A investigação do terrorismo internacional e o uso da tortura. Especial atenção a situação brasileira.

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Resumo: O terrorismo pode ser considerado contemporaneamente como uma das ameaças mais graves a paz e a tranqüilidade social. Através da imposição do medo e do uso de uma violência diferenciada, busca-se a obtenção de interesses políticos, religiosos ou ideológicos, massacrando-se os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos e abalando o próprio conceito do Estado Constitucional de Direito. A questão que surge atualmente diz respeito a possibilidade, em caráter de exceção, do uso da tortura contra os terroristas, como forma de obtenção de informações que possam evitar mortes de inocentes. A dúvida: seria possível torturar um terrorista alegando estar amparado por uma causa excludente de ilicitude?

El terrorismo puede ser considerado contemporáneamente como una de las amenazas más graves a la paz y a la tranquilidad social. A través de la imposición del miedo y del uso de una violencia diferenciada, buscase la obtención de intereses políticos, religiosos o ideológicos, masacrándose los derechos y garantías fundamentales de los ciudadanos y poniendo en riesgo el propio concepto de Estado Constitucional de Derecho. La cuestión que surge actualmente dice respecto a la posibilidad, en carácter de excepción, del uso de la tortura contra los terroristas, como forma de obtención de informaciones que puedan evitar la muerte de inocentes. La duda: ¿Es posible torturar un terrorista aduciendo estar a actuando bajo la protección de una justificación legal?


Palavras-chave: Terrorismo internacional – financiamento – risco – perigo – tortura.

 

Índice: I. O fenômeno do terrorismo; II. Breves observações relativas ao financiamento do terrorismo; III. A tortura como forma de obtenção de provas e informações em matéria de investigação do terrorismo: a) tortura e direitos fundamentais; b) os casos das ticking time bombs e Daschner; c) o uso da tortura como forma de causa de justificação penal; IV. Conclusões.

 

I. O fenômeno do terrorismo internacional

O terrorismo é objeto de abundantes estudos não somente do ponto de vista penal, bem como das ciências políticas, da sociologia, da filosofia e de tantas outras disciplinas. A razão consiste no fato de que a conduta terrorista não se circunscreve ao objeto imediato de seu ataque, transcendendo ao mesmo, vez que sua finalidade em realidade consiste em afetar e atingir ao resto da sociedade ou a uma parte determinada dessa, com a finalidade explicita de impor um determinado interesse ou desejo.

A matéria prima do terrorismo é a radicalização dos conflitos e seu resultado final sempre é representado pelo medo. De outra parte, as motivações para a prática de um ato terrorista são variadas, o que, porém, não modifica suas características que são sempre as mesmas.

Um ato terrorista pressupõe, em primeiro lugar, um ato delitivo contrário ao ordenamento jurídico. Em segundo, esse ato não se satisfaz com o mal causado a vítima,

senão que, por suas características, busca provocar um razoável temor de ser vítima do mesmo tipo de atos a um determinado grupo social ou seguimento da população.

Por fim, importante salientar que o ato terrorista por si só, busca coagir a livre vontade individual de modo a obter forçadamente do grupo social ou de suas autoridades, o reconhecimento ou satisfação de seus particulares interesses ou desejos.

Após este sucinto intróito, cabe agora indagar: o que vem a ser o terrorismo?

E ainda: conhece o Brasil o terrorismo como forma de delinquência organizada?

Costuma-se afirmar que a terminologia “terrorismo” aparece na história durante a Revolução Francesa, em ocasião do Comitê de Saúde Pública (Robespierre e Saint Just), nos anos 1791 a 1794, e foi utilizado em trabalhos científicos pela primeira vez por Gunzburg, em Bruxelas, na Bélgica, no ano de 1930.

O mais curioso é que resulta complexa a tarefa de se encontrar um conceito unívoco e definitivo para o fenômeno delitivo denominado “terrorismo”1.

Em nossa opinião, se poderia conceituar um ato terrorista afirmando consistir o mesmo em uma negociação dos direitos fundamentais através da utilização da violência como meio de terror por parte de estruturas organizadas que apresentam em regra nítidos fins políticos. Com isso, queremos dizer que embora o terrorismo se caracterize por sua finalidade política, nem toda violência política pode ser considerada como um ato de terrorismo. Este fenômeno que amedronta a sociedade contemporânea ataca frontalmente aos direitos humanos fundamentais, utilizando-se de métodos que se distanciam dos canais de contato e participação democrática. Neste sentido, o terrorismo enquanto atentado a ordem social, em realidade, somente poderá ser percebido em uma sociedade livre e democrática, ou seja, onde se visualiza um Estado Constitucional de direito2.

Também seria correto conceituar esse fenômeno delitivo como sendo o emprego calculado da ameaça da violência que exercem indivíduos, grupos nacionalistas e agentes estatais para obtenção de objetivos políticos, sociais e econômicos, violando a lei, com a intenção de criar um medo insuperável em uma área eleita como objetivo que transcende às vítimas atacadas ou ameaçadas.

Em opinião de Portilla Contreras, entende-se por terrorismo o método ou a teoria metodológica, mediante a qual uma organização ou um partido político tenta conseguir seus objetivos recorrendo de modo preferencial a violência3. Ou em linguagem figurada, o terrorismo equivale a sucessão de atos de violência executados para infundir terror4.

Como características marcantes desta espécie de imposição violenta e desmesurada de objetivos de um determinado grupo ou seguimento político, pode-se citar: 1. O terrorismo apresenta normalmente, uma finalidade ligada ao aspecto político, seja disfuncional ou funcional ao sistema, isto é, seja para provocar a desestabilização do regime político imperante, ou para promover sua substituição por outro5, seja como instrumento complementário das políticas governamentais de controle social, ainda que através do emprego de meios ilegais; 2. O terrorismo se baseia no uso da violência ou de ameaça e se dirige definitivamente a um destinatário coletivo representado pela sociedade ou pelo Estado; 3. O terrorismo adota meios táticos e estratégicos que denotam a característica de estratégia predominante ou o método tendencialmente exclusivo.

Assim, a violência não é isolada, senão sistemática, e isto é o que permite, no plano jurídico, aludir ao término “organização terrorista”. Em suma, o terrorismo ataca frontalmente aos direitos humanos empregando meios violentos, que não somente são ilegais, mas também capazes de afetar a vida, a integridade física, a saúde e a liberdade de um número indefinido de pessoas.

As organizações terroristas perseguem objetivos políticos que são simplesmente inalcançáveis de maneira direta e imediata por meio do emprego exclusivo do terrorismo, seja qual seja a reação do Estado agredido. Agora vejamos: isso não exclui que esses objetivos possam ser alcançados de forma mediata, onde as ações terroristas servem tão somente para desencadear um processo que mal ou bem, irão conduzir a consecução do objetivo proposto ou ao menos, favorecer seu alcance.

Importante destacar que com o advento do século XXI, novas ameaças ganharam relevo no mosaico dos problemas que colocam em risco a segurança dos povos, a estabilidade dos países e a concentração de esforços em favor da paz mundial. O terrorismo internacional, devido a seu poder de infiltração em diferentes regiões e sua capacidade para gerar instabilidade na comunidade internacional, constitui uma das principais ameaças da atualidade.

A expansão do terrorismo internacional na última década está diretamente relacionada ao crescimento de sua vertente islâmica, que, por sua vez, ampliou-se na esteira da disseminação de interpretações radicais do islamismo, que se opõem a qualquer tipo de intervenção no universo dos valores muçulmanos e pregam o uso da violência, guerra santa (jihad), como forma de defender, expandir e manter a comunidade islâmica mundial.

Nesse aspecto, percebe-se que nas organizações extremistas islâmicas, em especial do ramo sunita, a pessoa, para ser seu líder, deve ter conhecimento religioso aprofundado, diferentemente das xiitas, que aceitam somente líderes que tenham descendência direta do Profeta Maomé, como a Al-Qaeda e grupos a ela coligados, que utilizam o conceito radical de jihad para defender a participação ativa em enfrentamentos em que uma das partes se defina como islâmica e se oponha a outra não-islâmica ou ocidentalizante6.

Prova contundente dessa assertiva é que podemos afirmar que a data de 11 de setembro de 2001, mostrou ao mundo como um grupo de terroristas pode apoderar-se de um elemento da vida comum como é o caso de um avião comercial de passageiros, e converte-lo em uma arma de destruição massiva, que pode causar consequências incalculáveis em todas as partes do mundo. Em palavras de Ulrich Beck, sociólogo alemão, após os atentados às torres gêmeas e ao pentágono, visualizou-se uma “institucionalização da insegurança”7. Por isso a afirmação corrente e já consolidada do citado autor no sentido de que vivemos nos dias atuais em uma verdadeira “sociedade do risco”8.

Respeito à questão da atuação de grupos terroristas no território brasileiro, bastaria dizer que embora não estejamos na linha de frente dessa espécie de delinquência organizada, não se podendo visualizar destacados atos de terrorismo em nossa história recente, valeria mencionar que é cediço que noticias de financiamento a este tipo de crime já foram noticiados pela mídia e pelas policias fronteiriças, fato este que demonstra que nosso território encontra-se sendo utilizado como uma pequena célula para esconderijo de terroristas fugitivos de outros países, bem como porta de passagem de capitais ilícitos envolvidos no complexo processo de lavagem de dinheiro e outros bens pertencentes a grupos criminosos9.

A preocupação que surge aos nossos olhos direciona-se com a proximidade de grandes eventos no Brasil, a exemplo dos próximos jogos olímpicos em 2012 e a copa do mundo de futebol em 2014. Embora se tenha ciência da preocupação do governo brasileiro e das organizações promotoras de tais eventos, espera-se um trabalho antecedente e logisticamente correto por parte das policias brasileiras, e de modo muito especial da valorosa Policia Federal, a qual possui em seus quadros profissionais capacitados ao enfrentamento do terrorismo.

A vinda de autoridades pertencentes a vários países e o fato de que algumas delegações estariam na mira de grupos terroristas, fará com que o aparato policial seja estruturado e adequadamente ajustado a ameaça terrorista, vez que não se pode perder de vista o trágico e sempre lembrado ataque ocorrido nos jogos olímpicos de verão em Munique, na Alemanha, no ano de 1972, tendo sido naquela data, mortos onze membros da equipe olímpica de Israel.

O Brasil, segundo posicionamento do Ministério das Relações Exteriores, “repudia qualquer manifestação de violência política, principalmente a de grupos que se utilizam do terrorismo para impor ideologias e desestabilizar governos”. Nesta linha, o país aderiu aos 12 acordos internacionais da ONU que tratam do tema e vem cumprindo as recomendações do Grupo de Ação Financeira Internacional Contra a Lavagem de Dinheiro (GAFI).

Participa ainda ativamente do Comitê Interamericano contra o Terrorismo (CICTE) criado em 1999 para coordenar a troca de informações e discussão de estratégias contra terroristas (vide a Resolução n 1373/01 da ONU que prevê o intercambio de informações operacionais e a cooperação por intermédio de acordos bilaterais e multilaterais). Foi também, um dos primeiros países a assinar em 2002, a Resolução 1840 – Convenção Interamericana Contra o Terrorismo – aprovada pela assembléia-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) que visa prevenir, combater e erradicar atividades terroristas.

Embora não seja a tipificação legal do terrorismo, objeto do presente estudo, interessante aduzir que tal atividade ilícita, ao contrário do que ocorre na legislação espanhola (artigos 571 e 572 do Código Penal), não se encontra claramente e taxativamente prevista na lei brasileira, salvo as disposições contidas na Lei nº 7170/83 (Lei de Segurança Nacional) e na Lei nº 8072/90 (Lei dos crimes hediondos).

A nosso modo de ver, a imprecisão do termo “terrorismo” e a amplitude desta expressão nas citadas leis brasileiras, contraria a regra da objetividade jurídica, que exige a definição clara e precisa das ações constituidoras dos tipos penais.

Assim, ausente se encontra uma definição do delito de terrorismo no âmbito do direito brasileiro, fato este que impossibilita sua punição, a salvo por crimes correlatos como a lavagem de capitais, formação de quadrilha, etc.

 

II. Breves observações relativas ao financiamento do terrorismo

Uma constatação inicial: o terrorismo somente sobrevive ao longo dos anos se apresentar uma sólida base financeira que possa lhe assegurar uma estrutura de modus operandi apta a consecução de seus objetivos. Dito em outros términos, se quer dizer que a prática da disseminação do medo através de grandes atos praticados por grupos terroristas apresenta um alto custo financeiro, vez que em sua grande maioria, dependerá de um mínimo de organização logística.

O Direito internacional contemporâneo proíbe com clareza aos Estados a utilização do terrorismo contra outros Estados em qualquer circunstância. A resolução número 2625 (XXV) da Assembléia Geral da ONU, de 24 de outubro de 1970, relaciona esse obrigação a dois princípios estruturais do direito internacional: o da proibição da ameaça ou do uso da força e o da não intervenção em assuntos internos de outro Estado10.

Surge, pois, diante da impossibilidade dos países em utilizar-se desse expediente irracional e delitivo, a questão do financiamento do terrorismo como forma de manutenção das organizações criminosas em plena atividade, já que para poderem buscar seus objetivos de obtenção de fins escusos, haverá o grupo de delinqüentes de receber ajuda financeira para a consecução das suas metas.

Também importante destacar que a atividade terrorista se financia mediante atividades tanto legítimas como ilegítimas.

Existe uma grande variedade de atividades que contribuem para a manutenção econômica do terrorismo. A mais destacada e usual consiste no tráfico de drogas, porém não se pode deixar de citar outras atividades como o tráfico de pessoas, a falsificação de produtos, os seqüestros, a extorsão, a lavagem de capitais etc.

Todavia, merece relevo mencionar que o vinculo entre a estruturação econômica do terrorismo e o comércio ilegal de drogas acabou por apresentar nos últimos anos, de forma exacerbada, um aumento quantitativo nunca antes visto. A razão se deve principalmente a expulsão dos talibãs do Afeganistão, pois muitos desses se reagruparam no Paquistão. Assim, o tráfico de drogas ressurgiu em grande escala no norte do Afeganistão com o aumento da produção dos cultivos. O tráfico se desenvolve desde o Paquistão por meio de simpatizantes do regime talibã e a droga chega até alguns territórios da antiga União Soviética, e desde a Golden Crescent, até as rotas tradicionais espalhando-se pelo mundo. Como consequência desse processo vicioso, os fundos recebidos do tráfico de entorpecentes são utilizados como modo de facilitação, estruturação e apoio às atividades terroristas.

Mas o que vem a ser o financiamento do terrorismo?

Trata-se de ato que diretamente ou indiretamente recolha, forneça, receba, administre, custodie ou guarde fundos, bens ou recursos, ou que realize outro ato que promova, organize, apóie, mantenha, financie ou sustente economicamente a grupos ideologicamente organizados e contrários a lei, ou a seus próprios integrantes, sejam nacionais ou estrangeiros, que estejam predispostos ao uso da violência como forma de obtenção normalmente de um objetivo politicamente estratégico. Ademais, vale destacar que os recursos para o financiamento de atos terroristas não advém tão somente do narcotráfico, mas como já visto, também do tráfico de imigrantes, da extorsão, da lavagem de capitais, da corrupção estatal e privada, etc.

Nessa direção e sem medo de errar, pode-se afirmar que a reciclagem de bens ilícitos e o terrorismo são delitos sem fronteiras11, e que caminham juntos, tendo em vista a realidade atual das grandes organizações criminosas como, por exemplo, as grandes máfias, as quais necessitam de recursos financeiros “limpos” e “desembaraçados” para que suas atividades e objetivos possam ser alcançados com maior rapidez e eficiência.

Em consequência, é pertinente a pergunta acerca das causas da ineficácia perceptível nos dias atuais, da luta contra o financiamento do terrorismo internacional. A nosso modo de ver, dois seriam os elementos fundamentais que poderiam ajudar a responder a essa indagação. Por uma parte, a ausência ou de implementação de instrumentos jurídicos aptos a fazerem frente a esta situação; e em segundo, a falta de vontade política de buscarem-se soluções para tal problemática.

Porém, não se pode esquecer que algumas ações vêm sendo postas em prática para se amenizar o crescimento do financiamento do terrorismo, a exemplo da atuação do GAFI (Grupo de ação financeira internacional)12, que editou algumas recomendações a serem empreendidas com vistas a redução dos riscos do desvio de recursos para manutenção e estruturação das ações de grupos organizados de terroristas.

Dentre as mais significativas, destacam-se a necessidade de ratificação e execução das recomendações e instrumentos delineados pelas Nações Unidas; a tipificação penal do terrorismo e da lavagem de capitais correlata; o congelamento e confisco de bens e rendimentos oriundos de atividades ligadas ao terrorismo; a obrigação de informação sobre transações suspeitas relativas ao terrorismo, especialmente no tocante as instituições bancárias; e a cooperação internacional entre os países13.

Em síntese, a repressão do financiamento do terrorismo é uma meta ambiciosa dos Estados, e seu êxito dependerá da capacidade destes em dispor de leis vigorosas e instrumentos de aplicação apropriados ao enfraquecimento do poder financeiro dos grupos terroristas.

 

III. A tortura como forma de obtenção de provas e informações em matéria de terrorismo

a) Tortura e direitos fundamentais

Até o presente momento, resta clara a assertiva de que o terrorismo internacional consiste em problema grave que afeta as sociedades modernas, desestabilizando a democracia e a paz dos Estados, especialmente, infligindo temor e histeria quando de sua atuação.

Também, que o financiamento do terrorismo é algo que precisa sofrer um duro golpe, vez que mantém viva a prática dessa espécie de criminalidade.

Assim, não se discute nos dias atuais que o terrorismo constitui um dos problemas mais graves que aflige a sociedade contemporânea, mas também é certo que em matéria de legislação antiterrorista fica patenteada a demonstração de que o Estado democrático demonstra mais claramente uma tendência autoritária que lesiona gravemente a eficácia das garantias individuais. Note-se, por exemplo, a patriot act americana e outras legislações européias editadas após os ataques terroristas ocorridos em 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos da América.

Após tal ataque contra as torres gêmeas e ao pentágono, diante do surgimento de várias legislações de emergência, destacou-se inclusive o ressurgimento através da doutrina de Gunther Jakobs na Alemanha, da tese de defesa de um “direito penal do inimigo”, em contraposição a um direito penal do cidadão, no tocante ao combate contra a criminalidade considerada de maior gravidade.

Tal sustentação dogmática, diga-se de passagem, repelida energicamente pela maioritária doutrina penal, destaca-se pela denegação dos direitos e garantias fundamentais daquelas pessoas tidas como “inimigas” (delinquentes organizados, terroristas, abusadores sexuais). Ou seja, tratando-se de uma verdadeira guerra, estes não-cidadãos devem ser tratados como inimigos e, portanto “exterminados” como verdadeiras fontes de perigo ao Estado14.

Iniciando uma perfunctória introdução ao tema do emprego da tortura na luta contra o terrorismo, se pode afirmar sem medo que esta espécie de prática do terror está em geral proibida. A causa dessa proibição segundo nos ensina Luís Greco, consiste no atentado contra a dignidade humana15.

De outra parte, o rigoroso respeito das garantias penais e processuais e em especial, das garantias contra a tortura, não somente representam um valor em si mesmo, mais que isso, se refere a um principio de civismo jurídico na tutela da dignidade e dos direitos fundamentais das pessoas, assim como dos lineamentos básicos da democracia e do Estado Constitucional de Direito.

Trata-se também de um fator de eficácia do Direito penal e da própria luta contra a criminalidade, incluída nesse contexto a batalha contra o terrorismo internacional. A força insubstituível do direito, em efeito, não consiste na força bruta e nem mesmo na força militar como aquela que se manifesta na tortura ou nos atos de guerra. A nosso ver, reside muito ao contrário, na assimetria entre o direito e o crime, entre a resposta institucional e o terrorismo.

Assim, somente esta assimetria seria capaz de deslegitimar o terrorismo como crime, de neutralizá-lo politicamente, de isolar este mal e de debilitar-lo social e moralmente.

Em palavras de Ferrajoli, a batalha contra a tortura, talvez a mais infame das violências institucionais, não é somente uma batalha em defesa da democracia e dos direitos humanos. É também uma batalha da razão em defesa das garantias mesmas da segurança, as quais dependem hoje mais do que nunca, da credibilidade moral antes que jurídica, dos denominados “valores do ocidente”16.

Feitas estas observações preliminares, eis que nos cabe a continuação, destrinchar a intrigante dúvida surgida no âmbito doutrinário internacional: seria justificável e razoável a aceitação da tortura em caso de ponderação de interesses, em situações de necessidade extrema? Dito de outro modo, excepcionalmente seria correta a tortura de um suposto terrorista como forma de obtenção de informações que poderiam salvar a várias pessoas inocentes?

 

b)Os casos das ticking time bombs e Daschner

Por desgraça, o tema da tortura voltou a estar “na moda”. Ainda que se trate de uma medida que foi considerada legítima no passado para a luta contra o terrorismo, tal questão voltou à tona após os atentados de 11 de setembro nos Estados Unidos. Em concreto, seu debate atualmente é mais intenso nos EUA, onde após tais atos de terrorismo cometidos por membros da Al Qaeda, instalou-se a já conhecida “guerra contra o terror”17.

Como ato conseqüente a esta discussão sobre o emprego da tortura em situações excepcionais, eis que se desperta recentemente na Europa, uma das discussões mais acirradas no âmbito penal, ou seja, a partir dos polêmicos casos de um sequestro na Alemanha (caso Daschner) e da bomba do tempo (ticking bomb) em Israel, questiona-se a respeito da proibição absoluta da tortura nos casos de situações extremas em que seu uso poderia ser o único meio para obter-se a informação necessária para prevenir lesões de maior gravidade a um número grande de pessoas inocentes.

Tentando oferecer uma análise honesta ao tema, vale ressaltar inicialmente que como já visto, o status das pessoas acusadas como delinquentes de alta gravidade veio a deteriorar-se de forma vertiginosa desde os atos terroristas de 11 de setembro de 2001. Uma vez etiquetados como “terroristas”, já não mais foram tratados como cidadãos comuns portadores de direitos, senão como inimigos que deveriam ser combatidos por todos os meios, inclusive por aqueles tidos como ilegais18.

Via de conseqüência instalou-se o absurdo enclausuramento dos suspeitos de terrorismo na base de Guantánamo19 e ainda na prisão iraquiana de Abu Ghraib. Ditas pessoas ficaram durante anos sem contato com suas famílias e o pior, sem direito a um julgamento. Todavia, vale destacar que com a assunção do novo presidente americano Barak Obama, iniciou-se um processo de humanização sobre aqueles presos, tendo sido alguns já transferidos e submetidos a julgamento.

Chegado a esse ponto, cabe-nos nesse instante, tecer algumas considerações acerca dos já citados leading cases (casos Daschner e Ticking Bomb).

O primeiro episódio a despertar o renascer da discussão do emprego da tortura contra os delinquentes diz respeito ao caso conhecido como “Daschner”.

No mês de setembro do ano de 2002, Magnus Gaefgen, estudante de direito na Alemanha, seqüestrou um garoto de onze anos de idade, o qual era filho de um grande executivo do setor bancário de Frankfurt. Após, exigiu o pagamento da quantia de um milhão de euros à titulo de resgate como pressuposto para a libertação do refém.

Gaefgen acabou sendo detido no exato momento em que recolhia o dinheiro do resgate no local combinado com a família do menor.

Após um dia de interrogatórios sem êxito, o vice-chefe da policia de Frankfurt, Wolfgang Daschner, oficial responsável pela condução das investigações, ordenou a um de seus subordinados que iniciasse uma série de ameaças ao sequestrador Gaefgen, com a finalidade de obterem-se informações concernentes a localização do cativeiro do menor.

Daschner chegou inclusive a ordenar a um de seus subordinados para que provocasse dor no seqüestrador, sem a realização de lesões, desde que houvesse prévio e devido acompanhamento médico, vez que considerou que era a única forma de encontrar a vítima e salvar sua vida.

Após a adoção de tais medidas de ameaça de tortura, o sequestrador decidiu confessar que havia matado o garoto e mostrou a polícia onde havia enterrado o corpo.

Em sentença de 09 de abril de 2003, a Corte de Frankfurt condenou Gaefgen a prisão perpétua por sequestro e assassinato. E mais que isso, pois Daschner e seu oficial subordinado também restaram condenados, respectivamente, por ordenar a um subordinado a cometer um crime e coação.

Em grau de recurso, o Tribunal Superior Alemão, invocando a sui generis tese da “verwarnung mit strafvorbehalt” (§ 59 StGB), que literalmente poderia ser traduzida como “advertência com reserva de pena”, absteve-se de impor uma pena aos dois policiais, considerando que a avaliação integral da conduta daqueles acusados e suas respectivas personalidades demonstravam que a imposição de sanção não se fazia necessária20.

Em resumo, implicitamente, a justiça alemã deixou transparecer ser correto o emprego da tortura em situações extremas e no intuito de salvar a vida de vítimas inocentes.

De outra ponta, outra hipótese que despertou interesse foi denominada como “ticking time bomb scenario”.

Em qualquer caso sobre a justificação da tortura, o caso da ticking time bomb adquire sempre um papel protagonista21. Tal situação consiste naquilo que é chamado pela doutrina, em tradução literal ao português, de “cenário de uma bomba de relojoaria”. Refere-se, portanto, a casos em que é detido um terrorista que sabe onde está escondida uma bomba controlada por um mecanismo automático e que poderá explodir a qualquer momento, com sérios riscos para a população.

Em Israel durante anos, e especialmente a partir do informe da Comissão de Landau de 1987, se praticaram nos interrogatórios envolvendo suspeitos de atos de terrorismo, o que eufemisticamente se denominou de “pressão física moderada”.

Tal método abarcava condutas como o shaking (sacudir com força e reiteradamente a pessoa detida, fazendo com que sua cabeça balançasse rapidamente, vindo a provocar sérios danos celebrais), ainda, permanecer durante um longo período de tempo na posição chamada de shabach, ou seja, sentado em uma pequena cadeira, com o assento inclinado para frente, com as mãos atadas às costas e com um saco cobrindo a cabeça do preso até os ombros e ouvindo música em alto volume; e por fim, a frog crouch, ou seja, a posição de permanecer sobre as pontas dos pés por um período longo de tempo, com a privação prolongada do tempo de sono, etc.

Vale destacar que em 1999, o Tribunal Supremo de Israel prolatou uma sentença memorável22, na qual se utilizando de uma excelente fundamentação jurídica, foram declaradas ilegais tais práticas ocorridas nos interrogatórios de pessoas suspeitas de terrorismo. A base de tal decisão foi a de que não seriam permitidas tais condutas em um Estado de Direito.

Porém, eis que surge uma dúvida importante em tal julgamento, vez que no final da sentença, permanece um resquício perigoso: ainda que não se pudesse legislar-se autorizando a tortura, ficou dito que nada impede que em algum caso excepcional se possa ex post invocar um estado de necessidade para excluir a responsabilidade por uma tortura praticada em situações sui generis, como naquela que configura, por exemplo, a denominada ticking time bomb scenario, na qual a única forma de obter informações para desativar uma bomba que vai explodir em uma zona movimentada por pessoas seria torturando a pessoa suspeita de ter ativado tal artefato23.

Percebe-se que tal conclusão acima não é a priori absurda. Imaginemos que uma proibição absoluta da tortura nesses casos, apesar de humanitariamente correta, poderia resultar dolorosa em situações de necessidade.

Como nos lembra Greco, poderia se pensar no pior, ou seja, uma cidade inteira como Munique, Nova York, Barcelona ou Rio de Janeiro, irá desaparecer do mapa mundi senão se conseguir a confissão do terrorista responsável pela colocação da bomba, que acaba de ser capturado pela polícia24.

Trazendo a discussão ao nosso cotidiano, imagine-se a seguinte situação: um grupo de membros do Ministério Público, notadamente aqueles com atuação na área criminal no combate às organizações criminosas organizadas, empreende um vôo de São Paulo até Porto Alegre, a fim de participarem de um evento sobre “técnicas de inteligência policial”. Minutos após o avião decolar, são detidos no aeroporto, dois homens suspeitos que portavam uma lista com os nomes dessas autoridades. Ao serem indagados, um deles afirma que um grupo criminoso estaria insatisfeito com o trabalho do Ministério Público que estaria apreendendo máquinas de caça níqueis e prejudicando as fontes financeiras daquele clã, e que teria sido colocada uma bomba no avião visando a tirar a vida dos promotores e eventualmente de outros passageiros e que somente eles saberiam a localização correta do artefato e o momento ajustado para a explosão. Eis que surge a polêmica: poderia ou deveria a polícia exercer atos de tortura física ou mental sobre os dois suspeitos com o objetivo de descobrir maiores informações sobre o ato terrorista ou não? Deveria ser evitada a morte dos promotores e dos demais viajantes?

Surgiria a dúvida: mantém-se a dignidade humana dos supostos terroristas, livrando-os de toda sorte de coações e torturas ou obtêm-se forçadamente suas confissões mediante o emprego de atos de tortura física ou mental, como forma de descobrirem-se informações que possam salvar a vida de inocentes?

Só a titulo de amor a discussão, vale relembrar o que ocorreu no ano de 1978, quando Aldo Moro, antigo primeiro ministro da Itália, foi seqüestrado por um grupo terrorista que ameaçava matá-lo.

Um dos supostos autores do sequestro foi detido e se questionou á época, sobre a possibilidade de torturá-lo com vistas a obtenção de informações sobre Aldo Moro.

Como relatado nos documentos do caso, um investigador do serviço de inteligência italiano propôs ao general Carlo della Chiesa, que acaso fosse torturado o suspeito, possivelmente poderiam ser obtidas informações sobre a vida do sequestrado.

Todavia, citado general italiano teria repelido tal sugestão, argumentando que a Itália poderia sobreviver a perda de Aldo Moro, mas não poderia sobreviver o pais com a introdução e aceitação da tortura. Finalmente, sem ter ocorrido a tortura ao sequestrador, Aldo Moro foi assassinado pelos terroristas25.

Deixa-se a pergunta: poderia ter sido evitada as mortes de Aldo Moro e tantas outras vítimas se acaso tivesse sido os seus respectivos sequestradores coagidos através de atos de tortura a confessar os locais de cativeiro?

 

c) O uso da tortura como forma de causa de justificação penal

Quando se trata do tema referente a utilização de atos de tortura como forma de se evitar a morte de pessoas inocentes, surgem obrigatoriamente dois temas relativos as causas de justificação penal: a legitima defesa de terceiros e o estado de necessidade.

A primeira causa de exclusão da antijuridicidade refere-se ao estado de necessidade justificante.

Através da expressão “estado de necessidade” se designam os casos excepcionais em que a única forma que possui o Estado de salvaguardar um interesse maior ameaçado por um perigo grave e iminente é, de momento, autorizar ao cidadão a sacrificar outro bem de menor valor.

Desse modo, temos que atualmente a doutrina majoritária (Zaffaroni, Jescheck, Mir Puig, Muñoz Conde), admite como fundamento para o estado de necessidade justificante, a preservação do interesse predominante.

Dito de outro modo, em realidade, dois bens ou interesses tutelados pelo Estado se encontram em conflito: o do necessitado e de um terceiro inocente. Um deles deverá prevalecer.

O grande dilema que se apresenta sobre o tema consiste no fato de que o estado de necessidade contém uma regra imprescindível e perigosa, se acaso não interpretada de modo adequado. Graças a ela não se poderá produzir nunca o desatino de que se condene a alguém que tenha realizado algo que o próprio ordenamento considera adequado, porque evitaria um mal maior. É um recurso imprescindível para um sistema jurídico com conflitos ilimitados, porém, com disposições limitadas. Assim, permite dar uma solução adequada a ações tão intuitivamente corretas como causar danos a uma propriedade alheia para salvar a vida de alguém.

De outra parte, é uma regra que a priori parece autorizar ações tão intuitivamente incorretas como extrair um rim de uma pessoa sadia contra a sua vontade para transplantá-lo em outra pessoa que necessita desse órgão imperiosamente para salvar sua vida. Ou mais, torturar a um preso para obter uma confissão que permita evitar um sangrento atentado terrorista26.

Com relação a este último exemplo, deverá ser destacado que determinado setor da doutrina estrangeira, notadamente a norte-americana (leia-se, Cohan, Ignatieff, Parry/White), bem como Tribunal Supremo de Israel, propõem a aplicação da excludente do estado de necessidade àquelas hipóteses em que somente seria possível evitar um ataque terrorista (catastrófico e iminente), utilizando-se da tortura, ou seja, naqueles casos relacionados com a teoria da ticking bomb.

Tal entendimento tem como fundamento o fato de que o dano causado pela morte de várias (podem ser centenas ou milhares) pessoas inocentes seria muitíssimo superior ao dano provocado pelo uso da tortura contra a suposta pessoa que contenha informações que possam evitar o atentado terrorista.

Porém, a nosso modo de ver, a questão não se apresenta como de fácil resolução, partindo do pressuposto de que o estado de necessidade não se dirige a “salvar o bem mais valioso”, senão que visa resolver o conflito surgido com a menor perturbação possível do status quo, ou seja, das condições preexistentes na sociedade antes da aparição daquele27.

Como conclusão lógica, seria possível afirmar que a aplicação da excludente do estado de necessidade como forma de justificativa para atos de tortura contra pessoas envolvidas com tramas terroristas, não passa de uma falácia defendida por uma minoritária parte da doutrina penal, não sendo apta a ser considerada como dogmaticamente correta.

Nesse sentido, como acertadamente nos recorda Molina Fernández, seria necessário refinar o modo em que se realiza a ponderação de interesses no estado de necessidade, mostrando que o que poderia ser considerado aparentemente como um mal menor, pode ser em certas ocasiões um mal extremamente maior quando se valora tudo que se estaria em jogo, e não somente os interesses mais conspícuos do conflito. Esta situação de reflete sobremaneira no caso da tortura. O argumento da “necessidade” foi invocado sistematicamente pelos que a praticam e os resultados sempre tem sido os mesmos. Basta citar o caso recente das torturas levadas a efeito por soltados norte-americanos dentro das prisões de Abu Ghraib ou em Guantánamo, para dar-se conta de que aquilo que em uma análise tosca do conflito pode parecer um mal menor, seria em realidade muito superior ao evitado. Em síntese, ao debilitar de forma notória a luta geral contra a tortura, esses atos provocaram efeitos nocivos muito superiores aos seguramente exíguos benefícios que se haja obtido com a confissão dos torturados28.

Aceita a tese do estado de necessidade, poder-se-ia estar incentivando o uso desmesurado e abusivo dessa causa de justificação legal, deixando que a tortura passasse a vigorar como mais um meio para obtenção de provas.

Afastada a possibilidade de aceitação da excludente do estado de necessidade, torna-se mais complexo o tema da proibição absoluta da tortura. A razão é simples: resta a análise da excludente legal da legítima defesa de terceiros, notadamente no tocante aos casos em que a tortura possa ser utilizada como forma de salvação de vidas de inúmeras vitimas inocentes.

Dentro do tema da legítima defesa, cabe recordar-se que o ataque ou o uso da força devem estar dirigidos contra a mesma pessoa que se defende ou contra um terceiro, ou seja, o que se defende deverá defender-se a si mesmo ou a terceira pessoa e a defesa deve dirigir-se contra o agressor ou contra seus interesses legais29.

Analisando a questão especifica do uso da tortura como forma de obter-se eficiência no combate ao terrorismo, percebe-se que não existem argumentos doutrinários sólidos e incontroversos que venham a demonstrar que a dignidade humana ou a integridade moral de uma pessoa seria um bem de maior relevância que a sua própria vida. Assim, é usual em uma hipótese de tentativa de homicídio, admitir-se ao agredido defender-se de um ataque injusto através do emprego da justificante legal da legítima defesa. E indaga-se: e no caso da tortura, a situação não seria a mesma? Não seria justificável o ato de tortura como forma de atuação permeada pela legítima defesa de terceiros ou legítima defesa coletiva?

Em nossa opinião, embora o tema seja discutível e objeto de inúmeras posições dogmáticas, nos parece mais acertado partir do pressuposto de que as democracias limitam os poderes que os governos podem justificadamente exercerem sobre os seres humanos que governam. Ocorre que essas limitações incluem uma proibição absoluta de submeter as pessoas a qualquer forma de sofrimento que venham a macular a sua dignidade, seu status libertatis de cidadão.

Considerar-se a aplicação da tortura em casos excepcionais, submetidos a discricionariedade do ser humano, o qual possui vícios, defeitos e qualidades, é fomentar a perda de uma das características mais importantes do Estado frente ao processo penal contemporâneo marcado pelo viés garantista: no processo justo, eficiente e respeitoso com os direitos e garantias fundamentais do sujeito submetido a persecução penal, deverá o Estado na obtenção da prova, “jogar limpo”, evitando-se o massacre das disposições constitucionais.

O uso da tortura, mesmo aceitando como razoáveis as considerações feitas por alguns estudiosos, em especialmente aqueles que aceitam a justificativa da legítima defesa de terceiros ou coletiva30, nos parece algo contrário ao pensamento garantista que deve permear a atuação da justiça penal moderna. Mesmo tendo ciência de que a adoção de uma decisão pelas autoridades competentes, como no citado exemplo da bomba colocada no avião dos promotores, é ato sumamente delicado e dificultoso, não se poderia aceitar a institucionalização desse meio doloroso de obtenção de uma confissão, sob pena de ocorrência de torturas equivocadas, desnecessárias e arbitrárias.

 

IV. Conclusões.

Ainda que se considere o terrorismo como uma forma diferenciada de violência, perpetrada por grupos organizados que visam com esses atos à obtenção da imposição de suas posições ideológicas ou até mesmo hierárquicas, deverá o tema ser tratado com o cuidado que merece todo assunto que envolve a eventual exposição e privação dos direitos e garantias fundamentais do cidadão, mesmo em se tratando de terroristas sangrentos.

É cediço que a tortura é utilizada no mundo moderno, mais precisamente no mundo policial para obtenção de informações que possam levar a elucidação de alguns crimes. Mas pergunta-se: seria aceitável a tortura como forma de se descobrir o modus operandi de algumas pessoas envolvidas em furtos em supermercados de uma determinada cidade? E já, na hipótese de um sequestro de uma pessoa, com vistas a obter a confissão acerca do local do cativeiro?

Mesmo em se tratando de hipóteses absurdamente distintas, não podemos aceitar a institucionalização deste “meio de prova e de informações”.

Não seria da mesma forma aceitáveis as teses de um estado de necessidade ou de legítima defesa de terceiros por parte dos torturadores.

Preferimos lutar pela preservação do Estado Constitucional de Direito, confiando na idéia de que é possível minimizar a tensão existente entre os vetores da liberdade e da segurança (garantias versus eficácia). Bastaria com idealizarmos um processo penal do equilíbrio, conciliando-se tanto a necessidade do ius puniendi estatal bem como a imperiosa preservação dos direitos e garantias fundamentais do cidadão.

 

1 Para um estudo profundo do tema, vid., ALCAÍDE FERNÁNDEZ, Joaquin: Las actividades terroristas ante el Derecho internacional contemporáneo, Madrid, 2000; BUENO ARÚS, Francisco, Terrorismo: algunas cuestiones pendientes, Valencia, 2009; CAMPO, Salustiano del: Terrorismo internacional, Madrid, 1984; CARRASCO JIMÉNEZ, Pedro: Análisis masivo de datos y contraterrorismo, Valencia, 2009; EBILE NSEFUM, Joaquin: El delito de terrorismo. Su concepto, Madrid, 1985; HINOJOSA MARTÍNEZ, Luis: La financiación del terrorismo y las Naciones Unidas, Madrid, 2008; LÓPEZ CALERA, Nicolás: El concepto de terrorismo, Anuario de Filosofía del Derecho, 2002, págs. 51 y ss; LÓPEZ GARRIDO, Diego: Terrorismo, política y derecho, Madrid, 1987; OLÁSOLO ALONSO, Héctor y PÉREZ CEPEDA, Ana Isabel: Terrorismo internacional y conflicto armado, Valencia, 2008; OLIVEROS, Martha: El terrorismo y la responsabilidad internacional del Estado, Buenos Aires, 1988; TOWNSHEND, Charles: Terrorismo. Una breve introducción, Madrid, 2002; WILKINSON, Paul, Terrorismo político, Madrid, 1976.

2 Tal conclusão já exclui de antemão os ataques cotidianos ocorridos em países que se encontram em meio a uma guerra civil, como o exemplo de alguns países africanos, nos quais o elemento democracia já não mais se pode ser observado. Em tal situação de total descontrole, ao nosso modo de ver, não se trataria puramente de atos terroristas, mas sim de um estado de beligerância desprovido de qualquer objetivo coordenado e fundado em uma meta política.

3 PORTILLA CONTRERAS, Guillermo: “Terrorismo de Estado: Los grupos antiterroristas de liberación”, Livro homenagem ao professor Marino Barbero, Cuenca, 2001, pág. 911.

4 Vid., GONZÁLEZ CUSSAC, José: “El derecho penal frente al terrorismo. Cuestiones y perspectivas”, VV.AA., Terrorismo y proceso penal acusatorio, Valencia, 2006, pág. 71.

5 Cite-se o exemplo da atuação do ETA, que se apresenta como um grupo que pratica o terrorismo como meio de alcançar a independência da região do País Basco (Euskal Herria), de Espanha e França. O ETA possui ideologia separatista/independentista marxistaleninista e revolucionária

6 Vid., para maiores detalhes, RESENDE PANIAGO, P. T: “O desafio do Terrorismo Internacional”, Revista Brasileira de Inteligência, núm. 4, Brasília, 2007, págs. 35 e ss.

7 Vid., BECK, U: Sobre el terrorismo y la guerra, Barcelona, 2003.

8 Sobre o tema, a magnífica obra de BECK, U: La sociedad del riego mundial. En busca de la seguridad perdida, Barcelona, 2008.

9 Nesse sentido, “As tríplices fronteiras Brasil-Colômbia-Venezuela e Brasil-Colômbia-Peru são motivo de especial atenção pelos constantes deslocamentos do grupo conhecido como Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) que poderão utilizar-se de território brasileiro (região da floresta Amazônica) para a montagem de bases de guerrilha contra o Exército Colombiano e Forças dos EUA envolvidas no Plano Colômbia. No caso da tríplice fronteira Brasil-Argentina-Paraguai cujo ponto de intersecção é a cidade de Foz do Iguaçu no Paraná, constitui-se num elemento de preocupação de autoridades brasileiras pois lá residem aproximadamente 15 mil imigrantes de origem árabe-palestina e dentre estes, não está descartada a hipótese da presença de militantes e simpatizantes de organizações extremistas islâmicas e de grupos palestinos contrários aos acordos de paz israel-palestina”. Vid., WOLOSZYN, A. L., “Aspectos gerais e criminais do terrorismo e a situação do Brasil”, www.defesanet.com.br.

10 HINOJOSA MARTÍNEZ, L. M: La financiación del terrorismo y las Naciones Unidas, Madrid, 2008, pág. 34.

11 Em palavras de MARTÍNEZ BURGOS e PETROSELLI, “El terrorismo constituye un fenómeno en constante crecimiento que no respeta ningún tipo de fronteras geográficas, ideológicas o culturales”. Vid., MARTÍNEZ BURGOS, M; PETROSELLI, V., “Estrategias de Investigación en Terrorismo: Aspectos Probatorios y Cuestiones Prácticas en Investigaciones Complejas”, Seminario sobre terrorismo y derechos humanos, Cartagena de las Indias, Colombia, maio de 2006.

12 Trata-se de um organismo de natureza intergovernamental e multidisciplinar criado em 1989 com a finalidade de desenvolver uma estratégia global de prevenção e de combate a lavagem de capitais e, desde Outubro de 2001, também contra o financiamento do terrorismo, sendo reconhecido a nível internacional como a entidade que define os padrões nesta matéria.

13 Com mais detalhes sobre as recomendações do GAFI e GAFISUD, vid: http://www.felaban.com/lavado/cap2/recomendaciones_espec_gafi_gafisud.pdf.

14 Para um completo estudo, vide dentro outros trabalhos, APONTE CARDONA, A., Guerra y Derecho Penal del enemigo, Bogotá, 2006; DEL VALLE, C. P., “Sobre los orígenes del Derecho penal del enemigo. Algunas reflexiones en torno a Hobbes y Rousseau”, Cuadernos de Política Criminal, núm. 75, Madrid, 2001; DONINI, M., “El derecho penal frente al enemigo”, VV.AA., Derecho penal del enemigo, M. Cancio Meliá; C. Gómez-Jara Díez coords., Madrid, 2006; FARALDO CABANA, P., “Un derecho penal de enemigos para los integrantes de organizaciones criminales: la ley orgánica 7/2003, de 30 de junio, de medidas de reforma para el cumplimiento íntegro y efectivo de las penas”, Política criminal y sistema penal, Iñaki Rivera Beiras coord. Barcelona, 2005; SCHÜNEMANN, B., “Derecho penal del enemigo: crítica a las insoportables tendencias erosivas en la realidad de la administración de justicia penal y de su insoportable desatención teórica”, VV.AA., Derecho Penal del Enemigo, M. Cancio Meliá y C. Gómez-Jara Díez coords., Madrid, 2006.

15 GRECO, L., “Las reglas detrás de la excepción. Reflexiones respecto de la tortura en los grupos de casos de las Ticking time bombs”, Revista InDret, Barcelona, abril de 2007, www.indret.com.

16 FERRAJOLI, L., apresentação da obra “Privación de la libertad y derechos humanos. La tortura y otras formas de violencia institucional en el Estado español”, coordenada por Iñaki Rivera e Francisca Cano, Barcelona, 2008.

17 Chegou-se ao absurdo de presenciarmos a confissão da CIA, agência de inteligência do governo norte-americano, sobre a realização de voos secretos para a Europa, levando terroristas presos em Guantánamo e que se negavam a cooperar com as autoridades americanas. Para um estudo completo sobre o assunto, vid., COSTA PINTO, R., Voos “Secretos” CIA. Nos Bastidores da Vergonha, Lisboa, 2008. A nosso ver, a CIA não poderia ter utilizado o território europeu para operações que violaram os direitos humanos e a lei internacional. Teriam sido também vergonhosas as omissões perpetradas por alguns governos de paises europeus, ao permitirem escalas desses voos em seus territorios, mesmo sabendo que se tratava de transporte ilegal de presos por atos de terrorismo.

18 Vid., com mais detalhes, AMBOS, K., El derecho penal frente a amenazas extremas, Cuadernos Luis Jiménez de Asúa, núm. 34, Madrid, 2007, págs. 81 e ss.

19 No intuito de compreender a total desqualificação daquelas pessoas presas nessa base naval, vid., SMITH, C. S., The Eight O’Clock Ferry to the Windward Side: Fighting the Lawless World of Guantanamo Bay, New York, 2007; DEUTSCHMANN, D; RICARDO, R., Guantanamo: A Critical History of the Us Base in Cuba, Melbourne, 2008. Todavía, importante esclarecer que após a assunção de Barak Obama junto ao governo norte-americano, iniciou-se um projeto de aceleração de retirada daqueles presos que se encontravam em Guantánamo, destinando-os a outros locais para posterior julgamento.

20 O que mais chama a atenção nesse episódio é que restou clara a distinção entre a tortura preventiva (administrativa), com vista a obtenção de informações para prevenir a comissão de outros delitos; e a tortura repressiva, ou seja, aquela encaminhada a obtenção de provas para o processo penal.

21 Para a obtenção de mais informações sobre o tema, vid., DE LA CUESTA ARZAMENDI, J. L., “¿Justificación de la tortura? Insuficiencias de la normativa penal internacional”, Criminología y Derecho penal al servicio de la persona, Libro homenaje al Profesor Antonio Beristain, 1989, pág. 702 y ss.

22 Vid., Public Commitee Against Torture v. Israel, de 06 de setembro de 1999.

23 MOLINA FERNÁNDEZ, F., “Terrorismo y derechos fundamentales: la perspectiva penal”, VV.AA., Terrorismo y derechos fundamentales, Madrid, 2010, págs. 105-106.

24 Nesse sentido, vid., GRECO, L., “Las reglas detrás de la excepción. Reflexiones respecto de la tortura en los grupos de casos de las Ticking time bombs”, cit.

25 Para mais detalhes, vid., LLOBET ANGLÍ, M., “¿Es posible torturar en legítima defensa de terceros”, Revista InDret, julho de 2010, www.indret.com.

26 Nesse sentido, vid., MOLINA FERNÁNDEZ, F., “La ponderación de intereses en situaciones de necesidad extrema: ¿Es justificable la tortura?”, La respuesta del Derecho Penal ante los nuevos retos, Madrid, 2005, pág. 268-269.

27 Esse inclusive é o posicionamento assumido por SILVA SÁNCHEZ, J. Mª., “Sobre o estado de necesidad en el Derecho penal español”, Anuario de Derecho Penal y Ciências Penales, fascículo III, pág. 665.

28 MOLINA FERNÁNDEZ, F., “Terrorismo y derechos fundamentales: la perspectiva penal”, cit., págs. 109-110.

29 AMBOS, K., Terrorismo, tortura y Derecho penal. Respuestas em situaciones de emergencia, Barcelona, 2009, pág. 40.

30 Cite-se o exemplo do brilhante trabalho de LLOBET ANGLÍ, M., “¿Es posible torturar en legítima defensa de terceros”, Revista InDret, julho de 2010, www.indret.com.

 

Flavio Cardoso Pereira

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