efetivamente, uma política de governança corporativa densa e transparente, transmite ao sócio, ao acionista ou ao mercado-alvo consumidor, e à própria sociedade, a imagem de um negócio sério, lucrativo, exitoso e bem administrado, preocupado com a qualidade do serviço ou do produto que entrega ao mercado, com os interesses dos acionistas, com a coletividade de empregados, com o cumprimento da legislação aplicável e com responsabilidade social e pelo meio ambiente. Segundo os arautos dessa nova forma de gerir a empresa, assim entendida como a atividade empresarial, a governança corporativa surgiu da necessidade de se contornar o conflito de agência, isto é, o dissenso surgido no âmbito da vida empresarial como decorrência da separação entre a propriedade e a gestão empresarial. Esse conflito consiste, basicamente, no divórcio de vontades entre o titular da empresa e o agente por ele delegado para geri-la. Ou seja: o efetivo titular do empreendimento delega a certas pessoas o gerenciamento dessa atividade, mas nem sempre os interesses de quem administra a propriedade em nome do seu efetivo titular estão afinados com os interesses do próprio titular. A governança corporativa seria, grosso modo, um sistema de práticas gerenciais e organizacionaisque, sem menosprezar os interesses dos empregados, acionistas, sócios e da coletividade onde a sociedade empresária atua — capaz de ajustar o comportamento dos executivos aos interesses dos acionistas. Estes (os acionistas) teriam, na governança corporativa, um tipo de gestão estratégica da sua empresa e o efetivo controle dos critérios administrativos da gerência executiva. É, em suma, uma resposta à crise de confiança dos investidores que implicou, em vários momentos, séria pressão sobre os preços das ações em bolsa, e vultosos prejuízos às empresas envolvidas em crises financeiras. A governança corporativa acaba por repercutir na natureza jurídica das sociedades anônimas, não se enquadrando na teoria institucionalista, que, segundo Otto von Gierke[7], tenta provar a existência de um interesse autônomo da sociedade, prioritário e independente dos interesses individuais dos acionistas[8]. Governança corporativa é a harmonização dos interesses privado e social, ou seja, a empresa exercida por uma companhia deve necessariamente satisfazer aos interesses dos sócios controladores e minoritários, bem como aos da sociedade em geral, tais como empregados e consumidores[9]. É proveitoso registrar que governança corporativa não visa somente a tutela dos interesses dos acionistas minoritários. O compromisso é maior. Objetiva a conjugação de interesses da companhia, dos minoritários, do controlador, da coletividade, dos credores e dos empregados. O acionista controlador deve usar o seu poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto (atividade) e cumprir sua função social (princípio da preservação da empresa). Tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender. Os mesmos deveres são impostos aos administradores que devem exercer suas atribuições para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa[10]. Em matéria publicada na Revista Exame[11], concluiu-se em pesquisa que a responsabilidade social da maioria das empresas vai pouco além de atender bem o consumidor”.

 

Gestão de Compliance

Compliance” é neologismo criado no mundo das finanças a partir do verbo inglês “to comply”, que significa, grosso modo, “agir de acordo com uma regra”, “seguir uma instrução, comando ou pedido”. Transposto para o universo corporativo, a expressão “compliance” identifica aquele punhado de regras, disciplinas e mecanismos que permitem observar e fazer cumprir as normas legais e regulamentares que diretamente repercutem no sucesso do empreendimento, bem assim as políticas e diretrizes originariamente fixadas para a vida do negócio. Uma boa gestão de compliance deve ser capaz de permitir aos administradores detectar, com razoável antecedência, quando certa estratégia não vai bem, e o que fazer para corrigir o rumo antes que seja tarde, ou a um custo financeiro, social ou corporativo mais elevado que o normalmente esperado. Os especialistas confirmam que a maior crítica dos investidores estrangeiros ao sistema legislativo e judiciário do Brasil reside justamente nesse declarado descompromisso com os contratos e a rapidez com que se alteram a jurisprudência dos tribunais e a legislação, o que torna os mercados de alto risco e impede a construção de uma política de investimenstos segura e duradoura. O resultado disso é a constante fuga de capitais para mercados menos voláteis, a queda da poupança, a instabilidade das organizações, a pulverização dos postos de trabalho, a sonegação de impostos e, na ponta desse script macabro, a precarização do trabalhador, a fragmentação da força sindical e a estagnação econômica. Uma gestão de compliance permitira corrigir esses desvios, dando aos sócios do negócio e aos seus investidores aquele mínimo de segurança de que precisam para manter a empresa em funcionamento.

A verdadeira gestão de compliance fia-se naquilo que GALBRAITH chamou de tecnocracia, isto é, a empresa, entendida como atividade do empresário, deve ser fatiada entre quem investe o capital, quem o executa e quem o fiscaliza. Não se põe a raposa para tomar conta do galinheiro, como se diz popularmente. Na gestão de compliance não se deve deixar de fora os sindicatos, os comitês de empresa, o ombudsman, o relações públicas, o pessoal da área de marketing, a área de pessoal, o jurídico, enfim, todas aquelas pessoas que servem de estrada plana entre um pequeno problema interno e o mais bem preparado para resolvê-lo bem e rapidamente.

 

Conclusão

Engajar-se numa efetiva gestão de compliance exige mais que simples desejo empresarial. Exige comprometimento público. As gestões de compliance que experimentam sucesso começam nas empresas muito antes de se porem à disposição de seus públicos interno ou externo. Por menor que seja o porte do negócio, não se entrega a compliance a jejunos do empreendimento. Chega-se ao staff da compliance depois de algum tempo vivendo as vicissitudes do mercado. O mercado exige ética, transparência, eficiência; os sócios e investidores somam a isso o lucro e a garantia dos seus ativos; os empregados querem tudo isso e mais segurança física e emocional nos postos de trabalho, oportunidades de ascensão, reconhecimento, melhores salários e emprego estável.

O mundo empresarial quer apenas paz.

 

[1] João 1:1-3.

[2] GUSMÃO,Mônica. Lições de Direito Empresarial, Ed.Lumen Juris, 10ª edição.

[3] A literatura mais atual sobre o tema indica como características da boa governança (1) a participação (homens e mulheres devem ter igualdade de condições de participação, diretamente ou por meio de seus representantes), (2) o estado de direito ( a boa governança pressupões uma estrutura jurídica justa e extensível a todos, independentemente de origem ou classe social), (3) a transparência (todas as decisões são tomadas a partir de regras claras e previamente estabelecidas) , (4) a responsabilidade (as instituições públicas e privadas existem para atender ao bem-comum, e não a classes privilegiadas, sendo diretamente responsáveis pela quebra desse paradigma), (5) a orientação para o consenso ( a boa governança procura em suas decisões o que de melhor se pode fazer em prol de todos os grupamentos sociais) , (6) a igualdade e a inclusividade (todos os membros de uma sociedade devem ser alvos da mesma preocupação social de modo a se sentirem parte da sociedade e artífices de uma ordem legal justa, eficaz e duradoura) , (7) a eficiência e efetividade ( a boa governança deve ter o compromisso de garantir que os processos e as instituições produzam resultados úteis e desejados por todos, na medida das suas necessidades e na medida dos recursos disponíveis) e (8) o suporte à auditoria(  todas as pessoas potencialmente atingidas por alguma decisão pública ou privada deve ter o direito de fiscalizar a sua discussão e o seu encaminhamento e de interferir, na medida de sua necessidade, e pelos mecanismos democráticos disponíveis e acessíveis, na correção de qualquer desvio axiológico).

[4] v. Código das Melhores Práticas de Governança Corportativa, publicado pelo Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC).

[5] SIMÕES, Paulo César Gonçalves(Advogado especializado e sócio do Veirano Advogados),diz: “não existe ainda uma noção jurídica do termo governança corporativa, que designa, em geral, uma tendência, ainda em plena evolução nos mercados de capitais, de melhorar as relações entre os agentes da poupança pública, que circula nesses mercados, e os detentores do poder nas empresas para onde é canalizada essa poupança”.

[6] A idei da governança corporativa nasceu, por um lado, da necessidade de diagnosticar a tempo certos desvios de gerência que culminaram, em todo o mundo, mas, particularmente nos EUA, em clamorosos escândalos financeiros comandados por altos executivos(ver, entre outros, os escândalos da Tyco, Enron, Worldcom) e que causaram, à custa do sacrifício dos ativos das empresas envolvidas e dos milhões de acionistas e colaboradores diretos, prejuízos vultosos, a proveito próprio. 

[7] GIERKE, Otto von. Direito das Corporações.

[8] Rubens Requião adverte que “(…) quando uma grande empresa privada voltar-se para si mesma, os acionistas ou o público dela se afastarão, perdendo o interesse e pondo em risco sua sobrevivência. (…) em vista da realidade dos interesses em jogo, a administração da Sociedade Anônima moderna deve conjugar estreitamente o interesse social com o interesse privado, de forma a assegurar a prosperidade da sociedade com a satisfação dos interesses razoáveis e naturais de seus acionistas”.

[9] 10 LSA, art.116, parágrafo único.

[10] LSA,art. 154.

[11] Edição nº 819.

 

Monica Gusmao

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