A teoria da linguagem de agamben aplicada à análise do discurso justificador do estado de exceção

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Resumo
A construção da estrutura do poder obedece à ordem do discurso dominante, instrumentalizado pela institucionalização das técnicas de domínio e de apropriação do ser-linguagem na configuração da normatividade sobre o mundo social. Estudar a estrutura do poder é perceber as formas de institucionalização da linguagem pelo poder, isto em Giorgio Agamben assume as funções de análise da técnica do ‘Estado de Exceção’ e da construção da soberania enquanto ideologia político-jurídica. Agamben caracteriza a estrutura lingüística norteadora da função-poder do Estado Moderno e suas técnicas de manipulação do sujeito moderno submisso às construções de linguagem dominantes que em nível ideológico garantem legitimação à ordem constituída. 
 
Abstract
The construction of the structure of the power obeys the order of the dominant speech, lead up to for the institutionalization of the techniques of domain and appropriation of the be-language in the configuration of the law on the social world. To study the structure of the power is to perceive the forms of institutionalization of the language of the power, this in Giorgio Agamben assumes the functions of analysis of the technique of the ‘State of Exception’ and the construction of the sovereignty while politician-legal ideology. Agamben characterizes the linguistic structure of the function-power of the Modern State and its techniques of manipulation of the modern citizen submissive to the dominant constructions of language that in ideological level guarantee legitimation to the constituted order.
 
Palavras-chave: ‘Estado de Exceção’, soberania, linguagem, poder
Keywords: ‘State of Exception’, sovereignty, language, power
 
 
1.      A teoria da linguagem em agamben
 
Agamben (2006, p.120) desenvolve uma teoria da linguagem como crítica ao realismo e ao universalismo em sua pretensão de expressar conceitos universais com significados essenciais ou correspondentes a estruturas reais.
 
Agamben (2006, p.126) critica igualmente a teoria metafísica em sua construção de um Ser como produto positivo da linguagem, como local de posicionamento ontológico e enquanto realidade transcendente. Afigurando uma retomada da tradição gnóstica da Sige (o silêncio fundamental que paira sobre o abismo do Nada), Agamben (2006, p.87) reclama pela discussão do lócus do nada na tradição filosófica, incitando a reconstrução da relação original homem-voz como indicação do ter-lugar-no-mundo.
 
A filosofia, dessa maneira, é a exigência da discussão desse ter-lugar original como percepção e tentativa de superação da nadidade (AGAMBEN, 2006, p.130). Ocorre que a tradição metafísica racionalista transformou a nadidade em algo ontológico através da abstração conceitual absoluta e do poder performativo do discurso (Austin), que fundou a verdade na pretensão de expressar o Absoluto.
 
 A defesa deste Absoluto (estrutura metafísica de pensamento, como abstrações lingüísticas de justificação do direito e da teologia, por exemplo) no plano social implica a história da violência do homem contra o homem como uma violência não natural, como é natural a violência da natureza contra o homem quando morre, expressão da indicação do ser-aí como retorno à nadidade (AGAMBEN, 2006, p.130).
 
Estudar a linguagem metafísica enquanto concepção de domínio implica entender o sacrifício como a representação da violência não-natural humana como modificação da destinação para a morte como destinação para a morte provocada socialmente, daí porque Agamben (2006, p.142) identifica no instituto jurídico do homo sacer (homem sagrado, traduzindo literalmente) como uma das fontes da expressão de poder originário Estado em utilizar a linguagem como chancela do seu domínio sobre a vida humana.
 
 Ao proclamar alguém como sacer, isto é, alguém tocado pelos Deuses por ser sacrílego, podendo ser morto por qualquer pessoa e de maneira não convencional, portanto, ilegal, o Estado de Exceção moderno estaria pré-figurado no instituto do sacer do antigo Estado romano (AGAMBEN, 2007, p.79).
 
2.      O discurso e o poder
 
Se a ordem do poder se constitui enquanto ordem de domínio de discursos de legitimação do status quo, favorecendo a colonização do Estado pelo poder econômico e social, pode-se perceber que o principal instrumental utilizado pelo poder é a linguagem política e jurídica, a qual se presta a refletir conceitos, valores e ideologias, enfim, discursos que são institucionalizados por elites interessadas em perpetuar uma situação de normatividade estatal que atenda a determinados interesses de classe ou de elites econômicas dominantes.
 
O discurso político-jurídico neoliberal no Brasil, por exemplo, foi implementado em nível estatal mediante a criação das agências reguladoras, a chamada “desburocratização” e privatização de empresas como a Vale do Rio Doce, enfim, os instrumentos jurídicos que o Estado constrói refletem a hegemonia do discurso economicista que sobrepuja a busca de um bem comum dialogado democraticamente e criticado num espaço público de processualização das decisões jurídico-políticas, perdendo transparência, controle social e fugindo ao interesse público para favorecer interesses do mercado.
 
A nota específica que se observa nesse discurso hegemônico do Estado burguês na atualidade é o mesmo propagar discursivamente, seja pelas metodologias de interpretação da lei e de consecução de políticas públicas, seja pela atividade governativa direta (atos de gestão), que ele pode e deve, segundo a busca do bem comum, realizar atos de governo céleres e eficazes que superem, caso necessário, a legalidade e a constitucionalidade enquanto marcos que deveriam nortear sua atuação e não ser meramente ‘ultrapassados’.
 
Para isso, desde Schmitt (AGAMBEN, 2004, p.87) retoma-se o conceito de poder soberano como ao mesmo tempo paradoxalmente acima e fora da lei, e o conceito de decisão como meio de ação política eficaz e imediata, que eventualmente descarta os ditames legais (AGAMBEN, 2004, p.127).
O Estado alega agir por exceção à lei e a Constituição exatamente para promover o bem público, quando em verdade deveria concretizar as mesmas e limitar-se por elas na construção democrática desse bem comum.
 
O “Estado de Exceção” contemporâneo, que começa com o direito nazista de superar a lei e os direitos humanos em prol do “bem comum do povo”, existe exatamente como paradigma que foi encampado pelos Estados na atualidade que, na verdade diante da crise de legitimidade na pós-modernidade por não conseguirem ser a esfera pública da sociedade multicultural, agem sob a manta do discurso ideológico de proteção do bem comum para conseguirem deturpar as limitações impostas pela concepção de ‘Estado de Direito’ e pela busca de um bem comum em sentido real.
 
Assim, esse poder excepcional do Estado assume áurea sacral ao longo da história, desde a figuração por ele descoberta do instituto do homo sacer romano, até a atualidade e sua descoberta de valores absolutos dos quais o Estado seria o guardião, ou da lógica amigo-inimigo de atuação no campo político (Schmitt), que garantiria ao Estado o poder de superar a lei caso necessário para derrotar o ‘inimigo’. Tal doutrina justificou Hitler: afinal os judeus eram apenas os sacrílegos fora da lei e contra eles podia-se utilizar o extermínio sem qualquer “consciência moral” e qualquer proteção e devido processo legal. Daí a barbárie parecer tão natural, tão aceitável e até justa para o Estado de Exceção nazista.
 
Na atualidade, o governo Bush ao declarar a supressão de direitos civis em prol do combate ao terrorismo, ao manter ativas a prisões de Abugrai e Guantánamo para punir terroristas, derroga toda a legislação internacional e mesmo a Constituição de seu país sob a alegativa de proteção da segurança. O ‘Estado de Exceção’ se renova sob o velho paradigma do sacer romano: os sacrílegos continuam a ser mortos fora da lei, quem os mata está impune.
 
O conceito agambeniano de ‘profanação’ poder ser entendido no sentido de desbastar e criticar as nuances perniciosas para a democracia e a liberdade cultural desse Estado de Exceção sacralizado e anti-legal (AGAMBEN, 2004, p.98). O que constitui a sacralização do direito que merece ser profanada ?
 
Se tomarmos Bourdieu como paradigma podemos dizer que é o poder simbólico de criação e interpretação exclusiva pelos juristas das estruturas de normatividade. Assere Bourdieu (2005, p.236-245) que um nominalismo realista, que projeta categorias na realidade como dogmáticas, perfazendo a obediência à norma e à decisão judicial produzida a partir de um ponto de vista de concessão de um poder simbólico ao juiz e aos jurisperitos. Existe uma deferência quase religiosa, e decididamente dogmática sobre a pessoa do decisor que:
 
[…] permite explicar o efeito mágico da nomeação, acto de força simbólico que só é bem sucedido porque está bem fundado na realidade. A eficácia de todos os actos da magia social cuja forma canónica está representada pela sanção jurídica só pode operar na medida em que a força propriamente simbólica de legitimação ou, melhor, de naturalização (o natural é o que não põe a questão da sua legitimidade) recobre e aumenta a força histórica imanente que a sua autoridade e a sua autorização reforçam ou libertam. (BOURDIEU, 2005, p. 239).
 
3. Metodologia crítica 
 
     Agamben (2007, p.65) objetiva analisar a estrutura do sistema capitalista com o instrumental de profanar, isto é, de criar algo de novo, enquanto genius cultural.
 
Assim, observa-se que Agamben, enquanto continuador de Foucault, mostra que a construção da estrutura do poder obedece à ordem do discurso dominante, instrumentalizado pela institucionalização das técnicas de domínio e de apropriação do ser-linguagem na configuração da normatividade sobre o mundo social.
 
Estudar a estrutura do poder é perceber as formas de institucionalização da linguagem do poder, isto em Giorgio Agamben (2004, p.63) assume as funções de análise da técnica do estado de exceção e da construção da soberania enquanto ideologia político-jurídica que supera, paradoxalmente, o próprio Estado de Direito burguês.
 
O caracteriza a estrutura lingüística norteadora da função-poder do Estado Moderno são suas técnicas de manipulação do sujeito, submisso às construções de linguagem dominantes que em nível ideológico garantem legitimação à ordem constituída pela adesão psicológica, e em nível jurídico o uso ou a possibilidade de uso da força submete o corpo do sujeito (o cidadão, na abstração conceitual constitucional). 
 
Agamben (2007a, p.70) apregoa, por isso, profanações à ‘nova religião’, o capitalismo globalizado, profanar significa utilizar-se não apenas do gênio de criação de uma ação política diferenciada, que faça a crítica ideológica da linguagem do poder, possibilitando formas efetivas de transformação social, em vistas a controlar o ‘Estado de Exceção’ e o mercado ensandecido.
     
Num sentido histórico, profanar na antigüidade era vociferar contra os Deuses e seu status quo; na pós-modernidade é assumir o discurso crítico ante à “religião” econômico-cultural dominante, perfazendo a crítica da uniformidade e desbastando a intromissão do ‘impessoal’ racionalismo abstrativista e técnico do Estado sobre a subjetividade, fazendo a linguagem ser dessacralizada, retornando ao seu uso comum de busca do sentido do ser-aí existencial através do questionar mediante a voz (AGAMBEN, 2007a, p.65).
 
O método de Agamben pode ser considerado um momento crítico-negativo do discurso jurídico na democracia liberal, versando sobre a estrutura de produção de discursos e as relações de poder que a informam.
 
O que Agamben (2004, p. 98) coloca como o além-do-direito, inspirado em Kafka, é importantíssimo para se ter a noção do além-do-método, já exigida por Bourdieu (2005, p.244) : ir além da forma metodológica e romper com o cumprimento dos procedimentos é a superação do utilitarismo jurídico, do uso do direito a fins egoístas e interesseiros, rompendo com as barreiras do individualismo jurídico e da “jurisprudência dos interesses” que serviu de base metódica à teoria pura de Kelsen e ao positivismo novecentista. Asserta Agamben :
 
[…] O que se encontra depois do direito não é um valor de uso mais próprio e original e que precederia o direito, mas um novo uso, que só nasce depois dele. Também o uso, que se contaminou com o direito, deve ser libertado de seu próprio valor. Essa libertação é a tarefa do estudo, ou do jogo. E esse jogo estudioso é a passagem que permite ter acesso àquela justiça que um fragmento póstumo de Benjamin define como um estado do mundo em que este aparece como um bem absolutamente não passível de ser apropriado ou submetido à ordem jurídica (Benjamin, 1992, p.41). (AGAMBEN, 2004, p.98) 
 
Uma meta-metodologia que implique a reconstrução da norma de um ponto de vista provocativo das estruturas conservadoras, desconstrutor de instituições de dominação e profanador do ethos saturado do mecanicismo e utilitarismo jurídicos do sistema capitalista. Afinal, a questão da interpretação do direito resume principalmente em qual paradigma metodológico se vai orientar a interpretação, como alerta Larenz (1997, p.520).
 
4.      Conclusão
 
Dessa forma, a ultrapassagem do Estado de Exceção remete a uma tomada de posição ‘genial’ (no sentido agambeniano) sobre o direito: além da forma, além dos procedimentos, agir com uma coragem estética de provocar e profanar as estruturas, mostrando a relatividade e limitação dos métodos, estatuindo a crítica das ‘instâncias estruturadas’ de produção do discurso jurídico (BOURDIEU, 2005, p.244). Proclama Agamben com confiança no futuro:
 
Um dia, a humanidade brincará com o direito, como as crianças brincam com os objetos fora de uso, não para devolvê-los a seu uso canônico e, sim, para libertá-los definitivamente dele. (AGAMBEN, 2004, p. 98).
 
 
Newton De Oliveira Lima[1]
 
 
 
Referências
 
AGAMBEN, G. 2006. A linguagem e a morte – um seminário sobre o lugar da negatividade. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte, Ufmg, 165 p.
____. 2004. Estado de Exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. São Paulo, Boitempo, 142 p.  
____. 2007. Homo Sacer – o poder soberano e a vida nua. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte, Ufmg, 202 p.
____. Profanações. 2007a. Tradução de Selvino Assmann. São Paulo, Boitempo, 95 p.
BOURDIEU, P.2005. O Poder Simbólico. 8. ed. Tradução de Fernando Tomaz. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 311 p.
LARENZ, K. 1997. Metodologia da Ciência do Direito. 3. ed. Tradução de José Lamego. Lisboa, Calouste-Gulbenkian, 722 p.
 


[1] Professor de Hermenêutica Jurídica e de Sociologia do Direito da UFRN. Bolsista da CAPES. Mestrando em Direito Constitucional da UFRN.

Newton de Oliveira Lima

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