Bem de família e sua (im)penhorabilidade

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Ao longo da história o ser humano, por necessidade e para se proteger defendendo o interesse comum, vive em sociedade, quando a união dos membros dessa sociedade se liga por laços de afinidade ou pelo sangue, se denominam de famílias. Dessa forma, a fim de manter a ordem coletiva e preservar os direitos individuais, criaram-se normas que deverão ser seguidas por todos os membros deste grupo.

O presente trabalho tem por objetivo, dissertar a respeito de uma dessas normas, mais especificamente, a do bem de família, instituto este criado com o intuito de preservar a dignidade do devedor e seu direito a moradia expresso na Constituição Federal do Brasil.

Apesar de o tema ser extenso, pretendemos apresentar alguns conflitos existentes na legislação brasileira referente ao tema. A realização desse trabalho estará sendo pautada em diferentes fontes; além das obras bibliográficas pretende-se buscar informações em dissertações, artigos, jurisprudências, com o objetivo de sintetizar os diferentes conhecimentos e fazer com que os mesmo estejam em consonância com os objetivos propostos.

Para tornar o presente trabalho mais didático estar-se-á dividindo o mesmo em quatro capítulos.

No primeiro capítulo intitulado “família, visão histórica” far-se-á uma explanação a respeito do conceito do termo família, seu significado, quais a mudanças que sofreu desde o direito romano.

No segundo capítulo intitulado “bem de família”, procuraremos demonstrar como esse instituto surgiu no século XIX na República do Texas e como outros países se utilizaram do instituto com algumas semelhanças. Demonstrar-se-á alguns conceitos sobre o instituto bem de família, que reza em nossa legislação.

O terceiro capítulo, será analisado como surgiu no direito romano o instituto da fiança, veremos que seu objetivo é proteger o direito do credor de receber a obrigação do devedor e as semelhanças existentes em relação ao direito romano e a legislação vigente no Brasil.

No quarto capítulo, conforme o visto nos capítulos anteriores, em que se fala sobre a família, qual o objetivo da instituição do bem de família, qual o objetivo do fiador na relação credor e devedor, pretende-se analisar a possibilidade de penhora do bem de família através artigo 3°, VII da lei 8.009/90.

 

1 FAMÍLIA, VISÃO HISTÓRICA

Derivado do latim família, de famei (escravo, doméstico), conforme o dicionário de língua portuguesa Aurélio, “são pessoas unidas por laços de parentesco, pelo sangue ou por aliança, que vivem, em geral, na mesma casa, particularmente o pai, a mãe e os filhos” (Ferreira, 2004, p.123).

No decorrer da história o instituto da família foi o que mais modificou seus conceitos, compreensão e a sua extensão “quem são seus membros”. Aos analisarmos as civilizações antigas, verifica-se que o conceito de família se caracterizava sendo uma entidade ampla e hierarquizada, como se pode ver no Direito Romano em que o indivíduo possuía um estado de família “status familiae” e consistia no terceiro elemento da personalidade jurídica romana. A família era um conjunto de pessoas que eram unidas por uma linha de parentesco exclusivamente masculina o “pater familias”.

Conforme Paulo Cesar Cursino de Moura, na família romana as pessoas ocupavam duas posições, o “sui iuris” ou o “alieni iuris”:

“sui iuris”, era o chefe da família “pater familias”, não dependia de nenhum ascendente masculino, dentro da casa possuía o poder supremo “pater est qui, in domo, dominium est”.

“alieni iuris”, consistia em todos os descendentes do pater familias, os filhos, as filhas, os netos, os bisnetos, as bisnetas, etc, as esposas de seus filhos, filhos adotivos e suas esposas (Moura, 1998, p. 115).

Enquanto que a família romana era regida pelo parentesco agnatício, civilizações mais antigas possuíam a mãe como chefe da família, isso ocorria em razão de que nessas sociedades predominava relações endogâmicas1 e consequentemente os filhos ficavam junto à mãe, que alimentava e criava a criança, entretanto o pai era desconhecido. (Engels apud Venosa, 2009, p. 3.), essa visão antropológica de promiscuidade, entretanto é contestada por Caio Mário da Silva Pereira, este entende ser pouco provável que essa estrutura fosse homogênea em todos os povos (apud Venosa, 2009, p. 03.). Mais tarde, em função das diversas guerras, como os soldados permaneciam muitos anos nas campanhas, estes mantinham relações com mulheres de outras tribos (poligamia).

No decorrer da história a monogamia passou a exercer um papel econômico de produção, e a família se concentrou a imagem do poder paterno. Essa concepção somente se modificou com a Revolução Industrial, quando a família perde a característica de unidade de produção, e passa a ter sua função voltada para o lado espiritual, onde seus membros buscam o auxilio mútuo, desenvolvendo os laços afetivos.

Na família moderna apesar de algumas sociedades manterem a poligamia, a maioria prevalece a monogamia, nos dias de hoje, a família se resume na figura do pai, da mãe e seus filhos, não havendo mais a figura do chefe da família, pois, ambos os pais são responsáveis pela manutenção do lar, conforme nos contempla a lei 10.406/2002 no artigo 1.511, “o casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges” (Saraiva, 2009, p. 265).

Portanto, a família ao longo dos tempos vai adquirindo características importantes e fundamentais dentro do contexto social e da própria legislação pátria.

 

2 BEM DE FAMÍLIA

No Direito Romano a dívida era vinculada à pessoa do devedor, para sanar uma obrigação de pagamento se utilizava todos os meios permitidos, inclusive o próprio corpo do devedor.

Por exemplo, quando um devedor se tornava insolvente era dado ao credor à possibilidade de tornar este seu escravo até que a dívida fosse quitada, ou mesmo vender o devedor como escravo para por fim a obrigação, como se pode verificar no direito romano através da lei das doze tábuas.

Leis das doze tábuas, tábua 3°, fragmentos 4 a 8;

O devedor que não pagasse a dívida, nem apresentasse fiador, ficaria vinculado ao credor, pelo menos, por sessenta dias, na condição de quase escravo “addictus”): Não era homem livre, mas, também, não era escravo. Podia pagar o débito com seu trabalho (Peixoto, p. 276 apud Moura, 1998, p. 38). Não pago, o credor podia vendê-lo como escravo além do Rio Tibre “trans Tiberim” (Peixoto apud Moura, 1998, p. 38).

Com o passar dos séculos essa prática passou a ser proibida, no direito brasileiro a legislação veda a vinculação da dívida à pessoa, permitindo somente a utilização do patrimônio do devedor para extinguir a obrigação contraída com o credor como se pode ver a seguir:

Constituição Federal, art. 5°, LXVII – Não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel. (Saraiva, 2009, p. 10).

Código de Processo Civil. Art. 591. O devedor responde, para o cumprimento de suas obrigações com todos os seus bens presentes e futuros, salvos restrições estabelecidas em lei. (Saraiva, 2009, p. 434).

O legislador a fim de garantir o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1°, III, CF/88), através da emenda constitucional n° 26 de 2000, deu nova redação ao artigo 6° da Constituição Federal2, definindo a moradia como um dos direitos sociais, reforçando assim o texto da lei 8.009/90 que trata sobre a impenhorabilidade do bem de família3.

O instituto, bem de família foi utilizado pela primeira vez na República do Texas4 em 1839, por esta região ser muito áspera e pouco habitada, o governo com o intuito de colonizar a região implantou o Homestead Exception Act5. Com isso o governo almejava fixar o colono a terra garantindo a este sua permanência à sua propriedade, independente de qualquer contratempo que viesse a acontecer, seja por políticas do Estado, seja por problemas financeiros que o colono estivesse enfrentando, e, consequentemente o Estado viesse a se desenvolver economicamente e se agregar aos outros estados americanos, ficando o “homestead exception act” conhecido como o ato que não possuída dívida.

Mais tarde outros países adotaram institutos semelhantes ao instituto “homestead exception act”, entretanto, utilizando outras denominações “Suíça – asilo de família, Portugal – casal de família, Venesuela – del hogar” (Credie, 2004, P. 14), no Brasil o termo utilizado é “bem de família”, e à matéria é contemplada no código civil de 2002, como pode-se ver no artigo 1.711.

“Podem os cônjuges, ou a entidade familiar, mediante escritura pública ou testamento, destinar parte de seu patrimônio para instituir bem de família, desde que não ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição, mantidas as regras sobre a impenhorabilidade do imóvel residencial estabelecida em lei especial.” (Saraiva, 2009, p. 283).

Porém, como em outros países, no Brasil além de se utilizar de nomenclatura diferente, o instituto em questão, em nossa legislação, possui a finalidade difere da instituída na República do Texas. Pois, enquanto que para os texanos o instituto não permitia vincular dívida ao imóvel, evitando assim que o mesmo viesse a ser penhorado, em nosso país, o instituto adotado possuí a finalidade de garantir a moradia ao cidadão, de tal forma que o mesmo não venha a perder seus bens de uso caseiro ou necessário para prover o seu sustento e de seus familiares, seja este objeto móvel ou imóvel6, por motivo de dívida.

Entretanto, a lei 8.009/90 a qual iremos explanar com mais ênfase em momento apropriado, dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família, em seu artigo 3°, incisos I ao VII, e nos mostra que em algumas circunstâncias pode-se vir a penhorar o bem de família.

O bem de família consiste no imóvel, rural ou urbano que se é utilizado para moradia do casal e seus filhos, sendo incluído ainda os móveis e utensílios que guarnecem a moradia necessária para que a família possa viver com o mínimo de comodidade, desde que não ultrapasse um terço do patrimônio líquido das famílias. Porém, aqui se deve observar que, se um determinado objeto for considerado suntuoso, como uma obra de arte, um televisor LCD de 50 polegadas, como um aparelho de ginástica que tenha a única finalidade de condicionamento físico, não poderá ser intitulado como bem de família a fim de se alegar a impenhorabilidade.

Além dos objetos suntuosos, que guarnecem a residência da família, o imóvel familiar, também, poderá perder o título de bem de família se o mesmo vir ser considerado suntuoso ou muito além do que estes necessitam para viverem confortavelmente. Por exemplo, uma família composta pelo casal e dois filhos, possuem uma residência construída em área nobre da cidade em que residem, possuindo 500 metros de área construída, com piscina, em um amplo terreno, esta poderá ser penhorada e vendida com o objetivo de extinguir a obrigação, e substituir por uma casa de menor valor.

Código Civil, art. 1.712. O bem de família consistirá em prédio residencial urbano ou rural, com suas pertenças e acessórios, destinando-se em ambos os casos a domicílio familiar, e poderá abranger valores mobiliários, cuja renda será aplicada na conservação do imóvel e no sustento da família (Saraiva, 2009, p. 283).

Como pode-se ver o código civil de 2002, não se aprofunda ao definir em que consiste o bem de família, deixando esta tarefa para a lei 8.009/90.

Adiante far-se-á a analise das fianças no direito, suas práticas e seus conceitos.

 

3 FIANÇA

No direito romano, como já se viu anteriormente, ao tratar-se do tema bem de família, quando o devedor não efetuava o pagamento de uma obrigação assumida com o credor, este poderia dispor do próprio corpo do devedor como forma de pagamento, podendo vendê-lo como escravo.

Conforme Paulo Cesar Cursino de Moura, “esta prática perdurou até a Lei Poetelia Papíria, (de 326 antes de Cristo) definiu que o patrimônio do devedor passa responder pela dívida” (Moura, 1998, p. 245).

Com a Lei Poetelia Papíria, surgiram os direitos reais de garantia7, divididos em dois tipo : garantia pessoal e garantia real.

A garantia pessoal, no direito romano estava vinculada as obrigações sendo dividida em sponsio (promessa solene), fidepromissio (promessa não solene) e fidejussio, os três termos eram sinônimos de fiança, sua diferença básica era que o primeiro somente se aplicava aos cidadãos romanos, e segundo sua aplicação se dava tanto aos cidadãos romanos quando aos estrangeiros, ambos garantiam somente contratos verbais e obrigações até dois anos, a obrigação se dividia em partes, cada um respondia pela sua parte. O fidejussio era considerado a forma de fiança mais completa, se aplicava os quatro tipos de obrigação (verbais, escritos, reais e consensuais), a obrigação era perpétua, e os fidejussores respondiam solidariamente. No direito romano, o fiador se obrigava a pagar a dívida até o limite do que devia o devedor principal, não podem do pagar mais que este, porém, ao fiador era permitido pagar a menos (Moura, 1998, p. 294). (grifo nosso).

Pertencente aos direitos reais, a garantia real era ramificada em fidúcia, penhor e hipoteca, conforme veremos a seguir:

– fidúcia (confiança, segurança), conforme Gaio (2.60) estava dividida em duas :

a) fidúcia com o amigo (fiducia cum amico), que ocorria quando um amigo ao ir para a guerra ou em uma longa viagem, deixava com um amigo seus bens para que esse guardasse até seu retorno.

b) fidúcia com o credor (fiducia cum creditore), a qual consistia em o devedor para assegurar o pagamento, transferia a posse e direito de propriedade da coisa ao credor, afim de assegurar o pagamento.

– Penhor (pignus datum), a qual consistia em o devedor para assegurar o pagamento, transferia a posse da coisa ao credor, a fim de assegurar o pagamento, entretanto o direito de propriedade permanecia com o devedor.

– Hipoteca (pignus obligatum), para assegurar o pagamento, uma coisa móvel ou imóvel ficava vinculada ao credor, porém, o devedor não perdia nem a posse, nem a propriedade da coisa. (Moura, 1998, p. 393 a 395)

No Brasil, a matéria fiança, é trata no capítulo XVIII, artigos 818 ao 839 do Código Civil de 2002, e como pode-se constatar nos artigos 818, 823 do CC/2002 e artigo 595 do CPC/1973, transcritos abaixo, a essência do direito romano que abordava o assunto, ainda permanece em nossa legislação.

Código Civil – art. 818. Pelo contrato de fiança, uma pessoa garante satisfazer ao credor uma obrigação assumida pelo devedor, caso este não a cumpra.

Art. 823. A fiança pode ser de valor inferior ao da obrigação principal e contraída em condições menos onerosas, e, quando exceder o valor da dívida, ou for mais onerosa que ela, não valerá senão até ao limite da obrigação afiançada (Saraiva, 2009, p. 203).

Código de Processo Civil – Art. 595. O fiador, quando executado, poderá nomear à penhora bens livres e desembargados do devedor. Os bens do fiador ficarão, porém, sujeitos à execução, se os do devedor forem insuficientes à satisfação do direito do credor.

Parágrafo único. O fiador, que pagar a dívida, poderá executar o afiançado nos autos do mesmo processo (Saraiva, 2009, p. 435).

Como pode-se ver tanto no direito romano quando na legislação brasileira a figura do fiador foi e é utilizada para garantir os direitos do credor em relação ao devedor, e quando este vier a não cumprir com a obrigação contraída no prazo estipulado, o credor possa através do fiador receber o que lhe é devido por direito, seja, através do patrimônio do fiador ou por qualquer outra forma de pagamento lícito, permitido pela legislação em vigor.

 

4 (IM)PENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA

Como pode-se ver o Código Civil disposto através da lei 10.406/2002, legislou sobre a matéria do bem de família nos seus artigos 1.711 ao 1.722, entretanto, o código civil não procurou englobar todos as variantes que este tema no apresenta, devido sua extrema complexidade, deixando assim essa árdua tarefa a cargo de leis já estão em vigor e leis que estão por vir à serem legislação sobre o assunto, deixando isso claro no artigo 1.711, o qual nos informa que, dispositivos sobre a impenhorabilidade do bem de família será disposta em lei especial, “… mantidas as regras sobre a impenhorabilidade do imóvel residencial estabelecida em lei especial”(Saraiva, 2009, p. 283).

Por se tratar de um tema muito extenso, iremos nos ater a lei ordinária 8.009/90, que trata sobre a impenhorabilidade do bem de família, mais especificamente ao artigo 3°, inciso VII, inserido a esta lei pelo artigo 82 da lei 8.245/91 que regula a loção de imóveis urbanos, transcritos abaixo;

Lei 8.009/90 – art. 3º – A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:

VII – por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação. (Incluído pela Lei nº 8.245, de 1991) (Saraiva, 2009, p. 283).

Art. 82. O art. 3° da Lei n° 8.009, de 29 de março de 1990, passa a vigorar acrescido do seguinte inciso VII:

“Art. 3°

VII – por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.” (Saraiva, 2009, p. 1512).

Procura-se neste trabalho fazer uma análise quanto à controvérsia que se estabeleceu relativo à constitucionalidade da lei 8.009/90, em relação ao princípio de isonomia assegurado a todos os cidadãos brasileiros através da constituição federal expressos nos artigos 3°, I, e 5°, caput, e ao princípio da dignidade da pessoa humana e direito a moradia do mesmo dispositivo legal, artigos 1°, III, 5°, XXII e 6°, conforme segue :

Princípio da dignidade da Pessoa Humana;

C.F. art. 1º, III – a dignidade da pessoa humana;

C.F. art 5º, XXII – é garantido o direito de propriedade;

C.F. art. 6o São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 26, de 2000) (Saraiva, 2009, pgs. 7,8 e 11).

Os artigos vistos acima, pertencente à carta magna, que nos apresenta os dispositivos criados pelo legislador com o intuito de garantir o princípio da dignidade da pessoa humana, disponibilizando ao cidadão, o direito a propriedade de sua moradia, que consequentemente se estende a seus familiares.

A legitimidade do instituto “bem de família” se utiliza justamente deste princípio, e ao verificar-se o artigo 3°, VII da lei 8.009/90, vemos ai uma das controvérsias desta lei, ao permitir que os bens móveis e imóveis do fiador possam vir a ser penhorados por dívida contraída pelo devedor, ou seja, se a carta magna garante ao cidadão o direito a propriedade e a moradia, visando sua dignidade, uma legislação infraconstitucional não poderia legislar ao contrário, afim de demonstramos a controvérsia desta lei, segue abaixo um acordão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

LOCAÇÃO. AÇÃO DE COBRANÇA. PENHORA. BENS DO FIADOR. IMPENHORABILIDADE DOS BENS MOVÉIS INDISPENSÁVEIS À SOBREVIVÊNCIA DA PESSOA HUMANA. Na hipótese vertente, devem os bens móveis do fiador, tais como, fogão, refrigerador, objetos de cozinha, camas com guarda-roupa, sala de jantar, sofá e poltronas, serem afastados da abrangência do artigo 2º, da Lei nº 8.009/90, porquanto não se tratarem de adornos suntuosos, mas de objetos úteis e indispensáveis à sobrevivência e dignidade da pessoa humana. Aplicação do prudente arbítrio do juiz. Agravo desprovido. (TJRS – Agravo de instrumento, Nº 70002547586, 15° Câmara Civil – Presidente e Relator Des. Ricardo Raupp Ruschel. Julgado em 20/06/2001).

Como pode-se constatar, é de entendimento do relator do acórdão, transcrito acima, que os bens móveis do fiador são necessários para preservar a sua dignidade da pessoa humana, portanto, são impenhoráveis em ação de cobrança previstas no artigo 3°, VII da lei 8.009, entretanto, este nobre desembargador esquece que se permitir a penhora do único imóvel do fiador, e este venha a perdê-lo, como assim determina a lei ora em questão, sua decisão não foi suficiente para garantir o princípio constitucional.

E, por último iremos demonstrar a questão referente ao princípio da isonomia, outra discussão que aflige o mundo jurídico ao se depararem com o tema explanado no presente trabalho, os legisladores através a carta magna, procuraram assegurar que todos os cidadãos da república possuíssem os direitos iguais perante a lei e que esta fosse justa.

Princípio da Isonomia:

C.F. art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

C.F. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (Saraiva, 2009, p. 7).

Conforme Czajkowski, o artigo 3°, VII da lei 8.009 se caracteriza o mais inadequado dentre todos os incisos presentes neste artigo, principalmente, no tocante a equidade entre o fiador e o devedor.

De todas as exceções do art. 3°, a redação do artigo 3°, inciso VII, parece ser o redigido de forma mais inadequada, por colocar o fiador em situação de inferioridade frente ao próprio afiançado. A lei 8.009/90 garante a impenhorabilidade até dos móveis quitados que guarnecem a residência alugada ao locatário e que sejam de sua propriedade (artigo 2°, parágrafo único), mas não protege o imóvel residencial do fiador e sua família e, portanto, também móveis que guarnecem esta moradia. (Czajkowski, 2001, p. 182).

O princípio da equidade já era visto no direito romano, como foi explanado anteriormente, “o fiador se obrigava a pagar a dívida até o limite do que devia o devedor principal, não podem do pagar mais que este, porém, ao fiador era permitido pagar a menos” (Moura, 1998, p. 294).

Já, o artigo 3°, VII da lei 8.009, entende-se que o fiador pode ser obrigado a pagar mais que o devedor se comprometeu, tornando o problema ainda maior quando se analisa o direito de regresso por parte do fiador em relação a poder acionar o locatário a fim de penhorar o imóvel que possa vir a possuir.

Para ilustrar o problema, suponha-se que um funcionário de uma empresa é transferido para uma filial da mesma, localizada em Cidade diferente a que possui um imóvel, nesta nova localidade necessita locar uma casa para viver com sua família, e solicita que um amigo seja seu fiador. Se por qualquer motivo venha a não cumprir com obrigação assumida com o locador de efetuar o pagamento do aluguel do imóvel, este se valendo da lei 8.009/90, possui o direito de penhorar o imóvel do amigo que serviu como fiador, entretanto, somente poderá vir a penhorar até limite dos móveis do locatário, isto, se estes estiverem quitados.

Ao contestarmos a inconstitucionalidade de alguns artigos da lei 8.009/90, não pretende-se com isso diminuir ou eliminar o direito do credor em perseguir sua legitimidade em receber o que lhe é devido, entretanto, para que isso ocorra deve-se preservar em primeiro lugar o ordenamento da constituição e seus princípios implícitos ou explícitos.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através do presente trabalho se procurou expor os fundamentos da família, bem como o princípio do bem de família, notamos que o conceito de família se modifica constantemente durante a evolução do ser humano, no inicio esta se relacionava sexualmente e emocionalmente com todos os membros da sociedade a qual pertencia “relações endogâmicas”, e assim, evoluindo até os dias atuais onde predomina a relação monogâmica. Porém, sempre se procurou preservar os direitos individuais do grupo familiar.

Quanto ao princípio do bem de família, nascido na República do Texas, e mais tarde utilizado em nosso ordenamento jurídico, procurou-se mostrar que seu principal intuito era o de preservar a dignidade da pessoa humana, e garantir o mínimo de conforto para o devedor e seus familiares.

Vimos que uma determinada lei é produzida objetivando o bem estar dos membros de uma determinada sociedade, entretanto, esta infelizmente as vezes entra em conflito com leis superiores e seus princípios, necessitando assim ampla reflexão do juristas dessa sociedade sobre o assunto, afim de procurar reformular a norma de tal maneira que atenda os interesses da maioria dos membros da sociedade em questão.

 

Hermes Garcia de Araújo

 

 

REFERÊNCIAS

CREDIE, Ricardo Arcoverde. Bem de Família, 2° ed., São Paulo : Editora Saraiva, 2004.

CZAJKOWSKI, Rainer. A impenhorabilidade do Bem de Família, 4° ed., Curitiba : Editora Juruá, 2001.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Aurélio Século XXI, O Dicionário da Língua Portuguesa, 3ª ed., Curitiba : Editora Positivo, 2004.

MOURA, Paulo Cesar Cursino de. Manual de direito romano: (instituições de direito privado), 1ª ed., Rio de Janeiro : Editora, 1998.

SARAIVA com a colaboração de CÉSPEDES, Lívia, PINTO, Antônio Luiz de Toledo Pinto, WINDF, Márcia Cristina Vaz dos Santos. Vade Mecum / obras coletiva, 7ª, São Paulo : Saraiva, 2009.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: direito de família, 9ª ed., São Paulo, Editora Atlas, 2009.

1Casamento entre indivíduos do mesmo grupo, seja este definido com base em parentesco, residência, território, classe, casta, etnia, língua, etc.

2C.F. art. 6o – São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

3Lei 8.009/90, Art. 1º – O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.

Parágrafo único. A impenhorabilidade compreende o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados. (Saraiva, 2009, p. 1.415).

4Nesta época o Texas ainda era uma República por ainda não ter se anexado aos Estados Unidos da América.

5A tradução literal de “homestead exception act” é “Ação excepcional que doa um pedaço de terra reivindicado por um colono”, entretanto, o instituto consistia em isenção de penhora sobre pequenos imóveis urbanos ou rurais. (CREDIE, 2004, p. 14).

6 Como pode-se ver nos acórdãos abaixo o bem de família pode ser móvel ou imóvel:

– EXECUÇÃO. ALEGAÇÃO DE IMPENHORABILIDADE. BEM DE FAMÍLIA. LEI 8.009/90. Imóvel que serve de moradia ao agravante. Prova de endereço residencial. Prédio de esquina, com entrada por ambas as ruas. Impenhorabilidade reconhecida. Deram provimento. Voto vencido. (TJRS – Agravo de instrumento, Nº 70024359168, 19° Câmara Civil – Presidente e Relator DES. JOSÉ FRANCISCO PELLEGRINI, Julgado em 18/12/2008).

DIREITO PRIVADO NÃO-ESPECIFICADO. AÇÃO MONITÓRIA. PENHORA DE BENS QUE GUARNE-CEM A RESIDÊNCIA DO EXECUTADO. IMPOSSIBILIDADE, NAS CIRCUNSTÂNCIAS.

1. Consoante a jurisprudência do STJ, cuja função constitucional precípua é a uniformização da interpretação da legislação infraconstitucional (Constituição da República, art. 105, inc. III), a impenhorabilidade do bem de família de que trata a Lei n. 8.009/1990 abrange os móveis que guarnecem a residência do executado, à exceção dos veículos de transporte, obras de arte e adornos suntuosos.

2. Hipótese que não se revela possível a penhora do televisor, do aparelho de som, do aparelho de DVD, da máquina de lavar roupas e da máquina de secar roupas que guarnecem a residência do executado, pois tais bens restam albergados pela proteção conferida pela Lei n. 8.009/1990 ao bem de família.

3. Desprovimento do recurso. (TJRS – Agravo de instrumento, Nº 70027241066, 16° Câmara Civil – Presidente e Relator Des. Marco Aurélio dos Santos Caminha, Julgado em 18/12/2001).

7Direito que o credor possui de requestar no patrimônio do devedor objeto dando em garantia, quando este não cumprir com a obrigação no prazo estipulado.

Hermes Garcia de Araujo

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