Atos de selvageria: vivemos o tempo da barbárie?

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A cidadania expressa um conjunto de direitos que dá à pessoa a possibilidade de participar ativamente da vida e do governo de seu povo. Quem não tem cidadania está marginalizado ou excluído da vida social e da tomada de decisões, ficando numa posição de inferioridade dentro do grupo social. [1]”lise ddos concretos, ade urbana
 
 
A violência, nas suas mais diferentes expressões, apresenta-se como realidade candente e viva no meio atual. A primeira vista, nota-se que se tornou hábito, parte do cotidiano e, portanto, repetitiva. Embora banalizada e naturalizada, a violência vem alimentando a cultura do medo, levando as pessoas, sutilmente, a tecerem novas formas de relações sociais e novos padrões éticos.
Será, portanto, que vivemos o tempo da barbárie? Hobsbawm, em seu artigo “Barbárie: o guia do usuário” [2], aponta como as pessoas se acostumaram a viver de forma incivilizada, a tolerar o intolerável e o desumano. Quando uma sociedade trata a violência como corriqueira, o risco que há é de banalização do cotidiano, atingindo a barbárie. Com olhar atento é possível vislumbrar na realidade brasileira o presságio dessa conjuntura, pois a violência insurge como algo típico do cotidiano social, refletida nos homicídios, chacinas, ocupações violentas de terra, tráfico de pessoas, violência policial, extorsão, assaltos e também por intermédio de uma agressão que não ganha visibilidade pelos sinais fisicamente vistos em suas vítimas, mas que se expressa no conjunto das relações sociais e na vida cotidiana: desemprego, filas de espera, baixos salários, carência qualitativa nos serviços prestados à coletividade, desrespeito, perda de dignidade e, sobretudo, ausência de cidadania, resultando na decomposição e diminuição das expectativas de um futuro probo dos membros que compõem a Polis.
Como dados concretos, a Organização Mundial de Saúde divulgou em 2002 o Informe Mundial sobre Violência e Saúde, sendo o primeiro informe geral que aborda a violência como um problema de saúde pública a nível mundial. De acordo com o Informe, por ano, 1.6 milhão de pessoas perdem a vida de forma violenta e outros milhões quedam com seqüelas e incapacidades físicas, reprodutivas, como também mentais. Assim, a violência passa a ser protagonista dos principais problemas de saúde pública da contemporaneidade, revestindo-se a cidadania de essencialidade para se desfazer os rastros esculpidos pela marginalização.
A análise da expressão cidadania, consagrada no vigente ordenamento jurídico como fundamento da República Federativa do Brasil, qualifica e valoriza os participantes da vida do Estado, reconhecendo a pessoa humana como ser integrado na sociedade em que vive. Assim, subentende-se o quão fundamental se faz a manutenção da cidadania a fim de se alcançar uma sociedade unificada, onde todos participam ativamente de suas decisões, firmam consensos e articulam idéias. Cidadania é elemento agregador de povos que objetiva e idealiza, precipuamente, a integração de seus membros em busca de um ideário superior à satisfação individual, cuja finalidade, consoante Aristóteles, é a busca por um bem comum, por um bem que resultará em uma melhoria à Polis.
Em um contexto que prepondera cenários de obscuridão e insegurança institucional não é difícil entender que somente tendo consciência acerca dos princípios e dos direitos decorrentes dessa noção de cidadania o indivíduo deixará de ser vítima das injustiças sociais, visto que a dignidade do indivíduo só existe quando ele é livre, a dignidade na sociedade só prevalece se todos forem iguais em direitos e obrigações e a dignidade da humanidade associa-se à paz, fruto do sentimento solidário da fraternidade. São nesses ideais democráticos que reside a idéia de cidadania.
Contudo, sem consciência destes ideários o povo não possui meios de compreender, enquanto membros de um grupo social, a relevância de se consolidar princípios advindos da cidadania. Ignorantes da própria essência, submetem-se às ingerências alheias sem o esboço de qualquer reação. Sem conhecerem os instrumentos básicos de acesso aos poderes que em seu nome foram constituídos, o povo perde, a cada geração, o controle sobre o seu próprio poder. As elites históricas de um país alicerçado em discursos populistas e nas várias derivações do sistema “coronelista” tentam impedir que este povo oprimido e marginalizado tenha acesso às formas mais básicas do conhecimento, sucateando a educação e promovendo políticas que, longe de cumprir os objetivos constitucionais do Estado brasileiro, aumentam as disparidades e marginalizam ainda mais os menos favorecidos.
Como conseqüência eis que há uma guerra não declarada entre um grupo sem rosto, representando uma elite sem pátria, e as pessoas comuns, desamparadas, empobrecidas, condenadas à escuridão da ignorância e à marginalização. Há, nos dizeres de Marx, uma guerra de classes onde apenas uma parcela do grupo social detém a supremacia, imperando suas pretensões e proliferando a exclusão social. Não é o certo a prevalência da Teoria Darwinista na qual a sociedade seleciona os agentes mais bem preparados para permanecerem naquele meio em detrimento do próximo, não devendo, pois, a competição ser algo inerente à manutenção do sistema que rege o corpo social. Neste diapasão, solucionar as desigualdades sociais e as formas de exclusão se faz necessário, pois se de um lado, por si só, não explicam a violência, por outro, criam o ambiente propício para sua expansão.
Em um meio onde as diferenças entre classes cada vez mais se afirmam, em que o acesso a direitos mínimos e básicos é obstaculizado e os direitos sociais igualmente negados, em que impera a impunidade e o desrespeito à legalidade constituída, sem dúvida, há que se pensar nas várias dimensões que fazem emergir e reforçar as diversas facetas da violência.
A reintegração dos indivíduos marginalizados na sociedade com um mínimo de condições de exercício da cidadania, depende de restituir-lhes a dignidade, fazê-los readquirir o respeito próprio, a autoconfiança e resgatar a noção de tolerância. Para além, a violência avança como um câncer social que contamina por metástase todo o sistema, jovens de todas as classes sociais são arrebatados ao vício e, não raro, lançados na vida criminosa, atacando o seu próprio meio e, desprovidos dos valores familiares, sociais e religiosos que compõem nossa identidade cultural, são capazes de matar até mesmo seus entes familiares, sucumbindo a mais rasa torpeza de caráter.
Logo, a exclusão social geradora da marginalização, como conseqüência da ausência de cidadania, promove exatamente a descaracterização da sociedade, devendo-se associar ao conceito de cidadania a idéia de reforço dos alicerces democráticos. Este se faz indispensável para o alcance de um estado de paz social, porquanto reflete a integração de povos e distancia a violência urbana, as guerrilhas existentes nos subúrbios das grandes metrópoles, a ascendência do crime organizado,afastaas constantes ameaças que assolam as liberdades públicas e dificultam o resgate de certos valores como a dignidade humana, mutilada em sua essência e escravizada em seu idealismo.
Antes de ser uma forma de governo, democracia é um conjunto de princípios e práticas que institucionalizam a liberdade. Prover-lhe amparo é “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, assegurar a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social.”[3]
Uma democracia consolidada conduz eficazmente à oportunidade de organização e participação na vida política, econômica e cultural da coletividade. Induz à integração social que é pressuposto lógico da cidadania como força propulsora contra os nítidos contornos do apartheid social e, conseqüentemente, contra a violência motivadora da criminalidade, do medo, da desconfiança e da instabilidade em detrimento da comunidade. Assim sendo, imprescindível é restaurar os ideários outrora clamados quando da Revolução Francesa, ideários estes de liberdade, igualdade e fraternidade.
Fortalecer o conceito de cidadania é convocar a sociedade organizada e os Poderes Públicos a contribuírem efetivamente para a construção de um novo paradigma. A cooperação entre os setores público e privado deve ser definitivamente instituída, não como fórmula de “diminuir o Estado” (como proposto pela política neoliberal), mas, ao contrário, como meio de fazê-lo eficiente, agindo em perfeita harmonia para proporcionar à Nação uma real e democrática distribuição dos bens e serviços sociais.
O que se perdeu no Brasil foi a formação ética de cidadãos responsáveis, ciosos de seus direitos e deveres para com o próximo e para com a sociedade como um todo, perderam-se as noções básicas de civilidade e de patriotismo. Cabe aos setores mais conscientes da comunidade iniciar um processo de compartilhamento do saber, promovendo ações sociais verdadeiras e bem direcionadas no sentido de gerar a inclusão educacional dos excluídos e marginalizados, vez que a ignorância é a maior expressão do ímpeto de violência e o instrumento covarde e cruel de dominação das elites.
O reconhecimento da tolerância configura-se igualmente como mais um instrumento da cidadania em desfavor da violência, pois traduz “o respeito, a aceitação, o apreço da riqueza e da diversidade de culturas do nosso mundo, de nossos modos de expressão e de nossa maneira de exprimir nossa qualidade de seres humanos (…). Não só é um dever de ordem ética, mas uma necessidade política e jurídica, uma virtude que torna a paz possível e contribui para substituir uma cultura de guerra por uma cultura de paz” [4]
Ao mesmo tempo, há que se evocar a solidariedade, que ao ser elemento constitutivo do conceito de cidadania, quer por meio do protagonismo voluntário presente nos projetos sociais, quer por intermédio do espírito altruísta impulsionador de conquistas a novos valores, apresenta-se como método e norte na intermediação dos conflitos, redemocratizando e libertando o grupo social das formas hierarquizadoras e excludentes do pensamento identitário, promovendo, ao mesmo tempo, o pleno exercício da voz ativa perante o corpo social.
Por fim, o conceito de cidadania é também intensificado pelo conhecimento dos direitos e garantias individuais, já que conferem legitimidade a seus titulares de reclamarem pela salvaguarda dos demais direitos que deles decorrem. Assim, justamente com o escopo de reafirmar e reconsolidar os fundamentos da cidadania, o Brasil ratificou em 1992 o Pacto de San José da Costa Rica, reiterando que, de acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, só pode ser realizado o ideal do ser humano livre, isento do temor e da violência, se forem criadas condições que permitam a todos o pleno gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais, bem como dos direitos civis e políticos.
Esse feito nitidamente engrandece a concretização da cidadania, vez que viabiliza sua preponderância sob a violência ao invocar e tutelar os direitos naturais como sustentáculos das relações não exclusivamente entre o Poder Público e seus cidadãos, mas dotados de vida e intensidade nas alianças firmadas entre particulares; nelas enfatizando, sobretudo, a proteção à vida, à integridade pessoal – incorporando nesse conceito a integridade física, psíquica e moral -, a vedação ao constrangimento da honra e da dignidade, amparando o direito à liberdade pessoal e à segurança.
Estas, portanto, são as idéias que devem nortear todas as políticas de um Brasil moderno, no qual a cidadania seja cada vez mais uma realidade sólida, alcançável, ao mesmo tempo que um vigoroso meio de oposição às incertezas desafiadoras ocasionadas pela violência. A cidadania deve ser vista como infantaria contra as ferocidades sociais, sendo a um só tempo projeto e aspiração, uma utopia que se amplia à medida que vira realidade, torna-se um processo e uma visão de mundo, mas não obra do acaso, vez que supõe a criação e o fortalecimento de um sujeito político coletivo que engloba homens e mulheres em seu papel de construtores em prol de uma sociedade proba, livre das brutalidades que tanto se distanciam dos valores e dogmas humanísticos que necessariamente devem ser observados.
 
Alceu José Cicco Filho[5]
 


[1] DALLARI, Direitos Humanos e Cidadania. São Paulo: Moderna, 1998. p.14
[2] HOBSBAWN, Eric. “Barbárie: o guia do usuário”. In: SADER, Emir. O mundo depois da queda. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
 
[3] CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. Preâmbulo.
[4] DECLARAÇÃO DE PRINCÍPIOS SOBRE A TOLERÂNCIA, 1995, UNESCO, ART. 1
[5] Graduando do 9º semestre do UniCeub; Pesquisador Bolsista do CNPq

Alceu Jose Cicco Filho

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