A judicialização do direito à saúde

Redazione 06/07/12
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RODRIGO DOS SANTOS RIBEIRO

Acadêmico da Faculdade de Direito “Prof. Jacy de Assis”, Universidade Federal de Uberlândia. Bolsista de Iniciação Científica – FAPEMIG 2010-2013. E-mail: rodrigosanri@gmail.com.

RESUMO

O presente artigo aborda a questão da judicialização do direito à saúde. A Constituição de 1988 assegurou à população este direito fundamental social, entretanto, as diversas ações governamentais não estão cumprindo o desiderato insculpido no art.196 da Carta Política de proporcionar um acesso igualitário e integral. Desse modo, dado o caráter normativo das normas constitucionais, tem-se que o Poder Judiciário está sendo acionado a fim de que estas disposições deixem de ser letra morta e tornem-se efetivas garantias. A Administração não pode furtar-se aos seus deveres. Entretanto, cumpre esclarecer quais os limites da intervenção judicial. Desse modo, alguns princípios serão estudados, dentre eles: a força normativa da constituição, a reserva do possível e a efetividade.

Palavras-chave: judicialização; direito à saúde; direitos fundamentais.

 

  1. INTRODUÇÃO

A saúde adquiriu no contexto histórico brasileiro diversos sentidos, podendo ser observadas estas diferenças no diferente tratamento legal que foi dado à matéria ao longo do processo de desenvolvimento brasileiro.

No Império e República Velha pode-se falar que inexistia direito à saúde. Esta era vista como um favor do Estado, não como um direito subjetivo do cidadão. Assim, poderia-se inclusive ter ações que beneficiassem parcela da população em detrimento de outras.

Quando da Era Vargas e até o período de democratização experimentado pelo Brasil, houve uma mudança de enfoque, mas continuou ter-se um Estado omisso, o qual ainda não estava obrigado a proporcionar o referido direito à população. Este direito estava garantido ao trabalhador que contribuisse com a previdência social e tivesse carteira assinada. Teve início, ainda, o processo de mercantilização da saúde, pois o restante da população teria que custear os dispendiosos meios privados.

A partir das diversas discussões e com o advento do Welfare State tornou-se a saúde um direito da população e que precisa ser assegurado pelo Estado, o qual deve proporcionar mecanismos de gozo daquele pelos indivíduos.

Com isso, a Constituição de 1988 assegurou a saúde como direito fundamental social. Além disso, dado a sua força normativa, deve ser prestado aos cidadãos de maneira efetiva. Entretanto, vê-se que a Administração não está eficiente neste desiderato. Por isso, o Poder Judiciário passou a ter uma atuação decisiva, conforme será esclarecido ao longo deste estudo.

 

2. A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE

A judicialização do direito à saúde, que de forma simples pode ser discriminado como o uso de ações judiciais para a efetivação deste direito, tem suscitado ferrenhas discussões na doutrina brasileira.

O próprio termo traz, a princípio, uma carga negativa, tendo em vista que fornece uma imagem de interferência negativa do Poder Judiciário em esferas que não são de sua competência.

Entretanto, este fenômeno é mais complexo do que parece. Envolve outros conceitos e liga-se a um movimento que adveio com a promulgação da Constituição Federal de 1988.

Fala-se que nos últimos anos a Constituição ganhou a denominada força normativa e tornou-se mais efetiva. Percebeu-se que não se trata apenas de uma carta política, mas sim de um documento que abarca um complexo de direitos subjetivos que devem ser garantidos aos cidadãos.

Luís Roberto Barroso quando tece comentários acerca da “constitucionalização”, a qual denomina o processo de irradiação da Constituição no sistema jurídico, expressa de maneira singular o fenômeno da judicialização, que segundo ele, caminha ao lado do “movimento de constitucionalização”:

Sob a Constituição de 1988, aumentou de maneira significativa a demanda por justiça na sociedade brasileira. Em primeiro lugar pela redescoberta da cidadania e pela conscientização das pessoas em relação aos próprios direitos. Em seguida, pela circunstância de haver o texto constitucional criado novos direitos, introduzindo novas ações e ampliado a legitimação ativa para a tutela de interesses, mediante a representação ou substituição processual. Nesse ambiente, juízes e tribunais passaram a desempenhar um papel simbólico importante no imaginário coletivo. (BARROSO, 2010, p.384)

Desse modo, com as garantias proporcionadas pela Constuição de 1988 – como a inamovabilidade, irredutibilidade de subsídios e vitaliciedade – os juízes passaram a ter um papel mais ativo perante a sociedade, fortalecendo a própria instituição do Poder Judiciário, para desempenhar inclusive com um cunho político.

Em razão desse conjunto de fatores – constitucionalização, aumento da demanda por justiça e ascensão institucional do Judiciário -, verificou-se no Brasil uma expressiva judicialização de questões políticas e sociais, que passaram a ter nos tribunais sua instância decisória final. (BARROSO, 2010, p.384).

Nesse sentido, a judicialização é um processo de participação do Judiciário na efetivação de direitos consagrados pela Constituição. Diante da impossibilidade do cidadão de fazer valer seus direitos perante a via administrativa, percebeu-se que a utilização da via judicial pode ser um caminho eficiente.

Entretanto, em vista de sua expansão nos últimos tempos, surgem dúvidas sobre sua eficácia, haja vista que diversos questionamentos sobre colisão de princípios, interferência excessiva e excesso de voluntarismo vieram à tona.

Desse modo, traçar os caminhos de limites dessa atuação, no caso em apreço do acesso à saúde, é um dos temas a serem pesquisados no Direito brasileiro, tendo em conta que a efetivação do direito à saúde é imprescindível, mas não se pode solapar diversos outros direitos consagrados, inclusive, constitucionalmente.

A decisão judicial que o assegura afeta inclusive a promoção do próprio direito à saúde, na medida em que acaba por transferir recursos para uma despesa não prevista, pois as demandas judiciais, como por exemplo para fornecimento de medicamentos, tem como fundamento o fato de que este não está dentre aqueles fornecidos pelo SUS.

Vê-se, portanto, que a judicialização da saúde envolve tanto aspectos políticos, quando estabelece o modo como a política deve ser realizada e a destinação do orçamento, quanto jurídicos, porquanto envolve a análise dos limites de atuação das decisões judiciais e o fornecimento de critérios de ponderação e interpretação de valores constitucionais.

Um importante aspecto a ser tratado é a falta de conhecimento do juiz tanto com relação ao impacto orçamentário de sua decisão quanto à real necessidade do indivíduo que suscita a prestação jurisdicional.

Na maior parte das vezes, haja vista a possibilidade de com a demora de uma perícia judicial a vida da pessoa estar em risco, o julgador contenta-se com o parecer de um médico, que nem sempre pode estar correto.

A dificuldade inclusive em se precisar qual o ente federativo responsável, o que necessita de uma análise de minuciosa de diversas portarias, leis e demais regulamentos, intensifica a necessidade de discussão acerca da matéria. Em razão de sua carga de trabalho, nem sempre é possível uma apreciação criteriosa, e por isso, sempre surge como alternativa assegurar o direito à saúde do particular, mesmo a custo do próprio direito dos demais membros da sociedade.

Daniel Wei Liang Wang esclarece mais dois ascectos, aliados ao pouco conhecimento do juiz, que podem ser considerados como negativos a este tipo de interferência juidicial: a) a falta de legitimidade democrática sobre alocação de recursos escassos; b) o fato de beneficiar os já favorecidos (WANG, 2009).

Diz, contudo, que um aspecto positivo desta judicialização está calcado no fato de o Poder Judiciário permitir um diálogo maior entre a Administração e o administrado, no sentido de que quando este tem a pretensão perante a via administrativa, nem sempre consegue obter um meio eficiente de dialogar e discutir o seu direito. Quando na presença do juiz, este torna-se um mediador entre as partes, um terceiro imparcial. Acentua-se ainda mais quando não é uma pretensão ajuizada de maneira individual, mas quando há a participação do Ministério Público, por meio de ações civis públicas, que conforme previsão do caput do art.127 da Constituição Federal este “(…)é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (grifos nossos).

Afirma o autor:

Esta forma de atuação em que o Judiciário funciona como um espaço de questionamento das decisões tomadas pelo Executivo e o força a uma justificativa e reavaliação de suas decisões e prioridades é perfeitamente democrático e se considerarmos um conceito de democracia mais específico que aquele apresentado no começo deste trabalho. Refiro-me ao conceito de democracia deliberativa, que parte do pressuposto que (1) decisões públicas devem ser adotadas depois de um amplo processo de discussão coletiva e que (2) devem permitir a participação de todos aqueles potencialmente afetados pela decisão. Neste aspecto, o Judiciário pode ser um mecanismo importante para o debate público porque (1) sua função permite que ele receba reclamações de todos aqueles afetados por uma decisão política, inclusive aqueles menos favorecidos e marginalizados do processo político, (2) tem poder de exigir justificativas da Administração para suas decisões, o que enriquece e legitima a discussão pública pela entrada de mais atores e novos pontos de vista e (3) as ações judiciais podem indicar ao governo a necessidade de revisar algumas políticas e a formacomo elas estão sendo implementadas (WANG, 2009, p.34).

3. ANÁLISE PRINCIPIOLÓGICA

3.1. O PRINCÍPIO DA FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

Um dos fundamentos usados pelos administradores contra as determinações judiciais é a afirmação de que trata-se de que a Constituição é um texto político, que não gera por si só a existência de direitos subjetivos.

É o reflexo de um pensamento que vigorava na Europa até meados do século XIX. Entretanto, principalmente após a Segunda Guerra Mundial passou-se a atribuir à norma constitucional o status de norma jurídica, e com isso, tornou-se dotada de caráter vinculativo e obrigatório.

Teve como expoente doutrinário Konrad Hesse, com sua obra A força normativa da Constituição (HESSE, 1991). O autor está em contraponto à teoria expressada por Lassale, o qual firma que as questões constitucionais não são qualificadas como jurídicas, mas sim como políticas e que a Constituição real é formada pelos fatores reais de poder. As leis e as própria instituição, segundo seu pensamento, devem expressar esses fatores e em caso de conflito destes com a Constituição, prevalecem os fatores reais de poder.

Hesse afirma que os conflitos entre a Constituição jurídica e a Constituição real (formada pelos fatores reais de poder) é apenas o reflexo entre realidade e norma, dado que esta é estática e aquela dinâmica. Por isso, a realidade teria uma força de negar a própria Constituição. Entretanto, revela em seu estudo, que deve-se reconhecer que esta possui uma força, a denominada força normativa, “..motivadora e ordenadora da vida do Estado”. (HESSE, 1991, p.11).

Expõe a junção que deve haver entre o aspecto normativo (positivismo jurídico de Paul Laband) e o aspecto da realidade (positivismo sociológico de Carl Schmitt). Quando a Constituição busca a eficácia, acaba por modificar a realidade política e social. A força própria, ou seja, sua normatividade está calcada nesta pretensão de eficácia. Mas para que esta ocorra, deve se vincular a uma realidade concreta, donde, esta força está na natureza das coisas.

Um aspecto importante no seu estudo ocorre quando afirma que a Constituição pode transformar-se em força ativa, quando impõe tarefas e existe uma disposição por parte da sociedade de pautar sua conduta pela ordem constitucional. Esta consciência geral se torna mais forte quando os dirigentes do Estado passam a ter a vontade de concretização da Constituição.

Neste aspecto, a Constituição deve amoldoar-se e moldar a própria sociedade. Com relação ao direito à saúde, sua previsão reflete os anseios dos cidadãos e sua eficácia é condição necessária para que eles sejam atendidos.

Com as incesantes buscas pela via judicial para satisfação do direito à saúde, resta claro que admite-se que a Constituição não é letra morta e que prescinde de elementos legais para concretização. Essa força ativa citada por Hesse pode ser encontrada, assim, nos anseios de tornar concretos a aplicabilidade de uma acessível prestação da saúde.

No Brasil esta doutrina somente veio à tona após meados de 1980. Ganhou força com a entrada em vigência da Constituição de 1988. Desse modo, caracterizado como direito fundamental e dever do Estado, o papel do Poder Judiciário passa ser de agente ativo na efetivação deste direito e implementação de políticas públicas.

O pensamento constitucional passou a ter um novo rumo, calcado na normatividade dos princípios e imediata aplicabilidade das normas garantidoras de direitos fundamentais. A Carta Política com suas previsões de direitos sociais tornou-se não apenas um documento de caráter político ou de mera orientação, mas sim imposições constitucionais aos Poderes Executivo e Legislativo, com meios garantidores para sua concretização pelo Poder Público, sendo que na atualidade seu maior expoente é o Poder Judiciário.

3.2. O PRINCÍPIO DA RESERVA DO POSSÍVEL

O direito à saúde enquadra-se naquele conceito formulado por Ingo Sarlet de “direitos originários a prestações sociais” os quais traduzem “a possibilidade de – a partir da norma constitucional e independentemente de qualquer mediação legislativa – reconhecer-se um direito subjetivo à prestação” (SARLET, 2001, p.276). Nesse sentido, tratando-se de um direito subjetivo, a sua não prestação torna permitida a atuação do Poder Judiciário.

Entretanto, o princípio da reserva do possível é utilizado para sinalizar que esta prestação está submetida a existência de disponibilidade de recursos. Por isso, quando o juiz interfere nesta questão, estaria adentrando em um aspecto de mérito administrativo, porque quando da formulação da política pública, os gastos já foram previamente determinados para áreas específicas, que na visão do administrador seriam as mais necessitadas.

O Judiciário estaria, na visão dos adeptos deste princípio e de sua aplicação com relação ao direito à saúde, usurpando de suas funções. Além disso, os efeitos de uma decisão que concede a tutela da saúde do cidadão não afetam apenas o Estado, mas toda a coletividade. Por isso, fundamenta-se no princípio da reserva do possível a alocação de recursos disponíveis a casos necessários.

Embora sejam argumentos dignos de consideração, este não foi o entendimento do Superior Tribunal de Justiça:

ADMINISTRATIVO. DIREITO À SAÚDE. DIREITO SUBJETIVO. PRIORIDADE. CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS. ESCASSEZ DE RECURSOS. DECISÃO POLÍTICA. RESERVA DO POSSÍVEL. MÍNIMO EXISTENCIAL. 1. A vida, saúde e integridade físico-psíquica das pessoas é valor ético-jurídico supremo no ordenamento brasileiro, que sobressai em relação a todos os outros, tanto na ordem econômica, como na política e social. 2. O direito à saúde, expressamente previsto na Constituição Federal de 1988 e em legislação especial, é garantia subjetiva do cidadão, exigível de imediato, em oposição a omissões do Poder Público. O legislador ordinário, ao disciplinar a matéria, impôs obrigações positivas ao Estado, de maneira que está compelido a cumprir o dever legal. 3. A falta de vagas em Unidades de Tratamento Intensivo – UTIs no único hospital local viola o direito à saúde e afeta o mínimo existencial de toda a população local, tratando-se, pois, de direito difuso a ser protegido. 4. Em regra geral, descabe ao Judiciário imiscuir-se na formulação ou execução de programas sociais ou econômicos. Entretanto, como tudo no Estado de Direito, as políticas públicas se submetem a controle de constitucionalidade e legalidade, mormente quando o que se tem não é exatamente o exercício de uma política pública qualquer, mas a sua completa ausência ou cumprimento meramente perfunctório ou insuficiente. 5. A reserva do possível não configura carta de alforria para o administrador incompetente, relapso ou insensível à degradação da dignidade da pessoa humana, já que é impensável que possa legitimar ou justificar a omissão estatal capaz de matar o cidadão de fome ou por negação de apoio médico-hospitalar. A escusa da “limitação de recursos orçamentários” frequentemente não passa de biombo para esconder a opção do administrador pelas suas prioridades particulares em vez daquelas estatuídas na Constituição e nas leis, sobrepondo o interesse pessoal às necessidades mais urgentes da coletividade. O absurdo e a aberração orçamentários, por ultrapassarem e vilipendiarem os limites do razoável, as fronteiras do bom-senso e até políticas públicas legisladas, são plenamente sindicáveis pelo Judiciário, não compondo, em absoluto, a esfera da discricionariedade do Administrador, nem indicando rompimento do princípio da separação dos Poderes. 6. “A realização dos Direitos Fundamentais não é opção do governante, não é resultado de um juízo discricionário nem pode ser encarada como tema que depende unicamente da vontade política. Aqueles direitos que estão intimamente ligados à dignidade humana não podem ser limitados em razão da escassez quando esta é fruto das escolhas do administrador” (REsp. 1.185.474/SC, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 29.4.2010). 7. Recurso Especial provido. (REsp 1068731/RS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/02/2011, DJe 08/03/2012)

Sustentou-se que este princípio não pode ser usado para o Estado exonerar-se de suas obrigações constitucionais, principalmente aquelas abarcados pelo conceito de fundamentalidade, como é o caso do direito à saúde. Como afirmado pelo julgado do STJ, “ a realização dos Direitos Fundamentais não é opção do governante, não é resultado de um juízo discricionário nem pode ser encarada como tema que depende unicamente da vontade política”.

O legislador quando da formulação de políticas públicas e destinação dos recursos deve, inclusive, já antecipar estes possíveis conflitos, na medida em que aquelas devem ter como fim a proporcionar o gozo dos direitos fundamentais e garanti-los, haja vista que os fins da organização não estão na figura do Estado, mas nos cidadãos.

Noutro giro, diversas decisões judiciais esclarecem que esta análise tem de ser feita caso a caso, com a Administração demonstrando de forma inequívoca a limitação financeira. A contraposição entre o direito à saúde e o princípio da reserva do possível torna-se uma excludente da obrigação estatal apenas quando é comprovado de forma fática, não quando a alegação é abstrata.

Os estudiosos apresentam, então, um limitador do princípio da reserva do possível que é a garantia constitucional do mínimo existêncial. Funda-se no princípio da dignidade da pessoa humana, pois faz-se necessário proporcionar-se uma existência digna; no direito à vida e integridade física, no sentido de proporcionar que estes sejam assegurados; e no direito geral de liberdade, o qual prescinde que sejam oferecidas condições mínimas de existência (SARLET; FIGUEIREDO, 2008).

Como dito não é apenas garantir a existência, mas sim que esta seja digna, sendo que este conceito é histórico, cada sociedade possui vai possuir um de acordo com seu grau de desenvolvimento.

Portanto, segundo Figueiro e Sarlet, o mínimo existencial é:

(…)todo um conjunto de materiais indispensáveis para assegurar a cada pessoa uma vida condigna”, pode ser identificado como o “núcleo essencial dos direitos fundamentais sociais (…) blindado contra toda e qualquer intervenção por parte do Estado e da sociedade (SARLET; FIGUEIREDO, 2008, p.25) .

Vê-se, assim, que o princípio da reserva do possível não pode ser usado como uma carta de alforia para o administrador, conforme afirmado pelo julgado do STJ. Seu limite, fincado no mínimo existencial, faz com que seja buscado um meio termo, consistente este na razoabilidade do direito invocado pelo suscitante com sua real necessidade, e a existência de disponibilidade econômica por parte do Estado.

3.3. O PRINCÍPIO DA EFICIÊNCIA

Noutro compasso, alguns juízes esclarecem que espera-se eficiência da Administração Pública, princípio insculpido no art.37, caput, da Constituição Federal. Enfatiza-se que, principalmente na concretização do direito à saúde (art.196 da Constituição Federal de 1988) e na promoção da dignidade da pessoa humana (art.1º, III, do mesmo diploma), aspectos essenciais do Estado de Direito, deve-se ter muito mais necessária a esperada eficiência.

Partem do pressuposto que o Poder Judiciário não está criando uma política pública diferenciada, mas apenas determinando que seus deveres legais sejam cumpridos. E na consecução destes, a própria constituição traz a necessidade de que os meios executóros sejam eficientes.

4. A LEI ORGÂNICA DA SAÚDE E PORTARIAS DO MINISTÉRIO DA SAÚDE: CRIAÇÃO DE UMA POLÍTICA PÚBLICA?

O art.196 da Contituição Federal estabelece que: “

A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.(grifos nossos)

Assim, cumpre questionar se no Brasil já existem estas políticas públicas, ou se de outro modo, o Poder Judiciário está criando estas políticas quando determina a concretização do direito à saúde.

A Lei nº 8.080 de 1990, denominada Lei Orgânica da Saúde, dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências.

A análise de seu texto pode fornecer a resposta para uma indação: quando da atuação do Poder Judiciário na matéria de prestação da saúde à população, ele está criando uma política pública (interferindo em suas diretrizes) ou apenas tornando efetivo e desse modo apenas proporcionando a sua execução?

Este questionamento tem razão de ser pois quando da primeira situação, efetivamente tem-se a denominada judicialização e não no segundo aspecto. Além disso, a segunda caracterização pode afastar aquele aspecto de invasão de funções, inclusive esmaecendo o princípio da reserva do possível.

Observa-se que do texto legal da Lei Orgânica da Saúde tem-se muitos pontos que realmente podem configurar a criação de uma política pública. Mas, o entendimento que parece prosperar é o de que ela apenas norteia as políticas públicas de saúde no Brasil. Dispõe sobre a divisão de atribuições, os princípios a serem observados e apresenta as diretrizes para o desenvolvimento da política de saúde no país.

Entretanto, justamente por tratar destes últimos aspectos, pode ser usada nas decisões judiciais justamente para saber qual ente da federação tem competência para sanar o direito prestacional que está em omissão.

Nesse sentido, quando da atuação e utilização da Lei 8.8080/90 para justificar suas ações, o Poder Judiciário está sim interferindo na criação e desenvolvimento de políticas públicas e, portanto, pode-se falar em judicialização. No entanto, tendo-se em conta que as diretrizes gerais já foram traçadas, tem-se que a invasão na discricionariedade do administrador, se é que realmente existe quanto ao aspecto do direito à saúde, é pequena.

Ademais, o seu art.3º fundamenta muitas decisões judiciais quando trata-se do mínimo existêncial, pois este apresenta muitos aspectos do seu conceito, sendo usado, conforme dito alhures, para limitar o princípio da reserva do possível, onde prevê os fatores determinantes e condicionantes da saúde:

A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais; os níveis de saúde da população expressam a organização social e econômica do País.

Cabe ressalvar, que no que se refere aos medicamentos a política pública foi criada. É a Portaria nº 1.916/MS/GM/98. Há em seu texto a distribuição de responsabilidades, diretrizes para alocação de recursos em áreas essenciais e outras providências para proporcionar o acesso aos medicamentos imprescindíveis à população. Assim, neste campo o Poder Judiciário apenas torna obrigatório o cumprimento do que já está estabelecido, não há uma invasão de competências nem a usurpação da discricionariedade administrativa.

Acrescente-se que a Portaria nº 1097/96, do Ministério da Saúde, criou a Programação Pactuada e Integrada da Assistência à Saúde (PPI de Assistência), onde definiu-se e quantificou-se as ações para a população residente em cada território. É a proclamação do princípio insculpido no art.7º da Lei Orgânica da Saúde, que estabelece a “conjugação dos recursos financeiros, tecnológicos, materiais e humanos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios na prestação de serviços de assistência à saúde da população”.

O parágrafo único do seu art.1º assim estabelece:

A Programação Pactuada e Integrada da Assistência em Saúde tem por objetivo organizar a rede de serviços, dando transparência aos fluxos estabelecidos, e definir, a partir de critérios e parâmetros pactuados, os limites financeiros destinados à assistência da população própria e das referências recebidas de outros municípios.

Em seu art.3º são estabelecidos os objetivos gerais:

Art. 3º Os objetivos gerais do processo de Programação Pactuada e Integrada da Assistência em Saúde são:

I – buscar a equidade de acesso da população brasileira às ações e aos serviços de saúde em todos os níveis de complexidade;

II – orientar a alocação dos recursos financeiros de custeio da assistência à saúde pela lógica de atendimento às necessidades de saúde da população;

III – definir os limites financeiros federais para a assistência de média e alta complexidade de todos os municípios, compostos por parcela destinada ao atendimento da população do próprio município em seu território e pela parcela correspondente à programação das referências recebidas de outros municípios;

IV – possibilitar a visualização da parcela dos recursos federais, estaduais e municipais, destinados ao custeio de ações de assistência à saúde;

V – fornecer subsídios para os processos de regulação do acesso aos serviços de saúde;

VI – contribuir na organização das redes de serviços de saúde; e

VII – possibilitar a transparência dos pactos intergestores resultantes do processo de Programação Pactuada e Integrada da Assistência e assegurar que estejam explicitados no “Termo Compromisso para Garantia de Acesso”, conforme Anexo I a esta Portaria.

 

Desse modo, pelos diversos regramentos encontrados sobre a matéria, pode-se afirmar que quando da atuação do Judiciário na implementação do direito às saúde no Brasil, não existe a invasão de competências. Há uma diretriz geral, que é a denominada Lei Orgânica da Saúde e outros instrumentos legais que embasam a necessidade de permitir-se que sejam executados seus objetivos.

Quando a Administração não implementa esta política, o caminho a ser utilizado pelo cidadão e pelos próprios defensores de seus interesse, como o Ministério Pùblico, é o poder que justamente tem como função assegurar que os direitos não sejam lesados.

Gilmar Ferreira Mendes sintetizou este entendimento, conforme transcrição abaixo:

O estudo do direito à saúde no Brasil leva a concluir que os problemas de eficácia social desse direito fundamental devem-se muito mais a questões ligadas à implementação e à manutenção das políticas públicas de saúde já existentes – o que implica também a composição dos orçamentos dos entes da federação- do que a falta de legislação específica. Em outros termos, o problema não é de inexistência, mas de execução (administrativa) das políticas públicas pelos entes federados. (…) no Brasil, o problema talvez não seja de judicialização ou, em termos mais simples, de interferência do Poder Judiciário na criação e implementação de políticas públicas em matéria de saúde, pois o que ocorre, na quase totalidade dos casos, é apenas a determinação judicial do efetivo cumprimento de políticas públicas já existentes (grifos nossos). (SL 47 AgR, Relator(a): Min. GILMAR MENDES (Presidente), Tribunal Pleno, julgado em 17/03/2010, DJe-076 DIVULG 29-04-2010 PUBLIC 30-04-2010 EMENT VOL-02399-01 PP-00001)

5. ATUAÇÃO JUDICIAL FORA DO LIMITE IMPOSTO PELA POLÍTICA PÚBLICA

É preciso reconhecer, no entanto, um aspecto que gera polêmica. Foi dito que no caso de medicamentos já existe a política pública. O Poder Público possui uma lista de medicamentos que são fornecidos gratuitamente à população, com o fito de assegurar o direito à saúde.

Mas, quando um demandante prescinde de um determinado medicamento, que não está naqueles incluídos para fornecimento à população, seria irrazoado o fornecimento determinado pelo Judiciário?

Os contrários afirmam que isto é uma afronta, haja vista que está se indo ao revés de uma política pública instituída, sem respaldo legal. Informam que o administrador é que possui o conhecimento necessário e a legitimidade democrática para determinar quais os medicamentos são imprescindíveis para assegurar o direito à saúde. Fundamentam que os juízes tem um conceito de direito à saúde que “se confunde com a oferta de qualquer medicamento do mercado, sem observar questões técnicas e todo o aparato desenvolvido pelo Poder Público para tratamento dos doentes” (VIEIRA, 2008).

Por outro lado, os favoráveis esclarecem que é necessário o fornecimento do medicamento principalmente quando ele é imprescindível para sua sobrevivência e o suscitante ou sua família não tem condições de custear a aquisição. Alguns vão mais além e afirmam que quando foi estabelecido o direito à saúde no art.196 da Constituição Federal, foi afirmado que é um direito de todos, sendo que não é necessário nem a comprovação da hipossuficiência.

A permissão jurídica relativa à concessão da pretensão residiria no princípio da isonomia, que permite o atendimento excepcional para pessoas que estão em situação diferenciada, sem que seja ampliado direito previsto na Constituição Federal e sem nenhum ônus extra para o sistema público (STF, RE 261.268/RS, Rel. Min. Moreira Alves. Primeira Turma. DJ 05-10-01).

Tem-se também que o impacto negativo, de desvio na alocação de recursos, pode transformar-se em positivo, na medida em que, o deferimento da demanda pode alertar os administradores que um medicamento não incluído na lista de essencialidades, pode ser acrescentado. De outro giro, nem sempre a concessão deste gera um impacto nos gastos planejados, já que perante a Administração pode ser insignificante.

6. CONCLUSÃO

Diante de todo o exposto, pode-se concluir que os questionamentos a respeito da judicialização são polêmicos e continuarão a ser por um bom tempo. A cada dia surge um novo aspecto a ser analisado, seja de colisão de princípios ou de uma mudança de enfoque sobre a Constituição.

O que pode-se apontar como incontroverso é o poder da Constituição de 1988. Com a mudança de pensamento e a consagração de sua força normativa, percebeu-se que não apenas proclama ideais a serem seguidos, mas sim direitos subjetivos que devem ser assegurados.

Desse modo, veio à tona a necessidade de atuação do Poder Judiciário, usado como um instrumento para que as políticas públicas sejam implementadas e os direitos constitucionais assegurados. Seu papel neste novo contexto político e jurídico brasileiro é, dessa forma, mais amplo, mas sem que seja considerado como um invasor de funções de outros poderes.

A judicialização não pode ser vista como um mal, deve, contudo, ser considerado como mais um reflexo do Estado de Direito, que visa assegurar o gozo dos direitos pelos cidadãos. A separação de poderes, o princípio da reserva do possível e a alegada discricionariedade não podem permitir que os administradores continuem a ser omissão quanto aos direitos fundamentais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional. 2ªed. São Paulo: Editora Saraiva, 2010.

HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1991.

SARLET, Ingo Wolfgang Sarlet. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 2ªed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2001.

FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Orgs.). Direitos fundamentais: orçamento e reserva do possível. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.

VIEIRA, Fabiola Sulpino. Ações judiciais e direito à saúde: reflexão sobre a observância aos princípios do SUS. Rev. Saúde Pública, São Paulo, v. 42, n. 2, Apr. 2008 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-89102008000200025&lng=en&nrm=iso>. access on 02 July 2012. Epub Feb 29, 2008. http://dx.doi.org/10.1590/S0034-89102008005000010.

WANG, Daniel Wei Liang. Poder Judiciário e participação democrática nas políticas públicas de saúde. 2009. Dissertação (Mestrado em Direito do Estado) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2134/tde-21062011-134507/>. Acesso em: 2012-07-02.

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