A inveja como fundamento e motivação do ‘delito’ de assédio moral

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Autora: Suzana J. de Oliveira Carmo
Funcionária Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Especialista em Direito Constitucional pela Escola Superior de Direito Constitucional – ESDC/SP e, em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo -PUC/SP., pós-graduada em Semiótica Psicanalítica – Clínica da Cultura, também pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo -PUC/SP.
 
Trabalho elaborado em outubro/2006
 
                   Quando nos perguntamos com que constância o assédio moral se desenvolve nas relações sociais, em especial, no ambiente de trabalho, tal indagação nos remete a uma peculiaridade pouco desenvolvida dentro de seu contexto, que é a questão da inveja.
                   Sim, neste trabalho estaremos tratando da pior das paixões humanas, e de sua incidência evidente sobre o instituto jurídico do ‘Assédio Moral’.
                   Ao tratarmos de assédio moral, a primeira observação que necessariamente deva ser feita, é a de que estamos lidando com uma violência sutil. Sim, muitas das vezes, tão sutil que se torna quase imperceptível ao mundo que rodeia a vítima. No Brasil, a tortura psicológica ou psico-terror, como também é denominado, tem feito do assédio moral um problema em evolução e propagação; podendo ser verificado em quase todos os setores da sociedade, conseqüentemente, alcançando sujeitos de todas as classes sociais.
                   Estando dentro da órbita da problemática mundial, pois, segundo a União Geral dos Trabalhadores portuguesa, em uma pesquisa realizada no âmbito da União Européia, em 1996, constatou que 8% dos trabalhadores sofriam, especifica e comprovadamente, dentro do ambiente de trabalho intimidações e coação moral.
                   A intimidação e a coação guarnecem o transgressor, torna-se uma justificativa, um o disfarce hábil, ou melhor, um álibi: “Estou mantendo a ordem”. Utilizando-se de práticas perversas e arrogantes, a estratégia da humilhação empreendida pelo transgressor constitui um risco invisível.A vítima gradativa e simultaneamente, vai perdendo sua autoconfiança e o interesse pelo trabalho; isola-se da família e amigos, passando muitas vezes a usar drogas, principalmente o álcool. E, é nesta fase do processo, que se origina a depressão, angustia, distúrbios do sono, conflitos internos e sentimentos confusos, até onde, vê-se forçada a pedir demissão.[1]
                         Segundo Margarida Barreto, médica especialista no trato dos efeitos do assédio moral, e pesquisadora do Departamento de Psicologia da PUC-SP, afirma que, o problema hoje, pode ser considerado uma questão de saúde pública.Tendo se dedicado ao estudo minucioso do assunto, sua pesquisa resultou em números assombrosos, e, bastante temerosos, principalmente, na vida laboral. Com um resumido quadro sinótico, intitulado por Margarida Barreto como: “Raio X da Violência Moral”[2], expôs o resultado de sua investigação. Assim, após haver consultado 42.000 trabalhadores em todo o País, sendo 2.072 trabalhadores de 97 empresas do estado de São Paulo, e, deste grupo, 10.000 afirmaram haver experimentado repetidas vezes, situações intencionalmente provocadas: humilhação, embaraço, coação…Ou seja, reconheceram prontamente a tipicidade da conduta descrita pelo assédio moral, na seguinte proporção:
 
Quando acontece?
 
Quem pratica?
Qual o Resultado?
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
50% varias vezes por semana ->
90% o Chefe   ->
82,5% Falta de ânimo e perda de memória
27% Uma vez por semana ->
6% os Colegas ->
75% Sensação de enlouquecimento
14% uma vez por mês   ->
2,5% os Colegas ->
67,5% Baixa auto-estima
 
9% Raramente
 ->
1,5% Subordinados ->
60% Depressão
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
                   Contudo, o assédio moral como instituto jurídico, é relativamente novo, sendo inclusive pertinente dizer, que sequer fora classificado adequadamente, se considerarmos como adequado tudo aquilo que possui ou esgota seu real sentido, e, a partir daí, passível de reconhecer-se sua total abrangência. Com raras explanações doutrinárias valorosas sobre o tema, e em face da ausência de legislação específica, nosso trabalho se depara desde logo, com o desafio de introduzir extensões elucidativas, dinamizar seus mecanismos probatórios, evidenciando que para o estudo desta questão, é de suma importância o reconhecimento de segmentos paralelos, proporção indispensável, existente entre o Direito e a Psicanálise. Pois, enquanto o Direito tenta fazer sucumbir ou sancionar seus efeitos; por seu turno, a Psicanálise nomeia e desenvolve um trabalho “curativo” de suas causas.
                   Dos textos dos poucos jurisconsultos que abordaram o tema, percebemos haver uma complexidade permeando a matéria, como dito, a começar por sua definição, ou melhor, tipificação. Mencionamos tipificação, porque compactuamos dos argumentos daqueles que colocam a questão sob égide da matéria penal, entendendo o assédio moral como figura de tipo delitivo, ou seja, como mais um crime contra a pessoa, posto que, expõe a perigo ou lesa bem juridicamente tutelado, que em sua órbita, é a integridade psíquica do ser. Todavia, há enquadre ou desclassifique a conduta do agressor, lançando-a ao rol daquelas passíveis de tão-somente tornar indene a vítima, o que significa mitigar seus efeitos, ou ainda, afastar do ato comissivo aquele “tom” de gravidade que por si só, lhe é tão peculiar.
                   Preliminarmente, com a finalidade de revestir de familiaridade o instituto do Assédio Moral, nós nos propusemos os seguintes objetivos: nomeá-lo, decifrá-lo e, explica-lo; e porque não dizer, que temos ainda, a pretensão explícita de conceituá-lo juridicamente, desta feita, de forma adequada e abrangente. E, por fim,pretendemos ir além do entendimento de seus efeitos, para então, podermos compreender o caminho que leva o assediador a escolher uma determinada vítima. E, embora, não haja norma jurídica descrevendo o tipo penal, nos parece possível reconhecer o “iter criminis”[3]consumação não exige a realização daquilo que é pretendido pelo agente e o resultado jurídico previsto no tipo ocorre em concomitância com o desenrolar da conduta delitiva, ou seja, independe de haver o resultado quisto pelo agente se produzido ou não. , ou seja, o itinerário e o liame havido entre eles. Noutras palavras, não restará difícil apurar o nexo causal que liga o resultado em sentido “lato-sensu” à conduta dolosa do agente. Falamos em resultado em sentido amplo, porque este não seria um crime material, cuja consumação exige que se produza o resultado; o crime de assédio moral configura um crime formal, cuja
                   E aqui, não devemos confundir o crime consumado com o exaurido, posto que, no exaurido, após a consumação, que ocorre quando estiver preenchido no fato concreto o tipo objetivo; o agente o leva a conseqüências mais lesivas. No caso do assédio moral, o ‘psico-terror’ criado pelo agente é suficiente para caracterizar a conduta, sendo irrelevante o grau ou intensidade da reação psicológica produzida na vítima, salvo para poder-se esboçar a figura qualificada, onde a lei agrega circunstâncias ao tipo básico de modo a torná-lo mais grave, ou ainda, para apurar-se valores indenizatórios, pois, na órbita civil, é pertinente falar-se em proporções do dano causado, sendo ilícito pleitear valor que exorbite àquele efetivamente suportado pelo indivíduo.
                   Ressaltados estes aspectos, convém a nós em primeiro plano compreender essencialmente o que pode ou não, ser caracterizado como Assédio. Assédio: verbo transitivo direto, que indica ação/processo e, que tem como sujeito um agente causativo; sua origem remonta o século XVII, derivando do italiano “assediare” , que recompôs o latim “adsedere”, e, hipoteticamente, possa ser traduzido em: “por em sítio” ou sitiar. Assédio teve seu sentido literal esmiuçado por nós através de consultas feitas a inúmeros dicionários[4] da língua portuguesa, onde pudemos apurar seu sentido denotativo: perseguir, importunar, pôr em cerco, inserir temores, molestar com pretensões repetitivas, impertinência insistente, sitiar para assalto, afligir moralmente com observações, perguntas, pedidos ou propostas.
                   Antes, porém, de tecermos um conceito ou uma definição à moral (conjunto de costumes que ordena a conduta do homem, corpo de preceitos naturais ou tradicionais, para dirigir as suas ações), ou melhor, ao moral (designa um conjunto de funções psíquicas, e o nível de tonicidade das forças de inteligência, que podem levar o estado de ânimo oscilar entre a depressão profunda ou a confiança plena), temos que justamente fazer uma separação, e, portanto, devemos discernir qual é o objeto de nosso estudo, e ainda, à que questão o assédio se relaciona. Notadamente, não estamos tratando de uma questão adstrita à moralidade, porque esta quase se confunde com questões éticas, instituídas pelos costumes exercitados na vida comum, social. Notadamente, existe “um padrão” objetivo e idealizado à condução social, àquela exteriorização de comportamento que devemos empreender; comportamento esperado e desejado, porém, sendo quase sempre se mostra como o resultado de um adestramento social ou religioso. E, é sob este aspecto que a ética se aproxima da moralidade, porque inúmeras vezes nos pairam dúvidas se em determinado momento, esperamos de alguém ou de um grupo uma conduta: “normatizada pelos costumes” ou “idealizada através de doutrinas religiosas”.
                   Assim, de pronto, surge-nos uma dúvida: Esperamos do “outro” um comportamento ético ou moral? A ética se exterioriza, e, talvez, possa ser definida como o reflexo da moral, posto que, esta sim, é intrínseca e introspectiva. O termo moral é derivado do latim “morale, sendo que, a moralidade nos reveste de valores, enquanto a ética nos investe de padrões. Mas, de qualquer modo, nenhum de nós pode com veemência assegurar se alguém está ou não, imbuído por valores morais. Contudo, é possível verificar se este mesmo alguém possui um comportamento ético, apesar do segredo permanentemente mantido quanto à sua moralidade.
                   Em suma, a ética descreve o “ideal” do homem socializado, e, é por isto, é uma diretriz normativa ante os costumes, ou seja, preceitua os padrões de um comportamento esperado ou desejado por todos. Já a moral, revela o “real”, e, por seu turno, doutrinariamente, retrata a maneira pela qual de fato nos comportamos, e quando existente, está sempre subordinada a uma ordenação divina, ou, ao temor reverencial. Reiteramos, a moral é uma ordem que emana do sobrenatural (Deus), podendo ou não, ser obedecida. Noutras palavras, pode ou não, estar presente em nossas atitudes. Juridicamente, seria possível correlaciona-las aos padrões kelsenianos, em que: moral é o que é (sentimentos, costumes, caráter = evolução emocional e instintiva – faz o indivíduo ser bom ou mau), enquanto a ética descreve o que deve ser (hábitos, leis, práxis = evolução social e psicológica – faz o indivíduo comportar-se bem ou mal).
                   Todavia, sucintamente sublinhadas as diferenciações havidas entre a ética e a moral, a órbita em que se circunscreve o assédio é a do moral, aquele juízo pessoal de valor, razão pela qual, tão estreitamente ligado à auto-estima. O moral diz respeito ao ânimo ou à disposição psíquica, o que sugere sempre um estado de espírito capaz de influenciar a qualidade e a extensão da vida humana.
                   Portanto, o Assédio Moral, quando visto por este prisma, torna-se mais evidente nas relações de trabalho, em que haja, principalmente, subordinação hierárquica. Representa uma violência externa, que nos alcança através da conduta deliberada e de índole delitiva de determinado indivíduo, que tem como único objetivo: destruir, desestruturar, decompor e desintegralizar a vítima.
                   Consciente, e alimentado por um sentimento de vingança advindo do imaginário, o assediador é impulsionado pela certeza silenciosa da sua incapacidade, sendo que esta certeza, o leva à escolha da vítima. Notadamente, a vítima eleita será aquela que dentre todos os que compartilham de seu grupo social, familiar, acadêmico ou laboral, sob sua ótica e juízo de valor, se mostre a mais completa e admirável. Sim, o crime de assédio se fundamenta na “inveja”, e esta se origina de uma admiração desenfreada, e, surge quando o agressor se conscientiza de que a “vítima” revela tudo aquilo que conscientemente ele gostaria de ser ou ter, ou, porque possui virtudes, vantagens pessoais e dons, que ele, o agressor, sabe não possuir, e ainda, tem ciência inequívoca de que não tem qualquer aptidão, capacidade ou desenvoltura intelectual para conquistá-las, e de tal modo, assemelhar-se à vítima. Sim, é preciso ressaltar que, há desde logo, para o agressor, esta consciência valia e avaliação do universo de valores que circunda a vítima.
                   Esta conclusão nos é trazida, quando observados os caminhos trilhados pelo agressor, e o estereótipo das vítimas, bem como, a maneira pela qual as agressões progridem e a constância com que se reiteram. No caso específico do ambiente de trabalho, ressalta-nos quase óbvio, ante três simples indagações: O que levaria alguém, que em posição hierarquicamente superior, conseqüentemente, em condição econômica mais privilegiada, a perseguir e sitiar um subalterno? E por que, em 90% dos casos, o subordinado perseguido é o mais qualificado, quase sempre, o mais competente, aquele intelectualmente mais habilitado ao desenvolvimento satisfatório do trabalho? Por fim, por que, na maioria das vezes, verifica-se que a vítima possui capacidade técnica ou beleza física, superiores às encontradas no agressor?
                   Surge-nos de pronto a resposta: Inveja. E, embora nos parece um argumento frágil e descabido, a casuísta aponta, que a inveja é o fundamento de inúmeros casos de assédio moral ocorridos no ambiente de trabalho.
                   Adentraremos, nesta ordem, à figura do agressor. Quem é este sujeito de face oculta, este mascarado que encena papeis, que agride constante e impiedosamente sua vítima, sem que as pessoas à sua volta percebam? É o invejoso! É aquele que segundo Ovídio: “[…] habita no fundo do vale onde jamais se vê o sol […] Assiste com despeito aos sucessos dos homens e este espetáculo o corrói”. A inveja é o mais repudiado dos pecados capitais, a mais antiga e devastadora das paixões humanas, cujo primeiro exemplo remonta a Caím e Abel.
                   Decerto, a inveja, é o mais aniquilador dos instintos do homem. Falamos em instinto, porque a inveja retira do ser sua racionalidade, quando seu único desejo é a destruição daquilo que lhe parece bom e melhor, do que ele mesmo, ou, do que possui. Logo, estaremos profundamente equivocados, se acreditarmos que inveja tem como objeto exclusivo o rol cabível aos bens materiais, não, ao contrário, são os bens imateriais os mais visados, ainda mais, aqueles fora do comércio, impassíveis de serem adquiridos, ou seja, atributo físico e psíquico. Compondo par com a rivalidade e competitividade, a inveja traz à tona do indivíduo, primeiramente, um profundo desprezo pessoal, como se não houvesse nada admirável em si, e como se não houvesse espaço para subsistência de dois ou mais valores concomitantes, ou seja, ele e a vítima. Talvez, o invejoso empregue a si o uso extremado das palavras “eu não”. Eu não sou, eu não tenho, eu não posso, eu não consigo. Daí surge um outro chavão costumeiramente utilizado: “eu vou”. Eu vou humilhar, eu vou ofender, eu vou menosprezar, eu vou desdenhar, por fim, eu vou destruir.
                   A inveja é o mais humano dos sentimentos, tão antigo quanto a existência do homem. Tanto que, na Divina Comédia, retratada com detalhes por Dante Alighieri, dentre as expiações sofridas entre o purgatório[5] e o inferno, há aos invejosos um lugar de destaque, e autor os penaliza com castigo extremado, superior aos dos demais pecadores.
                   Houaiss e Villar, definem a inveja como um sentimento dual, que traz em si: ódio e desgosto. Sendo provocado pela felicidade e/ou prosperidade de outrem, ou ainda, como o desejo irrefreável de possuir ou gozar, em caráter exclusivo, o que é possuído ou gozado por outrem.[6] E, é por esta via de acesso, que o invejoso, ou seja, o agressor no delito de assédio, se sente plenamente inimputável, primeiro, porque, por ora, não existe na órbita jurídica, nenhuma efetividade capaz de refrear sua conduta, e, embora, já haja normas[7] que versam sobre o tema, as sanções possuem caráter administrativo, e se restringem à advertência disciplinar. E, em segundo, por acreditar que, está simplesmente fazendo justiça para consigo mesmo. Sim, é justamente isto, o agente ativo, está seguro de que há uma autorização “implícita” da sociedade, que o autoriza a esta vingança privada contra àquele que descortina, muitas das vezes, através da simples presença: suas frustrações, sua incompetência, seus fracassos pessoais, enfim, sua baixa-estima. Noutras palavras, para toda esta insatisfação pessoal existe um culpado, e deve, portanto, ser punido, eis o surgimento da vítima.
                   Decerto, a vítima põe à mostra do agressor tudo aquilo que ele não é, porém, fervorosamente, gostaria de ser. Esta representatividade da vítima ao agressor é o que estipula e direciona seu critério de escolha. Ela é a imagética que desencadeia no agressor este desgosto por si, razão pela qual, o delito tem no sujeito passivo uma pessoa diferenciada, não é um crime comum, exige algumas qualidades, potencialidades ou especialidades da vítima. Conquanto, é possível assegurar que, agressor e vítima são antagônicos, se analisados pelos critérios básicos: personalidade, tipo físico, caráter, habilidades, temperamento, etc.
                   Sabidamente, todo ser é único, e a personalidade é algo que não se repete, porque resulta do desenvolvimento dos caracteres originários, somados às experiências pessoais, e estas se esculpem ou se modelam, sob a incidência influente da sociedade. Contudo, algumas características são comuns aos seres humanos, digamos que não é possível repetir-se a combinação, mas, é passível de se destacar alguns diferenciadores, e estes sim, são comuns.
                   Para Ralph Linton, muitas podem ser as definições descritivas feitas ao “objeto” ou “fenômeno” chamado sociedade. Contudo, afirma que, uma definição simples; feita em linguagem comum, pode ser tão substancial quanto qualquer outra. E, dentro desta concepção simplista Linton descreve:
 
“Sociedade é todo grupo de pessoas que vivem e trabalham juntas durante um período de tempo suficientemente longo para se organizarem e para se considerarem como formando uma unidade social, com limites bem definidos”.[8] E acrescenta: A sociedade é um grupo de indivíduos, biologicamente distintos e autônomos, que pelas suas acomodações psicológicas e de comportamento se tornaram necessários uns aos outros, sem eliminar sua individualidade. Toda vida em sociedade é um compromisso e tem a indeterminação e a instabilidade própria das situações desta natureza”.[9]
 
                   E no que concerne a ponto de vista jurídico, Carnelutti nos lembra que o primeiro princípio que deve ser observado pelo o direito é aquele capaz de reconhecer nossas distinções. Sim, as distinções que existem em cada um de nós, bem como em todos os outros indivíduos, considerando que, tanto nós como eles, somos elementos de um mesmo grupo, e ainda, que este “grupo humano” compõe a sociedade. Assim, ainda que num dado momento, a avaliação possa ser meramente física, no entanto, para a ciência jurídica deva sempre se estender, alcançando outras diferenças, ou seja, aquelas de ordem psíquicas e psicológicas, e, neste contexto, estão os caracteres de nossa personalidade. Assim, preleciona Carnelutti, in verbis:
 
“Partir do princípio de que os homens são diferentes entre si: uns mais fortes que outros, uns mais jovens que outros, uns mais inteligentes que outros, uns mais bonitos que outros, uns mais bons (Sic) que outros; nunca é idêntica a medida do mais ou do menos. Há entre eles, ainda nas sociedades primitivas, indivíduos privilegiados que exercem naturalmente sobre os outros a função de chefe ou cabeça”(líder ou dirigente).[10]
 
                   De sorte, mesmo em organizações primitivas, ou, grupo de animais, há aqueles que se destacam, que sobressaem aos demais, são estas as diferenças que nos individuam sob a ordem da comparação, são as distinções que nos diferenciam, são questões de natureza imutável. Jamais poderemos todos ser os mesmos, este é um ponto incontroverso. Todavia, o agressor delimitado pelo delito de assédio reluta em aceitar esta realidade fática, daí porque, empreende esforços com escopo de liquidar com o objeto de seu desejo. O termo “objeto” trazido da psicanálise, designa qualquer pessoa ou coisa no mundo externo, que tem importância psíquica para o indivíduo.
                          Segundo Melanie Klein, em 1950, em sua obra ‘Inveja e Gratidão’, relaciona a inveja a uma patologia paranóica, e contextualiza a questão através da equação da Inveja: “quanto mais intensa a voracidade, maior a insatisfação, com conseqüente ressentimento, ódio e desejo de atacar o objeto frustrante”. Para Melanie, há um deslocamento da culpa e surge um o indivíduo um desejo de reparação. Assim, a inveja impede a fruição do objeto de seu desejo, porque o sobrepõe um estímulo sugestivo, vontade de destruir a causa frustrante, e, este é o verdadeiro “animus” do agente. [11]
                   Desta forma, para nós, o assédio moral é um crime latente, de atitudes dissimuladas, de intenções pretensamente escondidas, mas, tanto quanto a inveja que o estimula, aflora sinais claros e concretos.
                No assédio moral não há clareza, tampouco, regularidade, no que tange à linha a ser adotada pelo agressor, ocorrendo sob as mais variadas formas de agressão ou abordagem, tais como, aquelas descritas no parágrafo único do artigo Primeiro, da Lei paulista sob nº13.288/02: marcar tarefas com prazos impossíveis; passar alguém de uma área de responsabilidade para funções triviais; tomar crédito de idéias de outros; ignorar ou excluir um funcionário só se dirigindo a ele através de terceiros; sonegar informações de forma insistente; espalhar rumores maliciosos; criticar com persistência; e subestimar esforços.[12]                 
                   A doutrina tem apontado o “Serviço Público”[13] como ‘maior celeiro do assédio moral’. Posto que, suas condições se mostram satisfatórias não só à sua subsistência, mas, principalmente, à sua proliferação. Há que se destacar que, apesar de serem os funcionários públicos concursados, na maioria das vezes, os cargos de direção, chefia e assessoramento (cargos de confiança), são ocupados através do afamado e, já enraizado culturalmente: apadrinhamento, donde se transmutam em, meramente, confiados.[14]
                 E neste sentido, nos vale a afirmativa do ministro João Oreste Dalazen, do Tribunal Superior do Trabalho, no julgamento do RR 100/2001-771-04-00.8, do qual foi relator, em que reproduziu a tese de um especialista sobre o tema, reiterando que, o detentor de cargo de confiança atua em funções: “cujo exercício possa colocar em risco o próprio empreendimento e a própria existência da empresa, seus interesses fundamentais, sua segurança e a ordem essencial ao desenvolvimento de sua atividade”.[15] Ou seja, o “cargo de confiança” requer critério sério de escolha, porque consiste em afiançar o nomeado.[16]
                Todavia, dentro do Serviço Público, é também bastante usual, que tais cargos sejam alcançados através do critério temporal, onde uma mórbida e estática estabilidade é capaz de fazer com que o indivíduo seja agraciado com um cargo hierarquicamente superior, o que, obviamente, não se confunde com mágica, portanto, continua a inexistir competência, capacitação e qualificação técnica.
               Portanto, constata-se que, o setor público se ressente de equilíbrio, ou melhor, de uma correspondência entre preparo e exigência de desempenho. Daí porque, mesmo ocupando um “cargo de confiança”, o agressor deste contexto, tem consciência veemente de que não possui capacitação profissional para mantê-lo, se de repente, vier à prática o disposto no artigo 37, inciso II, da Constituição Federal, que vige para os demais servidores:
A investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo “com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego” […] (aspas nossas)
                  
                   E, por esta razão, qualquer funcionário que desenvolva suas tarefas com habilidade, competência e adequação, mostra-se um risco em potencial, uma ameaça. Tornando-se aquele que, em futuro próximo, pode vir a colocar tudo a perder. O que reitera na mente do agressor o motivo “louvável” de sitia-lo, persegui-lo, aniquila-lo. Em outros termos, por esta ótica, a conduta circunscrita pelo agressor é passível de ser denominada como sendo de autodefesa. Considerações estas, que demonstram que cada vez mais se torna imperativo extirpar: o apadrinhamento[17], o nepotismo[18] e a barganha dos favores sexuais[19], porque estes são males de uma comum e gravosa enfermidade, tão rotineiramente diagnosticada no serviço público.
                   Denominado pela Dra. Margarida Barreto como “Guerra Invisível”, o assédio moral, a nós, vem ser só mais uma vertente expositiva da pior das paixões humanas, que é a inveja. Sendo neste momento inquestionável ou desnecessário classificá-la como vício do caráter humano, ou, como pecado rechaçado por Deus; e tem tão-somente se arvorado em ser, um crime sem pena. De sorte, parece-nos tão pertinente e propício transcrever o argumento convincente de Cristina Líbano Monteiro:
 
Uma lei penal não é um papel de declaração de intenções, mesmo que pareçam boas. Uma lei penal não é uma vaga descrição de condutas que se consideram más ou incorretas. Uma lei penal não é o remédio para cada abuso ou despropósito, para cada deslize dessa misteriosa liberdade humana e muito menos um instrumento de servil seguidismo (sic) do que se faz ‘lá fora’ ".[20]
               
                   Pois bem, o agressor pode ser qualquer um, e a vítima pode ser você.
         
               
 


[1] Aspectos extraídos do contexto geral apresentado por: Danos da humilhação à saúde – disponível no site:
http://www.assediomoral.org/site/assedio/AMdanos.php
 
[2] Fonte: Revista Veja – Edição de 19/7/2005
 
[3]Conjunto de atos preordenados, levados a efeito pelo criminoso, que se inicia com a cogitação e se conclui na consumação do delito. É o roteiro seguido pelo agente na prática do crime. O “iter criminis” divide-se em duas fases: a interna e a externa.
MIRABETE, Júlio Fabbrini, Manual de Direito Penal, São Paulo, Atlas, 1º, v., 4ª ed., 1989, p. 156.
 
[4] BARBOSA, Osmar. Dicionários de Verbos da Língua Portuguesa. São Paulo: Ediouro, s.d.; BORBA, Francisco da Silva (coordenador). Dicionário Gramatical de Verbos, 2ª ed., São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1990; BUENO, Francisco da Silveira. Dicionário Escolar da Língua Portuguesa, 9ª ed., Rio de Janeiro: FENAME, 1975; CARVALHO, J. e PEIXOTO, Vicente. Dicionário da Língua Portuguesa, 20ª ed., Vol. I, São Paulo: Cultural Brasil, 1972; CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982; FERNANDES, Francisco. Dicionário de Sinônimos e Antônimos da Língua Portuguesa. 5ª ed., Porto Alegre: Globo, 1952; LUFT, Celso Pedro. Dicionário Prático de Regência Nominal. 3ª ed., São Paulo: Ática, 1998.
 
[5]Dante narra, em seu grande poema, uma suposta viagem, conduzido do Virgílio, através do inferno, do purgatório e do céu. No Purgatório, são punidos os que pecaram por amor. Primeiro, os que pecaram por erro no objeto do amor (amor de si mesmos, ou soberba; amor do mal alheio ou inveja; amor de vingança).
 
[6] HOUAISS, A. e VILLAR, M.S. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva,2001, p.162.
 
[7] Algumas normas e projetos existentes: Lei nº 13.288 de 10/01/2002 – Dispõe sobre a aplicação de penalidades à prática de "assédio moral" nas dependências da Administração Pública Municipal Direta e Indireta por servidores públicos municipais; Lei 3.671/02 -contra assédio moral de Americana – SP; Lei contra assédio moral de Campinas – SP – Lei nº 11.409, de 04/11/2002; Lei contra assédio moral de Cascavel – PR – Lei nº3.243, de 15/05/2001; Lei contra assédio moral de Guarulhos – SP – Lei nº 358/02; Lei 1.163/00 contra assédio moral de Iracemápolis – SP; Decreto 1.134/01 regulamentação da lei de Iracemápolis – SP; Lei 2.982/01 assédio moral de Jaboticabal – SP; Lei 189/02 -contra assédio moral de Natal – RN; Lei 511/03 -contra assédio moral de São Gabriel do Oeste – MS; Lei 1.078/01 – contra assédio moral de Sidrolândia – MS; Projeto de lei na Câmara Municipal de Amparo – SP; Projeto de lei na Câmara Municipal de Cruzeiro – SP; Projeto de lei na Câmara Municipal de Curitiba – PR; Projeto de lei na Câmara Municipal de Guararema – SP; Projeto de lei na Câmara Municipal de Guaratinguetá – SP; Projeto de lei complementar na Câmara Municipal de Porto Alegre – RS; Projeto de lei na Câmara Municipal de Reserva do Iguaçu – RS; Projeto de lei na Câmara Municipal de Ribeirão Pires – SP; Projeto de lei na Câmara Municipal de São José dos Campos – SP; Projeto de lei na Câmara Municipal de Vitória – ES. Projeto de Lei Federal nº 4742/2001 – Dispondo sobre o crime de assédio moral no trabalho; Projeto de lei federal nº 6.161/2002 – Altera dispositivos da Lei nº 8.666/93 e institui o Cadastro Nacional de Proteção contra a Coação Moral no Emprego; Projeto de lei federal nº 5.972/2001; Projeto de lei federal nº 5.970/2001 -Altera dispositivos do Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943 – Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Dados extraídos do site: <www.assediomoral.org>
 
[8] LINTON, Ralph. O Homem: Uma Introdução à Antropologia. Tradução: Lavínia Vilela. 8ª ed., São Paulo: Martins. 1971. p. 107.
 
[9] Idem Op. Cit. nota 8, p. 123-124.
 
[10] CARNELUTTI, Francesco. Como nasce o Direito. Tradução: Ricardo Rodrigues Gama. 1ª Edição. São Paulo: Russell, 2004. p.18-19.
 
[11] KLEIN, Melanie. Inveja e gratidão e outros trabalhos (1946-1963). Rio de Janeiro: Imago Editora, 1991.
 
[12] Segundo psicoterapeuta francesa, Marie-France Hirigoyen, Autora dos Livros: Assédio Moral – a violência perversa do cotidiano, São Paulo: Editora Bertrand do Brasil, 2000; Mal-estar no trabalho: redefinindo o assédio moral, São Paulo: Editora Bertrand do Brasil, 2002.
 
[13]Sempre que nos referimos ao serviço público, deparamos com um problema generalizado, um mal latente, quase evidente no recebimento da prestação do serviço estatal, que resulta em má qualidade, o que nega cumprimento ao Princípio da Eficiência acrescido pela Emenda Constitucional n. º 19 ao "caput" do artigo 37 da Constituição Federal. Posteriormente, previsto também na legislação infraconstitucional, artigo 22, da Lei 8.078/90 (CDC) – “Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos”.CARMO, Suzana J. de Oliveira. Serviço público: exigência de qualidade e eficiência “versus” adversidades do sistema. Jus Vigilantibus, Vitória, 31 mar. 2004. Disponível em: <http://jusvi.com/doutrinas_e_pecas/ver/1726>. Acesso em: 09 set. 2006.
 
[14] Impertinente, descarado, desavergonhado, atrevido, abusivo.
[15] In Revista Consultor Jurídico, 21 de janeiro de 2005.
 
[16] KANITZ, Stephen. Em vez de contratar um amigo do peito, selecione o melhor e mais qualificado profissional possível para o cargo, independente de conhecê-lo ou não. Para o aprimoramento do serviço público, os cargos de confiança deveriam ser obrigatoriamente ocupados por servidores de carreira, por seu comprometimento com a qualidade, experiência e competência em servir ao público. “Cargos de Desconfiança” – <http://www.kanitz.com.br/veja/desconfianca.asp>
 
[17] É urgente que se normalize o quadro de servidores públicos, mediante concurso limpo, pondo fim ao apadrinhamento, filho legítimo do coronelismo que ainda sobrevive entre nós. Soou a hora de moralizar o setor, reduzindo o provimento de cargos de confiança ao mínimo possível”. In “Fim do Apadrinhamento”. Editorial do Jornal Agora Online, Itabuna/BA, de 30 de outubro de 2006.
 
[18] Resolução nº 07, de 18 de outubro de 2005, moralizadora do Poder Judiciário, especificamente, no que diz respeito ao processo de escolha discricionária, proibindo a prática do nepotismo (nomeações baseadas unicamente no critério do parentesco por consangüinidade ou afinidade).
 
[19] Segundo Rodolfo Pamplona Filho, em verdade, consiste no abuso sexual por chantagem, pois, o agente exige da vítima a prática (e/ou a aceitação) de uma determinada conduta de natureza sexual, com a promessa de ganho de algum benefício (envolve oferecimento de emprego, promessa de ascensão, promoção), cuja concessão dependa da anuência ou recomendação do agente. Justamente em função desta "barganha" de natureza sexual, é que esta forma de instigamento é conhecida como assédio sexual quid pro quo, que quer dizer, literalmente, "isto por aquilo".
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6826>. Acesso em: 30 out. 2006.
 
[20]Assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra  – in (http://jornal.publico.pt/2000/12/17/EspacoPublico/O04.htmDomingo, 17 de Dezembro de 2000)

De Oliveira Carmo Suzana J.

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