A ideologia na solução de lacunas: análise de conflito jurisprudencial

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Sumário: 1. Introdução; 2. O caso em estudo; 3. A admissão das lacunas na concepção sistemática da Ciência do Direito; 4. A ideologia no preenchimento de lacunas; 5. A ideologia dentro do caso em estudo; 6. Considerações finais; 7. Referências Bibliográficas

 

1. Introdução

O presente trabalho deseja fazer análise de uma decisão prolatada pelo STJ em que esteve presente a alegação de lacuna legal, pelo que se entendeu cabível a utilização do artigo 4º da LINDB. A decisão recorrida era proveniente do TJ/RS, reconhecido, junto com os demais TJ de Estados do Sul do Brasil, como emissores de decisões diferenciadas pela escolha ideológica manifesta. Assim, o presente trabalho desejou refletir sobre o significado da admissão de lacunas dentro do sistema jurídico enunciando brevemente as diferenças teóricas sobre o tema, apontando o caminho da teoria tridimensional como paradigma. A seguir se procurou fazer breve reflexão sobre o papel da ideologia na solução de lacunas para enfim verificar a diferença ideológica encontrada nas decisões originária e superior.

2. O caso em estudo

O caso escolhido para estudo sobre questão da ideologia no preenchimento de lacunas é o acórdão prolatado pelo STJ no Recurso Especial nº 1.172.387 – RS (2009/0249098-0), de 15.02.2011, em que foi relatora a Ministra Nancy Andrigui2, a seguir transcrito:

CONCORDATA. LEVANTAMENTO DE VALORES QUE ESTÃO DEPOSITADOS JUDICIALMENTE E À DISPOSIÇÃO DE CREDORES NÃO HABILITADOS EM CONCORDATA PREVENTIVA, AJUIZADA SOB A ÉGIDE DO DL 7.661/45 E ENCERRADA POR SENTENÇA QUE A CONSIDEROU CUMPRIDA. OMISSÃO LEGISLATIVA. UTILIZAÇÃO DOS CRITÉRIOS CONTIDOS NOS ARTS. 4º DO LICC E 126 DO CPC. ANALOGIA. LEI 11.101/05. POSSIBILIDADE.

O tribunal de origem, no Rio Grande do Sul, manifestou-se contrário à hipótese de levantamento dos valores, ainda que finda a concordata e em que pese terem sido esgotadas todas as possibilidades de localização dos credores que não levantaram os valores depositados.

Diz a decisão interlocutória que o levantamento pretendido pela recorrente foi indeferido, pois “o valor depositado (…) não lhe pertence, mas sim aos credores relacionados às fls. 1.401/1.401 (sic). O valor deverá permanecer depositado em juízo até que os credores compareçam para solicitar o levantamento” (e-STJ fl. 30). A recorrente interpôs agravo de instrumento em face dessa decisão.

Em face deste recurso, a Sexta Câmara Cível do TJ/RS, por unanimidade de votos, negou provimento ao Agravo de Instrumento, nos termos da seguinte ementa:

Agravo de instrumento. Concordata preventiva cumprida. Preliminar de nulidade da decisão desacolhida. Encerramento do feito. Quantias depositadas em favor de credores que, instados, não se manifestaram acerca do seu crédito. Depósito que deve ser mantido sem prazo determinado, porquanto declarada a existência de direito em favor dos credores. Decisão mantida. NEGARAM PROVIMENTO AO AGRAVO DE INSTRUMENTO.

A empresa concordatária então recorreu com embargos de declaração e posteriormente com Recurso Especial, no qual defendeu que “não há motivo para que permaneçam retidos os valores discutidos no presente feito, uma vez que o crédito é reconhecido pela concordatária e foi declarado pelas decisões fundamentais da concordata”.

Além disso, entendia que “uma vez encerrada a concordata, os credores faltantes devem postular seu crédito diretamente junto à empresa devedora que, no caso em foco, reconheceu o crédito desde o início do feito, já se comprometeu em pagá-lo assim que houver interesse, e empenhou grande esforço buscando localizar os mesmos.”

Alternativamente, a recorrente postulou que fosse “estipulado um prazo para a manutenção dos depósitos, para que após um ano do trânsito em julgado da decisão (…) o montante possa ser finalmente disponibilizado à concordatária”.

A decisão do STJ entendeu que a antiga lei de falências não regulamentou a destinação das quantias depositadas em favor dos credores que não foram localizados e que tal omissão foi involuntária.

Em face desta constatação, e da existência de situação jurídica sob judice, resta ao Poder Judiciário o poder-dever de suprir a lacuna legislativa, servindo-se dos critérios oferecidos pelos arts. 4º da LICC e 126 do CPC.

O acórdão segue então neste diapasão e se serve da Lei 11.101/05 para solução da controvérsia, alegando que tal escolha se deve ao fato de que ambas as normas contêm os mesmos princípios gerais e regulam as mesmas situações fáticas.

Ora, como o art. 153 da Lei 11.101/05 outorga à empresa falida ou em recuperação judicial a possibilidade de levantar o saldo eventualmente existente em seu favor, se for verificado o pagamento de todos os credores e houver transcorrido o prazo concedido pelo Juiz para resgate dos valores não reclamados, faz-se assim a utilização deste texto legal, de forma analógica.

O acórdão do TJ/RS, diferentemente, interpretou a omissão legal como voluntária, intencional, razão pela qual não há que ser falar em aplicação de analogia na resolução do caso, mas sim interpretar a recusa legal como recusa de comportamento, como se vê:

 

[…] quanto ao prazo de manutenção do depósito, entendo não deva ser fixado um termo final, porquanto o crédito é declaradamente reconhecido, não sendo crível que se atribua aos credores o encargo de recorrer à empresa na busca do crédito, diante da insegurança de no momento da postulação não se poder afirmar que a empresa contará com numerário disponível. (…) a concordata foi julgada encerrada justamente pelo cumprimento das obrigações. A devolução do numerário ao agravante seria incorrer em retrocesso ao fim a que se destina o julgamento de encerramento do procedimento. (itálico nosso)

 

3. A admissão das lacunas na concepção sistemática da Ciência do Direito

A problemática teórica da existência de lacunas antecede a reflexão que se deseja neste trabalho, pelo que se passa a fazer brevíssimas considerações sobre a concepção de sistema para o Direito e o lugar das lacunas, nesta concepção.

Segundo Maria Helena Diniz, sistema significa nexo, “uma reunião de coisas ou conjunto de elementos, e método, um instrumento de análise.” Assim, segue a autora dizendo que o sistema não é uma realidade objetiva, mas um aparelho teórico para estudo da realidade que por sua vez não é, sob nenhum aspecto, organizada ou sistemática. Este sistema, como método, trabalha relacionando os objetos e atributos da realidade conforme regras, chamadas de estrutura do sistema, e tal estrutura varia de concepção para concepção, sendo, assim, admissíveis diversas visões de sistema conforme a estrutura pensada, desde que tal estrutura mantenha-se coerente.3

A diferença, assim, entre as diversas concepções de sistema, não se prende a admissão da ausência de lei para um caso concreto, já que em todas as teorias se reconhece que nenhum ordenamento jurídico será capaz de possuir normas abrangendo todo e qualquer comportamento na medida em que a experiência humana é dinâmica, mutável, criativa, verificando-se alterações também no mundo dos valores.

O que para a filosofia do Direito, e suas diversas concepções teóricas de sistema, interessa na verdade não é essa assunção, mas sim verificar se é possível uma concepção de sistema capaz de abranger novos elementos sem se modificar – teorias de sistema aberto; ou, alternativamente, se a recepção de novos elementos significará a necessidade de modificação da própria estrutura do sistema, concepção denominada de sistema fechado.

Alguns autores, como Santi Romano4, por exemplo, distinguem dois espaços jurídicos, o pleno, em que se incluem as condutas previstas pela lei, e o espaço vazio, que engloba as condutas não previstas no primeiro. A existência destes dois espaços não significa dizer que o direito possui lacunas, mas que alguns comportamentos não são relevantes para o direito, e por isso permanecem intencionalmente fora do ordenamento.

Outras correntes5 negam a existência de lacunas em face da regra geral exclusiva presente na maior parte dos ordenamentos jurídicos, que reza a impossibilidade de impor comportamento ou abstenção de comportamento na inexistência da lei. Ou como inscrito em nossa Constituição, ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.

No entanto, sendo assim, como explicar o artigo 4º da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro, que prevê a aplicação de analogia, princípios gerais do direito e costumes para solução de lacunas, ao mesmo tempo em que o ordenamento jurídico, no caso a Constituição Federal, prevê a regra geral exclusiva?

Para Bobbio6, a norma geral inclusiva, que estabelece os critérios de solução de lacunas, traria mais um critério para análise de situações fáticas. Para esse autor o problema não estaria na existência concomitante das duas normas, mas na dificuldade de escolha entre elas, visto que uma exclui todos os fatos não previstos enquanto a outra inclui todas as situações não normatizadas, ao estabelecer critérios de resolução.

Desta maneira, Bobbio finda por apontar que a verdadeira lacuna, quando da existência concomitante de norma geral exclusiva e inclusiva, não é da falta de regulação quanto a caso concreto em análise pelo juiz, mas a falta de texto de lei capaz de indicar o critério de escolha entre uma norma geral ou outra.7

De outra maneira, poder-se-á ainda interpretar que, existindo duas normas gerais absolutamente incompatíveis, como a exclusiva e a inclusiva, está-se diante de exuberância legal, antinomia entre a norma geral inclusiva e exclusiva, na medida em que inexistem critérios para orientar a escolha entre eles, conforme o dado da realidade, estabelecendo-se um círculo vicioso pelo qual lacunas são verdadeiras antinomias, e vice versa, o que se deve à proximidade entre os princípios lógicos da não contradição e do terceiro excluído.

Kelsen, por sua vez, em que pese compreender o sistema como estrutura fechada, inadmitindo a existência de lacunas, admite a existência de norma geral inclusiva com a finalidade de ponderar a atuação judicante, funcionando como controle do magistrado. Torna-se assim um instrumento do legislador para minorar a arbitrariedade do juiz, estabelecendo critério para a decisão baseada em razões políticas. Nas palavras do autor, a “denominada ‘lacuna’ da lei é uma típica fórmula ideológica.”8

Para o tridimensionalismo realiano, o sistema é composto de subsistema de normas, de subsistema de valores e de subsistema de fatos, e quando há incongruência entre essas três realidades, verifica-se a lacuna. Assim, “o subsistema normativo é aberto, está em relação com de importação e exportação de informações com os outros subsistemas (fático e axiológico), sendo ele próprio parte do sistema jurídico.”9

E com base nesta formulação, a integração do fato não previsto ao sistema se dá com maior naturalidade utilizando-se a norma geral inclusiva. Segundo Ferraz Jr.,

Nessa classificação, o conceito de “lacuna” emerge claramente da correlação de diferentes sistemas, estando aí subentendida a concepção do ordenamento, como abarcando um subsistema das prescrições, um subsistema dos valores e um subsistema da realidade social tipificada. A lacuna ocorre quando se dá uma incongruência de natureza temporal que rompe certa harmonia isomórfica que preside, por suposição, a relação entre as estruturas dos diferentes subsistemas. Podemos falar, no sentido dessa dinamicidade temporal, em lacunas de lei em oposição a lacunas do direito, ou melhor, em lacunas provisórias da lei, à medida que toda lacuna constatável em relação ao sistema legal pode ser suprida em relação a outro sistema […]10

Dito isso, deseja-se nesta singela abordagem teórica apenas referir que segundo a teoria tridimensional de Miguel Reale, conforme exposta por Maria Helena Diniz, é possível classificar as lacunas em três espécies: as normativas, quando não há norma no ordenamento para o dado concreto; as ontológicas, quando não houver correspondência entre o dado concreto e a norma posta, em face de alterações sociais; e axiológica, quando inexistir norma justa, sendo a aplicação do texto legal flagrante manifestação de injustiça.11

 

4. A ideologia no preenchimento de lacunas

Do exposto até aqui, é possível perceber que a admissão das lacunas dentro do sistema jurídico permite aproximar o direito da realidade social, na medida em que fornece ao juiz administrar a relação fato-valor-norma, abandonando, quando necessário, a legalidade estrita, inclusive elidindo a vontade do legislador, quando esta está desautorizada pelos fatos ou pelos valores sociais.

Percebe-se, também, que as diversas correntes interpretativas possuem escondidas bases ideológicas de condução do exame em tela, na medida em que teorias fechadas, sob a aparente forma de neutralidade, levam o jurista a esquecer-se do significado do direito dentro do corpo social bem como se esquecer de seu papel no seio desta mesma sociedade, a conciliação social. É verdade que, historicamente, a formulação de teorias positivistas tiveram escopo diverso, mas sua utilização presente tem se prestado, muitas vezes, à desconfiguração do que é o Direito.

Importam, neste sentido, as palavras de Bordieu, ao afirmar que a interpretação

Opera a historicidade da norma, adaptando as fontes a circunstâncias novas, descobrindo nelas possibilidades inéditas, deixando de lado o que está ultrapassado ou o que está caduco. Dada a extraordinária elasticidade dos textos, que vão, por vezes, até à indeterminação ou ao equívoco, a operação hermenêutica de declaratio dispõe de uma imensa liberdade.12

A percepção de elementos em constante interação, apontados pelo tridimensionalismo, operam ainda como reveladores desta ideologia tantas vezes disfarçada. É verdade que, como bem aponta Souza, a ideologia, mesmo aquela presente no normativismo, opera às vezes como instrumento de dominação social e em outras “permite às classes menos favorecidas, mormente em sistemas políticos pluralistas, um espaço de discussão.”13 É o que se dá, por exemplo, com a garantia legal do direito de greve ou de livre associação, presente na Constituição Brasileira.

Seguindo ainda na lição de Souza, em que pese essas possibilidades, é verdade também que a utilização do direito pelos grupos sociais menos favorecidos exige deles um “certo grau de politização”, difícil de verificar-se pelo fraco acesso aos meios de conscientização cidadã.

 

5. A ideologia dentro do caso em estudo

Como se observou, houve uma divergência de essência na interpretação dada pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e o STJ.

Na verdade, essas dicotomias entre a corte do Sul e as decisões do Tribunal são bastante freqüentes, sendo aquele tribunal o maior representante na Corte citada, em face de fenômeno bastante conhecido pelos operadores do Direito no Brasil, a saber, uma escolha axiológica comum às cortes do Sul do país.

A escolha ideológica da corte do Rio Grande do Sul possui vertente protecionista e uma escolha interpretativa voltada para uma análise marxista ou neomarxista de divisão social em classes e opressão manifesta de uma classe sobre as demais, a classe rica e detentora de recursos econômicos a operar em detrimento dos interesses dos menos favorecidos.

Não se trata neste trabalho de emitir juízo de valor sobre tal escolha valorativa predominante naqueles Estados, até porque para isso seria necessário um estudo que em muito ultrapassa o objeto deste pequeno artigo, mas sim confrontar como a diferença ideológica adotada nos dois tribunais conduz a interpretação de lacunas de forma diferenciada. O fio condutor desta divergência, frise-se, é ideológico, e é cabível e admissível essa diversidade dentro da hermenêutica jurídica.

O tribunal do juízo de origem entendeu, primeiramente, que a lacuna verificada não era involuntária, ou seja, que a o DL 7.661/45 intencionalmente deixou de fixar a hipótese de levantamento de valores depositados pelo concordatário, ainda quando os credores deste não tenham comparecido em juízo para a percepção dos valores. E essa intenção da norma se daria em face da disparidade de interesses, para a proteção aos interesses dos credores. Nas palavras do próprio acórdão, “o numerário pertence exclusivamente aos credores e deve, portanto, aguardar pela manifestação destes, sem que haja necessidade de fixação de um termo para tal finalidade”.

Além do que, na hipótese de levantamento dos valores pela concordatária, mesmo se declarada a dívida dentro do processo, caberia aos credores intempestivos utilizarem-se de novo procedimento legal para obterem direito já garantido.

Finalmente, entre os argumentos, também considerou o juízo de origem que o encerramento da concordata se dá no DL 7.661/45 em face do cumprimento legal de todas as obrigações, a saber, depósito judicial de todo o devido. Logo, com o levantamento de parte desses valores, o próprio requisito de encerramento se desvaneceria.

Nesta manifestação do tribunal do Rio Grande do Sul percebe-se uma escolha, ou seja, a decisão é baseada em critérios legais, mas segue uma orientação de procedência axiológica. Ou seja, a decisão do juiz segue seu próprio juízo, e não uma sequência lógico-formal dedutiva, na verdade normalmente parte-se, como provavelmente no caso em tela, do problema para as premissas, como teorizado pela tópica.14

Não é diferente a decisão do STJ, conforme manifestação da relatora. Também naquela decisão há uma escolha ideológica, de caráter axiológico inegável, somente que em direção diversa. A justificativa prévia dada pela Ministra para o entendimento de haver ali uma lacuna intencional, a necessitar de superação pela aplicação do artigo 4º da LINDB, bem o demonstra:

É difícil presumir que a omissão aqui verificada configure uma opção consciente do legislador. A retenção perpétua e indefinida dos depósitos judiciais efetuados pela recorrente, proposta pela decisão originalmente agravada e mantida pelo TJ/RS, não é uma medida razoável e privará a sociedade de importantes recursos financeiros, quiçá criando embaraços ao prosseguimento de sua atividade empresarial. (grifo nosso)

A justificativa grifada do julgado difere grandemente do conteúdo axiológico constante do julgado do RS. Aqui, a ministra claramente posiciona-se em uma visão defensora do sistema capitalista de giro econômico, em que os recursos financeiros investidos nas atividades empresariais são entendidos como essenciais à estrutura da sociedade.

Com base nesta escolha, segue o conteúdo do acórdão no sentido de, utilizando-se do artigo 4º da LINBD, por analogia servir-se da LRF, Lei 11.101/2005:

Inicialmente, considero relevante, para a solução da controvérsia, verificar o teor das disposições da nova lei de falência e recuperação judicial quanto ao tema objeto do presente recurso, já que a presente hipótese não foi prevista pelo diploma falimentar em vigor à época dos fatos. Ressalto, neste particular, que, embora o art. 192 da Lei 11.101/05 determine que “esta Lei não se aplica aos processos de falência ou de concordata ajuizados anteriormente ao início de sua vigência, que serão concluídos nos termos do Decreto-Lei no 7.661, de 21 de junho de 1945”, nada impede a utilização analógica dessa norma para o desfecho da questão. Isso porque, além de conterem os mesmos princípios gerais e regularem as mesmas situações fáticas, a solicitação de resgate dos depósitos judiciais, que originou a decisão recorrida, foi apresentada pela recorrente somente após a extinção (conclusão) da concordata, em 6/4/2006.

Assim, é conveniente destacar o disposto no art. 153 da Lei 11.101/05, que outorga à empresa falida ou em recuperação judicial a possibilidade de levantar o saldo eventualmente existente em seu favor, após o pagamento de todos os credores.

[…]

Assim, não há qualquer impedimento ao levantamento dos valores depositados pela recorrente, os quais somente não foram levantados pelos respectivos credores porque o paradeiro deles é desconhecido. A indisponibilidade eterna do numerário, a aguardar por evento futuro e incerto, é uma cautela injustificável. O Direito repele as situações pendentes, de maneira que a melhor resposta à indagação trazida pela recorrente é a fixação de um prazo legal compatível com os dispositivos já existentes, de modo a impedir a existência de uma verdadeira “execução sine die”, indefinidamente suspensa, à espera de credores que talvez jamais venham reivindicar seus créditos. (grifo nosso)

6. Considerações finais

A constatação da existência de lacunas dentro do ordenamento jurídico é inegável, em que pesem as tentativas de diversas interpretações em sentido contrário. Basta ter os olhos abertos à realidade para admitir a existência de tais dicotomias entre a realidade social e os diversos diplomas legais.

Não há sequer possibilidade de ser pensar um ordenamento jurídico capaz de abranger todos os fatos passíveis de questionamento processual, já que os valores sociais e os próprios fatos transformam-se com o decorrer da história de cada sociedade.

Assim, resta à ciência jurídica conceituar estruturas para a adequação deste ordenamento, uma teorização cujo propósito é fornecer algum grau de completude à serviço da manutenção do Direito como garantidor da paz social.

Como se viu, um dos caminhos existentes para a solução das lacunas, conforme nosso ordenamento jurídico mesmo, é a norma geral inclusiva inscrita no artigo 4º da LINDB. No entanto, resta saber quando se entenderá cabível sua aplicação, quando se pode entender que a ausência de norma para um dado caso é intencional ou não.

E viu-se que a constatação primeira da própria existência de lacuna, ainda mais se dentro de uma concepção tridimensionalista capaz de admitir lacunas inclusive dentro dos subsistemas axiológicos e ontológicos, é conduzida pela ideologia que perpassa a sociedade e, em particular, o intérprete da lei.

Com a decisão colacionada desejou-se assim demonstrar que detrás da aparente logicidade dos caminhos interpretativos, há uma escolha primeira, de caráter ideológico.

7. Referências Bibliográficas

BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 10ª Ed. Brasília: Edit. UnB, 1999.

COELHO, Fábio Ulhoa. Roteiro de Lógica Jurídica. 6ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

DINIZ, Maria Helena. As Lacunas no Direito. 7ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito: introdução à problemática científica do direito. 7ª Ed. São Paulo: Ed. RT, 2011

FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 4ª Ed. São Paulo: Atlas, 2003

SOUZA, Luiz Sergio Fernandes de. O papel da Ideologia no Preenchimento das Lacunas no Direito. 2ª Ed. São Paulo: Ed. RT, 2005.

VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-científicos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 2008

2 Disponível em jornal.jurid.com.br/download-anexo?id=2457, acessado em 05.05.2011

3 DINIZ, Maria Helena. As Lacunas no Direito. 7ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 25

4 SANTI ROMANO apud COELHO, Fábio Ulhoa. Roteiro de Lógica Jurídica. 6ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 67

5 Ibidem. p. 68

6 BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 10ª Ed. Brasília: Edit. UnB, 1999. p. 136 e ss.

7 Ibidem. p. 137

8 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito: introdução à problemática científica do direito. 7ª Ed. São Paulo: Ed. RT, 2011. p. 160

9 FERRAZ JR., Tércio Sampaio apud DINIZ, Maria Helena. Op. Cit. p. 74

10 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 4ª Ed. São Paulo: Atlas, 2003. p.221

11 DINIZ, Maria Helena. Op. Cit. p. 95

12 BORDIEU, Pierre apud SOUZA, Luiz Sergio Fernandes de. O papel da Ideologia no Preenchimento das Lacunas no Direito. 2ª Ed. São Paulo: Ed. RT, 2005. p. 279

13 SOUZA, Luiz Sergio Fernandes de. Op. Cit. p. 280

14 Cf. VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-científicos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 2008.

Fernanda Cristina Covolan

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