A derrocada do direito internacional e o desrespeito à ONU: reflexões a partir do paradigma kantiano

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1.    A realidade da política internacional e o desgaste da onu na guerra entre israel e palestina
         Assisti estarrecido a uma cena que deve ser tomada como de máxima gravidade e que reflete o grau de irracionalismo, degradação da humanidade e desforra das forças do antagonismo à democracia: o bombardeio a um prédio da ONU em Gaza em 15 de Janeiro do corrente ano, ao tempo que Tel Aviv recebe a visita do Secretário-Geral da ONU, Ban Ki-moon.  
         Nada poderia ser mais simbólico para expressar o desprezo pelos direitos humanos internacionais e pela moral política de pacifismo que esse gesto, que desfere um duro golpe à Organização das Nações Unidas que como se sabe já tem de enfrentar o desprestigio de vê suas resoluções descumpridas, seus apelos ignorados, seus representantes aviltados e mortos, a exemplo do diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello em 2003 no Iraque.
         O simbolismo desse gesto de violência não pode passar despercebido: a revolta do Secretário-Geral da ONU de nada adianta se não for acompanhada de atos jurídicos e políticos que se façam valer com eficácia. Cada vez mais surge a necessidade das nações dialogarem a fim de se constituírem mecanismos de direito internacional capazes de repelir e sancionar atos de violência como os ocorridos na presente guerra entre o Estado de Israel e os palestinos do Hamas.
         O patético pedido de desculpas do Ministro da Defesa de Israel, Ehud Barak, de nada adianta frente ao gravíssimo ato deshumanitário de bombardeio a um prédio que abrigava alimentos a refugiados.
         Se a ONU é desrespeitada frontalmente dessa maneira e a comunidade internacional não reage, é porque a violência e o desprezo pelos direitos humanos venceram e todo esforço e protesto será um eco vazio diante da imensidão da irracionalidade política e dos interesses escusos que movem essa e todas as guerras.
         Os interesses econômicos e políticos que promovem a degradação da humanidade na pessoa das vítimas da guerra são exatamente os que promovem a barbárie e saem impunes: não se pode desprezar um único ser humano e pensar que a humanidade está bem. Não se pode desprezar a vida e considerar que o direito está vigente. Este está é desrespeitado e combalido.   
         A exortação à Paz Perpétua feita pelo filósofo alemão Immanuel Kant a 200 anos, que preconizou fundar um sistema de direito internacional, valeu como incentivo ao sistema de incremento do poder de uma instancia internacional de defesa da paz e dos direitos humanos, promovido não com base na moral ou em direitos naturais, mas em direitos humanos e em fins de cumprir a máxima de proteção da pessoa humana frente ao Estado.
 
2.    Kant e o direito internacional
A fundamentação filosófica do kantismo no aspecto político implicou na busca de uma reestruturação da teoria do Estado em função de várias concepções:
1-    Contratualismo. Kant critica o contratualismo até sua época, principalmente o voltado para a fundamentação do “direito das gentes” de Grotius e Pufendorf, pelo fato de não terem proposto soluções práticas e empíricas aos problemas de direito internacional. A acepção de que o contrato social implica no fundamento da sociedade política como uma exigência racional, não pode implicar apenas uma previsão abstrata, mas deve haver sanção jurídica e procedimentos jurídicos capazes de assegurar o exercício recíproco da liberdade entre os Estados (NOUR, 2004, p. 169).
2-    Liberal-individualista (coibição e cerceamento do poder estatal exacerbado sobre a liberdade individual);
3-    Mecanicista. A finalidade do Estado é a proteção do indivíduo e não do coletivo, que é organicista (coletivista). Kant contrapõe-se a Rousseau (1999) e à idéia deste de uma vontade geral tirânica do coletivo sobre os particulares, pois defende uma vontade do povo como cidadania enquanto uso da razão pública e de cada pessoa como fim em si, portanto, Kant é antes ético-liberal que coletivista;
4- Não-patrimonialismo (o Estado não seria um bem, que pudesse ser transferido juridicamente por meio de uniões civis, casamento, por exemplo, entre famílias nobres);
5- Republicanismo (a finalidade do Estado é o bem comum e a expressão definitiva da vontade do povo, e não o bem de facções políticas, KANT, 2004, p.43; não o republicanismo transitório revolucionário, como o de Robespierre na fase do ‘Terror’ da Revolução francesa);
6- Dualismo (a soberania da ordem jurídica estadual é diversa da ordem jurídica internacional);
7- Não-intervencionismo (nenhum Estado deve intrometer-se na soberania do outro, garantindo-se a liberdade recíproca, KANT, 2004, p. 35).
8- Federalismo de nações (decorrência do dualismo, implica na pretensão kantiana de erigição de um direito internacional a ser defendido por uma federação de nações institucionalizada em um órgão internacional de fomento da paz e da busca de equilíbrio político entre os Estados, KANT, 2004, p.45);
9- Relativismo cultural e proteção do multiculturalismo (KANT, 2004, p. 51-52, é pioneiro em defender o respeito à cultura dos povos e sua proteção pelas normas do direito cosmopolítico enquanto proteção das condições de ‘hospitalidade universal’. Isso prova o primado da liberdade e do respeito que Kant confere às pessoas humanas e, por extensão, às culturas dos povos).
10- Publicismo. Tratados entre os Estados devem ser públicos, não há possibilidade jurídica de acordos secretos. O órgão da federação das nações deve coibir tais práticas.
 11- Cosmopolitismo
11.1. Decorrente do dualismo e do federalismo de nações, o cosmopolitismo preconiza uma proteção jurídico-objetiva-institucional para os direitos humanos, através de instrumentos jurídicos instaurados perante um órgão internacional de proteção do direito internacional.
11.2. O direito cosmopolítico de Kant é uma terceira dimensão da ordem jurídica, acrescendo à ordem pública nacional e a ordem internacional entre Estados, portanto, meramente contratualista, consoante Nour (2004, p.54).
11.3. Kant, conforme Habermas apud Nour (2004, p.170), não vê apenas a proteção dos direitos humanos como uma frente de combate moral, mas jurídico-objetiva calcada no direito internacional objetivo, que ele denominou ‘cosmopolítico’.
 
3.    Conclusão
A contribuição principal de Kant para a posteridade foi o teorema democratismo-direito cosmopolítico (CZEMPIEL, 1997, p.141), apregoando a necessidade de fundamento republicano do poder interno dos Estados (proteção da democracia), e a extensão dessa proteção da soberania estatal em nível internacional da comunidade das nações (federalismo internacional) enquanto direito cosmopolítico (organismos internacionais de proteção do Direito Internacional objetivo, o que se concretizou na Sociedade das Nações e, atualmente, na ONU e seus órgãos de proteção dos direitos humanos, Corte Internacional de Justiça,Tribunal Penal Internacional etc).
Kant (2003, p.18) acreditava que somente a constituição de uma ordem internacional perfeita como corolário e complemento da ordem jurídica estatal poderia sanar a irracionalidade bárbara da natureza humana.
Exorta-se a comunidade internacional a respeitar a pessoa humana, fortalecendo as instâncias internacionais de proteção da dignidade humana e rechaçando atos desrespeitosos à ONU como os perpetrados pelos israelenses em Gaza.
 
NEWTON DE OLIVEIRA LIMA[1]
 
     
4. REFERÊNCIAS
CZEMPIEL, Ernst-Otto. O teorema de Kant e a discussão atual sobre a relação entre democracia e paz. In: ROHDEN, Valério. Kant e a instituição da paz. Trad. de Peter Naumann. Porto Alegre: UFRGS-Instituto Goethe, 1997, p.121-142.
KANT, Immanuel. Idéia de uma História Universal de um ponto de vista Cosmopolita. Trad. de Ricardo Ribeiro Terra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
_____. Para a Paz Perpétua. Um esboço filosófico. In: GUINSBURG, J. A paz perpétua. Um projeto para hoje/Kant, Derrida, Rosenfeld, Romano. São Paulo: Perspectiva, 2004.
NOUR, Soraya. A Paz Perpétua de Kant – filosofia do direito internacional e das relações internacionais. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1999.
 


[1] Mestre em Direito pela UFRN, área de concentração ‘processo e garantia de direitos’.

Newton de Oliveira Lima

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