A bioética no desenvolvimento biotecnológico: a dignidade humana em risco

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Resumo: O desenvolvimento biotecnológico é uma das grandes forças modificativas da sociedade moderna. O conhecimento científico teve seu ápice no século XX e se apresenta como um mecanismo de desenvolvimento social. A biotecnologia é uma área que atua diretamente com as tecnologias que entram em contato com o ser humano, apresenta uma série de riscos ao bem estar das pessoas e da própria sociedade. A bioética surge na sociedade contemporânea como um ramo de estudos e pesquisas com o objetivo de desenvolver respostas aos novos desafios sociais emanados das tecnologias da vida.

Palavras-chave: biotecnologia; bioética; conhecimento científico; legislação; princípio da dignidade humana.

Abstract: The development of biotechnology is a major modifying force of modern society. Scientific knowledge had reached its 20th century and presents as a mechanism of social development. Biotechnology is an area that works directly with the humans technologies, it has a number of risks to the well being of individuals and society. Bioethics in contemporary society that arises as a area of studies and research aiming to develop responses to new challenges emanating from Life Technologies.

Keywords: biotechnology; bioethics; scientific knowledge; law; principle of human dignity.

 

Introdução

A biotecnologia assume um papel importante na sociedade moderna, é derivada do grande desenvolvimento tecnológico e científico obtido no século passado. A biotecnologia está diretamente vinculada ao fator econômico e social, tendo assim forte influência sobre o Direito contemporâneo.

A bioética surgiu no século passado para pesquisar e apresentar respostas ao que é utilizado como objeto de estudo da ciência. Se apresentar como uma diretriz no que diz respeito a soluções a problemas emblemáticos surgidos com a biotecnologia.

No sistema jurídico moderno é importante constar que o princípio da dignidade da pessoa humana surge como o grande defensor da pessoa humana frente os riscos causados pela biotecnologia.

Apresentar-se-á, no presente trabalho, a força da biotecnologia na sociedade contemporânea, sendo feito, para isso, uma abordagem de alguns pontos polêmicos e conflitantes. Posteriormente será trabalhado os objetivos da bioética segundo os seus princípios, para então chegar-se a garantia constitucional da dignidade da pessoa humana, apresentando seus conceitos e fundamentos.

 

  1. Conceito e Evolução Histórica da Bioética

O surgimento do termo “Bioética ocorreu em 1972, utilizado pelo oncologista norte-americano Van Rensselaer Potter com a publicação da obra Bioethics – a bridge to the future”2, e ganha atualmente grande importância na área do Biodireito e sua normatização referente a vida humana.

Atualmente, a bioética ganha proporções tamanhas em diversas áreas do conhecimento humano, tornando, assim, difícil a sua conceituação. Porém, Léo Pessini e Christian P. Barchifontaine3 trazem em seu livro a explicação da terminologia encontrada na Enciclopédia:

Bioética é um neologismo derivado das palavras gregas bios [vida] e ethike [ética]. Pode-se defini-la como sendo o estudo sistemático das dimensões morais – incluindo visão, decisão, conduta e normas morais – das ciências da vida e do cuidado da saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas num contexto interdisciplinar. (Encyclopedia of bioethics. 2. ed., v. 1, p. XXI, 1995).

Mostra-se pertinente, também, a visão histórica da bioética realizada por André Soares e Walter Piñeiro4:

Podemos dividir a história da bioética em três fases. A primeira fase vai de 1960 a 1977, período em que surgem os primeiros grupos de médicos e cientistas preocupados com os novos avanços científicos e tecnológicos. Nesse mesmo período formam-se os principais centros de estudos de bioética: o Kennedy Institute e o Hastings Center, nos Estados Unidos, e o Institut Borja de Bioética, na Europa. A segunda fase vai de 1978 a 1997, período em que se publica o Relatório Belmont, que provoca um grande impacto da bioética clínica; a primeira fecundação in vitro é bem-sucedida; importantes progressos são realizados pela engenharia genética e são criados o Grupo Internacional de Estudo em Bioética [GIEB], a Associação Européia de Centros de Ética Médica, a Associação Interdisciplinar José Acosta, o Comitê Consultivo Nacional de ética da França e o Convênio Europeu de Biomedicina e Direitos Humanos. A terceira fase, que ainda não está terminada, teve seu início em 1998. Neste período, a clonagem de animais, a descoberta quase total do genoma humano e a crescente falência dos sistemas de saúde pública dos países pobres vêm se apresentando como alguns dos temas de destaque nos debates acerca dos conflitos de valores.

Um marco na história da bioética ocorreu em 1974, nos Estados Unidos, com o surgimento da Comissão Nacional dos Seres Humanos Sujeitos de Investigação Biomédica e do Comportamento, que trabalhou durante quatro anos, tendo realizado 125 recomendações visando a melhoria dos direitos e bem-estar dos seres humanos objetos de pesquisa 5. Ela surgiu com o intuito de combater algumas irregularidades que estavam ocorrendo na comunidade médica na experimentação de novas tecnologias para o ser humano, principalmente na Alemanha. Após decorridos os quatro anos, os esforços resultaram no Belmont Report (Relatório Belmont), sendo, com isso, criados os três princípios fundamentais da bioética, como bem explica Joaquim Clolet e Anamaria Feijó6:

O Relatório de Belmont, elaborado por uma Comissão oficial constituída pelo Congresso Americano e divulgado em 1978, identificava três princípios ligados à pesquisa com os seres humanos: (a) o respeito pelas pessoas, que englobava o respeito à autonomia da pessoa e o cuidado com aqueles que tinham sua autonomia diminuída; (b) o princípio da beneficência, que englobava não causar danos e minimizar os riscos maximizando os benefícios; (c) o princípio da justiça, que buscava igual tratamento para todos os iguais. Esse documento propunha uma nova linha metodológica de reflexão e ação a partir de princípios.

A comunidade científica deve sempre lembrar que a vida humana não pode ser desrespeitada, mesmo quando o objetivo é o de melhorar sua qualidade de vida. Por isso, foram criados princípios para que sejam tomados como guia no caminho do tratamento mais ético quando diz respeito a vida.

O princípio da autonomia é o que se refere ao conhecimento adquirido pelo ser humano e sua condição de avaliar qual a melhor ação a ser tomada sobre si e sua saúde, nesse sentido Francesco Bellino7 leciona que o princípio da autonomia “estabelece o respeito pela liberdade do outro e das decisões do paciente e legitima a obrigatoriedade do consentimento livre e informado, para evitar que o enfermo se torne um objeto.”

Quanto ao princípio da beneficência é o relativo aos resultados obtidos para com a saúde, onde deverá buscar não causar danos e aumentar os benefícios diminuindo os possíveis riscos. Esse é um dos pontos mais importantes no estudo da bioética, pois a vida humana não pode ficar submetida a experimentos que não apresentem um índice de certeza elevado, caso contrário estará desrespeitando e ferindo a dignidade humana. Tal princípio recebe destaque de Joaquim Clolet e Anamaria Feijó8:

O princípio da beneficência busca o bem do paciente, seu bem-estar e interesses de acordo com os critérios do bem fornecidos pela medicina ou por outras áreas da saúde onde as pessoas envolvidas estão inseridas. Na prática, esse princípio implica usar todas as habilidades e conhecimentos técnicos a serviço do paciente maximizando benefícios e minimizando riscos. Nota-se aqui a influência do cálculo utilitarista e pede que o profissional vá além do princípio da não-maleficência, pois requer ações positivas.

Por fim, o princípio da justiça, que garante que todo e qualquer ato realizado sob a vida humana deve oferecer igualdade a possibilidade de tratamento, como orienta o autor9: “O princípio da Justiça está associado à equidade da distribuição dos bens e benefícios em relação ao exercício da medicina ou área da saúde. É um princípio de caráter social […].”

O respeito ético para com a vida humana não diz respeito apenas a um indivíduo ou a um grupo, mas sim a toda espécie humana, incondicionalmente. Patrícia B. Silva destaca que10:

O caráter ético da essência humana se formata segundo os valores que são sintetizados no cotidiano prático da vida activa. Por caráter ético deve se compreender o pensamento e ação do sujeito em busca de uma razão de existência que seu tempo e espaço significam como moralmente ideais.

Com o desenvolvimento da biotecnologia, que sofre grande ascendência na sociedade moderna, faz-se necessária a constante presença de estudos éticos para que a sociedade contemporânea possa apresentar respostas aos diversos tipos de questionamentos e possibilidades trazidas pelo conhecimento tecnocientífico.

 

2. Evolução Biotecnológica Frente a Bioética

A humanidade sempre buscou aperfeiçoar seus instrumentos e ferramentas e talvez seja esse o grande motivo de sua dominância no Meio Ambiente. Atualmente vive-se um momento histórico de grandes avanços tecnológicos, principalmente na área da vida, voltada ao corpo humano. Não é raro se ouvir falar de novos equipamentos e tratamentos para as mais variáveis doenças, que até então causavam temor nas sociedades. A ideia de evolução deve estar ligada a normas e princípios garantidos à vida humana, e que jamais deverão ser desrespeitados. Como bem destaca Fermin R. Schramm11:

Historicamente, a bioética nasce como resposta da cultura contemporânea às implicações morais das tecnociências biomédicas. Ela pode, portanto, ser considerada sob o aspecto dos movimentos culturais e sociais, surgidos nas sociedades democráticas e pluralistas do Ocidente, tendo-se espalhado, desde então, aos quatro cantos do planeta.

Além de movimento cultural, ela faz parte do campo das Éticas aplicadas, sendo talvez a mais importante dentre elas, visto que se aplica aos dilemas morais que surgem no exercício das profissões biomédicas e sanitárias.

Exemplificando para o campo da Medicina, atualmente, neste campo, atuam dois elementos principais: a) a evolução do conhecimento biomédico e a importância crescente das tecnologias que dele surgem, por um lado; b) o incremento quantitativo e qualitativo das necessidades e dos desejos dos cidadãos em termos de saúde. A combinação desses elementos tem transformado profundamente tanto a relação médico-paciente quanto a relação saber-fazer biomédico e sociedade durante as três últimas décadas, sendo que o futuro dessas relações é dificilmente previsível.

Com a evolução tecnológica advinda da ciência que se acentuou no último século, é imprescindível que elas estejam sendo orientadas pela ética, para que a vida humana seja sempre respeitada. Sabe-se que, com os avanços da ciência, novos problemas éticos aparecerão e necessitarão de compreensão e desenvolvimento conceitual e principalmente jurídico (Biodireito), como por exemplo a eutanásia12. Vale a ressalva feita por Marco Segre e Fermin Roland Schramm13:

Os avanços no campo das biotecnologias, mormente no que se refere ao aperfeiçoamento das técnicas tradicionais da reprodução humana e, sobretudo, no âmbito das mais recentes biotécnicas de manipulação genética, geram profundas polêmicas, inclusive de tipo moral e ético. Em nosso entender, por serem essencialmente de tipo negativo, tais polêmicas são de tipo moral e muito mais reflexo de temores quanto às possibilidades de alteração do status quo na condição humana – que o exercício da liberdade responsável abre – do que decorrência de ponderações éticas sobre vantagens e riscos de sua utilização.

Observa-se a importância social dos avanços tecnológicos advindos da ciência, principalmente os relativos a vida humana, porém toda e qualquer evolução deverá primar pela melhora na qualidade de vida, caso contrário acabará por perder sua função, nesse sentido Simone B. de Oliveira14 esclarece que a bioética é, pois, a ética aplicada a novos problemas surgidos no bio-reino, sem esquecer que a função primordial da ética é a de evitar o mal e preveni-lo, antes mesmo de promover o bem.

Deve-se ter em vista que em uma sociedade, todos os indivíduos estão interagindo entre si e, com isso, afetando o modo de viver um do outro, sendo assim, devem esses ter responsabilidade pela vida alheia, numa espécie de dever ético mútuo. Humberto R. Maturana e Francisco J. Varela15 explicam que:

Todo ato humano ocorre na linguagem. Toda ação na linguagem produz o mundo que se cria com os outros, no ato de convivência que dá origem ao humano. Por isso, toda ação humana ao humano é, em última instância, o fundamento de toda ética como reflexão sobre a legitimidade da presença do outro.

Os avanços tecnológicos que propiciam a biotecnologia a constante evolução devem ocorrer na tentativa de combater um mal pré-existente, antes mesmo de qualquer ação em pró da promoção do bem. Para isso, é necessário que ao serem desenvolvidas novas tecnologias se façam estudos aprofundados para que possam apresentar certezas de que seus resultados combaterão um mal propiciando, assim, melhoras na condição humana.

Os princípios da bioética, também conhecidos como “trindade bioética”16, devem ser sempre obedecidos, mas, principalmente, serem tomados como orientadores de toda a comunidade científica, é o que também afirma Simone B. de Oliveira17:

Autonomia, beneficência e justiça devem ser guias inseparáveis, do início ao fim do desenvolvimento dos trabalhos, e em havendo possibilidade de ofensa a uma delas no decurso do desenvolvimento, faz-se necessário parar e ponderar a respeito, sob pena de infringir-se o valor maior e fundamental: a dignidade do ser humano.

Por isso, faz-se necessário o desenvolvimento do biodireito, que deverá seguir os princípios da bioética para que possa sempre assegurar o sadio desenvolvimento biotecnológico respeitando assim a vida humana. A evolução do biodireito deve contribuir para que o ordenamento jurídico esteja voltado com mais ênfase na relação ciência e pessoa humana e, neste mesmo sentido, a autora18 esclarece que:

Faz-se imperioso visualizar a possibilidade de uma legislação que venha regulamentar as situações não previstas e que estão despontando com o desenvolvimento das pesquisas em genética de um modo geral, que venha proteger o ser humano integralmente, para garantir, desta forma, o respeito da dignidade humana.

Neste mesmo entender, Maria C. Brauner e Serli G. Bölter19 alertam sobre a necessidade do desenvolvimento jurídico nesse novo ramo da tecnologia, que pode afetar diretamente a integridade física e psíquica do indivíduo:

A construção de uma legislação coerente e aplicável poderá evitar abusos e desvios na seara biotecnológica, em face da necessidade de controle social da biotecnologia e de distribuição eqüitativa de seus benefícios.

Encontrar a maneira de assegurar que o corpo humano seja respeitado e protegido e que não se transforme em mercadoria constitui o desafio que requer o envolvimento da área do Direito, no intuito de se construir um sistema jurídico direcionado a responder aos novos e polêmicos dilemas da modernidade.

Vale ainda ressaltar os ensinamentos de Maria H. Diniz20 que afirma que o grande desafio do século XXI será desenvolver uma bioética e um biodireito que corrijam os exageros provocados pelas pesquisas científicas e pelo desequilíbrio do meio ambiente, resgatando e valorizando a dignidade da pessoa humana, ao considerá-la como o novo paradigma biomédico humanista, dando-lhe uma visão verdadeiramente alternativa que possa enriquecer o diálogo multicultural entre os povos, encorajando-os a unirem-se na empreitada de garantir uma vida digna para todos, tendo em vista o equilíbrio e o bem-estar futuro da espécie humana e da própria vida no planeta.

Com o surgimento da biotecnologia, o direito ganha um novo desafio a ser superado: não impedir o desenvolvimento da biotecnologia, que certamente trará diversas melhorias à qualidade de vida do ser humano e garantir a qualquer custo o devido respeito a vida humana.

 

3. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana

O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana gera inúmeros debates a cerca de sua definição, principalmente por parte da filosofia. A maior dificuldade na sua interpretação está na conceituação do que pode ser uma pessoa humana digna. O conceito com maior aceitação nos tempos modernos é ainda o do filósofo Immanuel Kant21, ao afirmar que o homem, com sua racionalidade:

[…] existe como um fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo, como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem de ser considerado simultaneamente como fim. […] o valor de todos os objetos que possamos adquirir pelas nossas ações é sempre condicional.

Para uma maior compreensão do significado do princípio, e da importância que ele atingiu na atual sociedade, vale ressaltar a interpretação trazida por Ingo W. Sarlet22:

Construindo sua concepção a partir da natureza racional do ser humano, Kant assinala que a autonomia da vontade, entendida como a faculdade de determinar a si mesmo e agir em conformidade com a representação de certas leis, é um atributo apenas encontrado nos seres racionais, constituindo-se no fundamento da dignidade da natureza humana. […] segundo Kant, […] a qualidade peculiar e insubstituível da pessoa humana, no reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode pôr-se em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade […].

O autor salienta ainda que é justamente no pensamento de Kant que a doutrina jurídica mais expressiva – nacional e alienígena – ainda hoje parece estar identificando as bases de uma fundamentação e, de certa forma, de uma conceituação da dignidade da pessoa humana.

No ordenamento jurídico brasileiro, o princípio da dignidade da pessoa humana só obteve lugar de destaque com a Constituição Federal de 1988, que logo em seu art. 1°, inciso III, dispõe:

A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamento:

III – a dignidade da pessoa humana;

Apesar das outras Constituições fazerem menção à pessoa humana com dignidade, a Carta Magna de 1988 foi a única a legislar de modo objetivo o Princípio. Para uma melhor elucidação, é válida a análise das constituições brasileiras feita por Flademir Martins23:

Apesar de referência ao tema da dignidade da pessoa humana – ainda que de modo incipiente e num outro contexto – nas Constituições brasileiras de 1934, 1946 e de 1967, a primeira Constituição a tratar do princípio da dignidade da pessoa humana, enquanto fundamento da República e do Estado Democrático de Direito em que ele se constitui, foi a de 1988. Assim, temos que ao dar ao princípio esta formulação a Constituição brasileira de 1988 avançou significativamente rumo à sua plena normatividade jurídica. Além disso, a Constituição de 1988 ao instituir um amplo sistema de direitos e garantias fundamentais, buscou não só preservar, mas, acima de tudo, promover a dignidade da pessoa humana.

A pessoa humana deve ser observada como centro das ações humanas, tendo em vista sempre o devido respeito ético para com ela. Nessas ações humanas, entende-se que o uso ético do corpo humano não é uma faculdade, nem mesmo da própria pessoa.

O presente Princípio ultrapassa a esfera individual do Ser e alcança contornos que abrangem todos na sociedade e consegue esse alcance social por ser fundamental para o Estado em defesa incondicional dos seres humanos, como Explica Ingo Sarlet24:

[…] a dignidade da pessoa se encontra, de algum modo, ligada [também] à condição humana de cada indivíduo, não há como desconsiderar a necessária dimensão comunitária [ou social] desta mesma dignidade de cada pessoa e de todas as pessoas, justamente por serem todos reconhecidos como iguais em dignidade e direitos [na iluminada fórmula da Declaração Universal de 1948] e pela circunstância de nesta condição conviverem em determinada comunidade.

Com o surgimento do princípio da dignidade da pessoa humana o bem estar físico e mental do indivíduo foi colocado no centro das preocupações do mundo jurídico, garantindo assim um maior respeito para com a vida humana, elevando o Direito a um patamar mais ético e desenvolvido. Esse surgimento deu-se em função do desenvolvimento tecnológico com maior crescimento no século passado, como ensina Jussara Jacintho25:

A dignidade da pessoa humana, não apenas no Direito Constitucional pátrio, está inscrita como princípio fundante de um novo Direito Constitucional, assim como, de um atualíssimo direito internacional, e do movimento de internacionalização dos direitos humanos, surgido a partir das violações sistemáticas desses direitos ocorrida durante a Segunda Guerra Mundial, pela Alemanha Nazista.

Sendo implantado o Princípio, a pessoa humana passou a ser vista com um maior respeito devendo, assim, o Estado fazê-lo cumprir para que a vida humana seja protegida. Atualmente, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana é considerado, por diversos doutrinadores e estudiosos do direito, como o maior e mais importante Princípio do mundo Jurídico.

Elida Séguim26 descreve de forma harmoniosa como a vida humana deve ser tratada em relação ao Estado e o patamar que ela alcançou no Direito com o surgimento do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana:

O homem deve ser respeitado em sua dignidade, em seu valor de fim e não de meio, pois a dignidade da pessoa humana, que, como consectário, impõe a elevação do ser humano ao centro de todo o sistema jurídico, no sentido de que as normas são feitas para a pessoa e sua realização existencial. Nossa Carta Magna elevou a tutela e promoção da pessoa humana a um valor máximo do ordenamento, estatuindo que a dignidade do homem é inviolável, sendo mola propulsora da intangibilidade da vida humana […].

Por isso, não foi mera eventualidade a Constituição Federal trazer logo no art. 1° o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, o qual alcançou relevância social como nenhum outro, constando sempre em qualquer Sistema Jurídico que tenha evoluído a um patamar mais ético e justo. Por isso é importante constar logo no início da Constituição que a vida humana é fator fundamental, devendo todos os outros direitos subsequentes obedecer ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, em uma espécie de Hierarquia de Direitos, onde esse Princípio alcança o patamar mais alto.

Vale ressaltar a afirmativa feita por Reinaldo P. e Silva27 de que a dignidade é reconhecida a toda a pessoa humana na medida em que ela é um sujeito ético individual, isto é, um ser que possui a potencialidade de se determinar, por intermédio da razão, para a ação em liberdade – com isso volta-se a questão da autonomia do indivíduo. O respeito que é devido a essa dignidade, para não redundar no seu contrário, deve amparar-se em dois pressupostos segundo o autor: 1) todas as pessoas humanas devem ser igualmente respeitadas – ou seja, não há uma qualificação nem valoração de indivíduos; e 2) o respeito deve ser assegurado independentemente do grau de desenvolvimento individual das potencialidades humanas.

Com o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana no mundo jurídico, o Direito alcança o seu ponto máximo, pois passa a tratar a vida humana de uma maneira mais racional, mais ética, devendo sua integridade ser assegurada e garantida a todos os indivíduos, sem nenhuma espécie de discriminação. É um direito que pré-existe até mesmo ao nascimento, um exemplo disso é o do nascituro.

Atualmente a ideia de respeito a vida humana está se desenvolvendo28, ao contrário do que foi no passado, com a barbárie das guerras onde praticavam crimes contra a humanidade, principalmente na Segunda Guerra Mundial, em torno da biomedicina que por ser fonte de diversas pesquisas29 no campo da saúde, pode objetivar resultados positivos, porém percorrer meios ilícitos para se chegar ao resultado desejado.

A área da bioética deve ser desenvolvida para que o princípio da dignidade da pessoa humana seja sempre respeitado, esse é um dos grandes desafios do Direito no novo milênio, pois com os avanços da biotecnologia é inevitável e imprescindível para a humanidade estar com as atenções voltadas para os devidos cuidados com a espécie humana. Vale acrescer os ensinamentos de José Baracho30:

As fronteiras da bioética com o direito tornam-se cada dia mais constantes, tendo em vista as pesquisas em ensaios sobre as diversas consequências que acabam tendo lugar em dispositivos legais, como aqueles referentes às doações e fecundações in vitro. Novas questões aparecem em decorrência do progresso da biologia e da medicina. A diversidade de situações, criadas pelo progresso das pesquisas científicas, levas à necessidade de estudos doutrinários, decisões judiciais e o aprimoramento da legislação, em decorrência das diversas eventualidades possíveis como aquelas referentes à interrupção da gravidez. Expande-se, cada vez mais, as fronteiras geográficas da bioética, com a realização de seminários que examinam o relacionamento das conquistas biológicas e médicas, com a moral e o direito. O ensino da bioética é cada vez mais importante tendo em vista as repercussões das pesquisas científicas no mundo moderno.

Vale, ainda, destacar que, no último século, o desenvolvimento biotecnológico está intimamente ligado ao desenvolvimento econômico e à criação de uma sociedade de consumo e com isso, práticas que são desenvolvidas no campo da biomedicina são muitas vezes aplicadas com o único intuito de gerar lucro, independente de infração ao princípio da dignidade da pessoa humana. Por isso, cabe salientar a importância que o Direito assume na sociedade como protetor desse direito fundamental em uma época de grandes desafios como a atual.

 

Considerações Finais

Pode-se constar, no presente trabalho, que a biotecnologia pode causar danos inimagináveis a sociedade moderna. É possível que a biotecnologia seja a forma de melhor beneficiar a qualidade de vida das pessoas, mas para isso terá que ser revista quanto ao seu aspecto ético e legal.

A bioética pode apresentar respostas aos desafios das tecnologias da vida, mas para tanto terá, a partir de seus princípios, ser melhor estudada e aprofundada no mundo científico e acadêmico.

Quando ao princípio da dignidade da pessoa humana, este ainda é uma das maiores garantias que o direito contemporâneo concedeu aos seus cidadãos. É um dos marcos do sistema jurídico atual, porém também carece de um melhor aprofundamento e efetivação na sociedade.

Ressalta-se para os benefícios que a biotecnologia pode trazer a sociedade, e alerta-se para a falta de estudos e legislações sobre o assunto.

 


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2CLOTET, Joaquim; FEIJÓ, Anamaria Gonçalves dos Santos; OLIVEIRA, Marilia Gerhardt de. Bioética: uma visão panorâmica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005. p. 16.

3PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Cristian de Paul. Problemas atuais de bioética. 4. ed. São Paulo: Loyola, 2002. p. 13.

4SOARES, André Marcelo M.; PIÑEIRO, Walter Esteves. Bioética e biodireito: uma introdução. Rio de Janeiro: União Social Camiliana, 2002. p. 19.

5SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite dos. O equilíbrio de um pêndulo: bioética e a lei: implicações médico-legais. São Paulo: Ícone, 1998. p. 60.

6CLOTET, Joaquim; FEIJÓ, Anamaria Gonçalves dos Santos; OLIVEIRA, Marilia Gerhardt de. Bioética: uma visão panorâmica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005. p. 16-7.

7BELLINO, Francesco. Fundamentos da Bioética: aspectos antropológicos, ontológicos e morais. Tradução de Nelson Souza Canabarro. Bauru, (SP): EDUSC, 1997. p. 198.

8CLOTET, Joaquim; FEIJÓ, Anamaria Gonçalves dos Santos; OLIVEIRA, Marilia Gerhardt de. Bioética: uma visão panorâmica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005. p. 17-8.

9CLOTET. Op. Cit., p. 18.

10SILVA, Patrícia Bressan da. Aspectos semiológicos do direito do ambiente. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 12.

11SCHRAMM, Fermin Roland. As Diferentes Abordagens da Bioética. In: PALÁCIOS, Marisa; MARTINS, André; PEGORARO, Olinto Antonio. Ética, ciência e saúde: desafios da bioética. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002. p. 42.

12Tradução: “boa morte”.

13SEGRE, Marco; COHEN, Claudio. Bioética. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: EDUSP, 2002. p. 41.

14OLIVEIRA, Simone Born de. Da bioética ao direito: manipulação genética & dignidade humana. Curitiba, PR: Juruá, 2002. p. 46.

15 MATURANA, Humberto R.; VARELA, Francisco J. A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. 2. ed. São Paulo: Palas Athena, 2002. p. 269.

16PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Cristian de Paul. Problemas atuais de bioética. 4. ed. São Paulo: Loyola, 2002. p. 43.

17OLIVEIRA, Simone Born de. Da bioética ao direito: manipulação genética & dignidade humana. Curitiba, PR: Juruá, 2002. p. 58.

18OLIVEIRA. Op. Cit., 65-6.

19BRAUNER, Maria Claudia Crespo; BÖLTER, Serli Genz. O Ser Humano e o Corpo: contribuições da bioética e do biodireito para a proteção dos direitos de personalidade. In: PEREIRA, Agostinho Oli Koppe; CALGARO, Cleide. Direito ambiental e biodireito: da modernidade à pós-modernidade. Caxias do Sul, RS: EDUCS, 2008. p. 187.

20DINIZ, Maria Helena. O estado atual do Biodireito. 2. ed. São Paulo, SP: Saraiva, 2002. p. 766.

21KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: Edição 70, 2000. p. 59.

22SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 2. ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 32-4.

23MARTINS, Flademir Jerônimo Belinati. Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional fundamental. Curitiba, PR: Juruá, 2003. p. 123.

24SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org). Dimensões da Dignidade: ensaios de filosofia do direito e direito constitucional. Porto Alegre, RS: Livraria do Advogado, 2005. p. 22-3.

25JACINTHO, Jussara Maria Moreno. Dignidade humana: princípio constitucional. Curitiba, PR: Juruá, 2006. p. 250.

26SÉGUIN, Elida. Biodireito. 4. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 50.

27SILVA, Reinaldo Pereira. Introdução ao biodireito: investigações político-jurídicas sobre o estatuto da concepção humana. São Paulo, SP: LTr, 2002. p. 192.

28COSTA, Judith Martins. As interfaces entre a Bioética e o Direito. In: CLOTET, Joaquim. Bioética. Porto Alegre: PUCRS, 2001. p. 74.

29Quanto a pesquisa, é cabível a definição de Leo Pessini e Christian Barchifontaine. “O termo pesquisa diz respeito a uma classe de atividades cujo objetivo é desenvolver ou contribuir para o conhecimento generalizável. O conhecimento generalizável consiste em teorias, princípios ou relações, ou no acúmulo de informações sobre os quais estão baseados, que possam ser corroboradas por métodos científicos aceitos de observação e inferência. No presente contexto, “pesquisa” inclui estudos, tanto médicos como comportamentais, relativos a saúde humana. Geralmente a palavra “pesquisa” é modificada pelo adjetivo “biomédica”, para indicar que se refere a pesquisa relacionada à saúde” In: PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Cristian de Paul. Problemas atuais de bioética. 4. ed. São Paulo: Loyola, 2002. p. 139.

30BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Vida humana e ciência: complexidade do estatuto epistemológico da bioética e do biodireito. Normas internacionais da bioética. In: LEITE, Eduardo de Oliveira (Coord). Grandes temas da atualidade: bioética e biodireito. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 176-7.

Guilherme Bortolanza

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