A ação de depósito e os contornos da jurisprudência dos tribunais superiores: a posição hierárquica dos Tratados Internacionais

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Alexandre Walmott Borges1

Bernardo Morais Cavalcanti2

Gustavo Kenner Alcântara3

 

Resumo. O artigo analisa as principais alterações e limitações promovidas pelos Tribunais Superiories brasileiros (notadamente o STF) nas possibilidades de decretação de prisão do depositário infiel. No texto há a análise da forma como a ação de depósito, o específico instrumento definido pelas normas processuais civis para a restrição da liberdade em função de não adimplemento de obrigação civil, vem se acomodando às novas interpretações dadas pelos Tribunais nacionais. As novas interpretações são influenciadas por principiologia dos Direitos Humanos e Direitos Fundamentais limitando as possibilidades de decretação (ou, no limite, impossibilitando a aplicação por se considerar sacrifício demasiado dos Direitos Humanos Fundamentais).

Abstract. This study analyses the main changes and limitations promoted by superior courts in Brazil (mainly the Federal Supreme Court) regarding the possibilities of arrest for nonfulfillment of the duties of the judicial depositary. The analysis focuses on the way in which the deposit lawsuit, the specific procedure defined by Brazilian law to restrict freedom for noncompliance with civil obligations, has been under adaptation to the recent interpretations given by Brazilian superior courts. These new viewpoints have been influenced by human rights principles which limit the possibilities for detainment due to debt.

  1. Ação de depósito. A ação de depósito é o meio para a satisfação do depositante oferecendo-lhe a via adequada para reaver a coisa deixada em depósito. Para o melhor entendimento da matéria é indispensável que façamos a abordagem da figura do depósito nas previsões constantes do Código Civil Brasileiro 2002. No CC, as múltiplas possibilidades de depósito hão de surgir dos artigos 627 a 652. A disciplina inicial sobre esta matéria pode ser obtida da seguinte maneira:

  1. Depósito voluntário – por expressão da vontade das partes.

  2. Depósito necessário – por expressão de disposição legal ou em virtude de calamidade (embora, neste caso, não deixe de ser, também, legal, embora com o quê de surgir de evento e situação sui generis).

Na primeira hipótese, do depósito voluntário, o depositário recebe a coisa, guardando-o, até a reclamação do depositante. Não ocorrendo o adimplemento pelo depositário, é que o depositante poderá se valer da ação de depósito para a satisfação. Noutras palavras, com a ação de depósito, busca o titular reaver bem ou coisa entregue a depósito.

Entende-se que o depósito pode surgir por determinação judicial, neste caso funcionando o depositário como auxiliar do juízo para a guarda da coisa.

Como ilustraremos no próximo ponto, a regra do depósito é que, tão pronto o depositante solicite, e não havendo causa justificadora para retenção, deverá o depositário entregar a coisa. É consequência do vínculo que o depositário empregue todo o zelo e cuidado na conservação da coisa e na entrega dos frutos produzidos pela mesma coisa.

  1. Pólo ativo e pólo passivo. O Autor da demanda será o depositante. É bom distinguir a figura do depositante d proprietário. Efetivamente, a ação pode ser proposta por outra pessoa além do proprietário. O que deve nortear a atenção para a definição do autor é a verificação de quem entregou a coisa em depósito. Importante é que a coisa, por alguma razão, de direito e de fato, se lhe relacione de tal maneira que possa entregá-la, mediante contrato, e depois reavê-la. O STJ entendeu inaplicável a ação de depósito nas situações que a coisa tenha sido mera garantia, nunca tendo sido, de fato ou de direito, pertencente à órbita do pretenso autor para que pudesse entregá-la a alguém – RESP 218.1181:

A autora celebrou em 04/08/1994, com a cooperativa agrícola, contrato de compra e venda e adendo, cujo objeto era a aquisição de 2.400.000 quilos líquidos de soja em grãos, correspondentes à safra de 1994/1995, comprometendo-se a cooperativa a entregar a mercadoria até 30/03/1995, mediante adiantamento de determinada importância, e, com garantia do cumprimento da avença, penhor agrícola de 2.400 toneladas métricas de milho plantadas em propriedade da dita cooperativa. O recorrido foi nomeado depositário fiel da garantia (2.400 toneladas métricas de milho). Inadimplido o contrato alusivo à soja, após notificação, foi movida ação de execução contra a cooperativa, que nomeou à penhora bens imóveis alienados em favor do banco e insuficientes ao pagamento, o que gerou a ação de depósito para a entrega da mercadoria garantida. Em 1º grau, o réu foi condenado a entregar a mercadoria, sob pena de prisão, ou seu equivalente em dinheiro, decisão confirmada em grau de apelação. O milho do qual é depositário o réu não pertence ou jamais pertenceu à empresa autora, porém foi dado em garantia de dívida contraída pela cooperativa, caso não honrasse com o contrato de compra e venda de safra futura de soja prometida à recorrida. O caso não é de depósito clássico nem de armazém geral, a ele equiparado, situações em que, aí sim, se justifica inclusive a prisão do depositário. Portanto, incabível a ação de depósito e, por conseguinte, a decretação da prisão. A Turma conheceu em parte do recurso e deu, nessa parte, provimento, para julgar improcedente a ação.

No pólo passivo, deve figurar aquele que se identifica como depositário: aquele que deve restituir a coisa. Portanto, o maior cuidado deve ser dedicado a quem efetivamente detém, sob guarda, em decorrência de obrigação legal, judicial ou contratual a coisa objeto da demanda. Aquele que ficou encarregado pela coisa, o depositário, é o réu na possível demanda. 2

Como estamos tratando de relação obrigacional nada impede que o réu seja pessoa jurídica. Basta que esta pessoa tenha assumido a responsabilidade. Como não há prisão de pessoa jurídica, responderá aquele que, pelas indicações da constituição societária empresarial, ou do vínculo de trabalho da pessoa jurídica, ou dos estatutos da associação, é o responsável pela guarda do bem. Veja-se o julgado envolvendo pessoa jurídica3:

Agravo regimental. Agravo de instrumento. Depósito. Coisa fungível. Ação movida contra armazém. Parte estranha à operação financeira garantida pela coisa depositada. Possibilidade. O depósito de coisa fungível pode dar ensejo ao procedimento do art. 901 e seguintes do CPC, quando a depositária é empresa de armazenagem estranha ao empréstimo (EGF) garantido pela coisa depositada. (STJ. RESP. Areg. AG. 259475 DJ. 01/07/2005).

  1. Petição inicial. Na inicial, deve o autor instruí-la com a prova literal do depósito. Isso significa a demonstração cabal, por escrito, do depósito (sob pena de demandar instrução probatória mais aquilatada, para provar o próprio vínculo do depósito). Além da demonstração literal do depósito, deve apresentar, caso não conste da documentação, o valor da coisa. É fácil entender o porquê da estipulação do valor da coisa. É o apontamento indispensável para verificar o possível equivalente monetário da coisa e o grau de responsabilidade do depositário (inclusive para verificar o quantum da coisa já paga, por exemplo). Na inicial, deverá o autor pedir:

  1. a entrega da coisa;

  2. o depósito em juízo;

  3. a consignação do valor – equivalente monetário;

  4. pena de prisão.

Na resposta, o réu poderá alinhar as seguintes condutas:

  1. depositar a coisa;

  2. consignar o equivalente monetário da coisa;

  3. contestar – não depositando ou consignando;

  4. contestar – depositando ou consignando.

O prazo para a oferta da contestação é de cinco dias. O termo resposta do réu deve ser entendido em toda a amplitude, comportando todas as modalidades de resposta previstas na legislação processual – reconvenção, ação declaratória, entre outras.

  1. Busca e apreensão. Como o objetivo da ação de depósito é reaver a coisa, nada impede o credor de promover os meios necessários à localização. Por isso, a previsão do CPC, no artigo 905, permitindo ao credor buscar e apreender a coisa. O limite da busca e apreensão encontra-se na própria existência da coisa ou sua deterioração. O dispositivo do CPC sobre a finalidade da ação de depósito – reaver a coisa – é que possibilita, inclusive, a conversão de ação de busca e apreensão em ação de depósito.

Civil e processual civil – alienação fiduciária – ação de busca e apreensão – conversão em ação de deposito – possibilidade.I – a doutrina e a jurisprudência dos tribunais afirmam entendimento no sentido de que, encontrando-se os bens em garantia, sob as normas disciplinadoras da alienação fiduciária, e sendo estes ou partes destes danificados ou considerados sucatas, pode o credor, para obter a satisfação de seu credito fiduciário, requerer a conversão do pedido de busca e apreensão, nos mesmos autos, em ação de deposito (art.4º., do decreto-lei nº 911/69).Impossível, nestas circunstancias, pretender-se a busca e apreensão daqueles, em face do estado precário. Precedentes do STF. II – recurso conhecido e provido. (STJ. RESP nº 51.522, DJ 07/11/1994).

  1. Natureza da ação. A sentença da ação de depósito apresenta, primeira e essencial conseqüência, a natureza de condenação: devolver a coisa ao depositante. Como afirmam Wambier, Almeida e Talamini, a ação de depósito apresenta também natureza executória. Fazem tal afirmação com base no CPC, art. 904: mandado para entrega da coisa, em 24 horas, ou equivalente em dinheiro. Os mesmos autores mencionam a figura da execução subsidiária (que vimos, acima, na ilustração sobre a prisão do depositário). Esta execução apresenta-se nos casos em que: 4

  1. não houve a devolução da coisa;

  2. não houve a entrega do equivalente monetário;

  3. assim, não se alcançou o objetivo – reaver a coisa;

  4. seguirá a ação para a busca do crédito decorrente do valor da coisa;

  5. torna-se ação para executar quantia certa – a quantia da coisa não reavida.

Cintra Pereira tece considerações sobre o objeto jurídico da ação de depósito: 5

  1. o objeto é a coisa móvel;

  2. excepcionalmente pode ser imóvel;

  3. decorre de contrato de depósito – intuitu personae;

  4. é contrato real sendo imperiosa a entrega de coisa, além da vontade do acordo.

Tais critérios são fundamentais para entendermos outras classificações que se lhe empregam na doutrina. E estes critérios são de observação criteriosa no círculo de expressões empregadas: ação real, contrato real, contrato intuitu personae. Como o depositário obrigou-se a restituir a coisa, a ação de depósito garante a satisfação do credor – depositante – com a volta da coisa à órbita de detenção sua.

Para Nery Jr. e Nery a ação de depósito é ação real, fundada na obrigação de devolução da coisa do proprietário. Wambier, Talamini e Almeida indicam que a ação tem natureza pessoal, permitindo, inclusive, seja proposta por outro que não o proprietário.6

  1. Depositário e infidelidade – Situação anterior ao HC 90172, julgado em 05 de junho de 2007. Ponto característico desta ação era a previsão da prisão civil para atender à obrigação do depósito. A prisão por dívida decorria da infidelidade do depositário, do depositário infiel, aquele que não honrou a guarda da coisa. Encaixa-se, é verdade, numa das duas únicas possibilidades admitidas pelo direito brasileiro de prisão (de acordo com o inciso LXVII, artigo 5º da CF):

  1. Uma, a depositário infiel;

  2. A outra, a do inadimplemento de obrigação alimentícia.

Notavamos, na jurisprudência nacional, progressiva relativização das possibilidades do credor-depositante solicitá-las e do julgador concede-las ou determiná-las. Assim, somente poderá servir como ultima ratio à satisfação de obrigação, não podendo ser utilizada indiscriminadamente. O contorno dado pelo STF sobre a matéria respalda este entendimento:

A prisão civil, decretada pelo prazo de até um ano por infidelidade do depositário, há de estar devidamente fundamentada. Na hipótese, o paciente encontra-se custodiado há mais de noventa dias. O bem objeto do depósito foi alienado, não podendo mais ser entregue. A ação de execução já foi proposta. Não pode a medida constritiva transformar-se em punição. Habeas corpus deferido para desconstituir a prisão. (HC 87.638, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 4-4-06, DJ 02/06/2006).

  1. Deveria ocorrer correspondência entre a coisa e a obrigação contratual de depósito. Alterações no vínculo, afastando a coisa e a obrigação real, inibem a possibilidade de prisão. Isto significa que a prisão deveia ser garantia à entrega da coisa e não um ônus para toda e qualquer dívida, respeitando-se a dicção do LXVII, art. 5º, CF, de que não há prisão por dívida; a prisão garante a entrega da coisa ou, sucessivamente, do equivalente em dinheiro – HC 11.521: 7

Em ação de execução por título extrajudicial, o devedor foi nomeado depositário de várias reses, porém, posteriormente, celebrou acordo com o credor, que, se descumprido, ensejaria a execução nos próprios autos. Inadimplente, foi decretada sua prisão civil. A Turma concedeu a ordem de habeas corpus, entendendo que, com o acordo, deu-se a novação e a descaracterização do depósito, impossibilitando a decretação da prisão, que, se cumprida, representaria prisão por dívida

  1. A marcha processual do cumprimento ou execução, demonstrando a possibilidade de satisfação da dívida, impediria a prisão com caráter punitivo – RESP. 269.293: 8

A Seção, por maioria, proveu parcialmente o recurso, entendendo que, ajuizada a ação de depósito decorrente de busca e apreensão e destruído o bem alienado fiduciariamente, o autor pode promover a execução nos próprios autos da ação de depósito, condenando-se o réu, no caso, ao pagamento do equivalente em dinheiro – valor do bem –, ex vi do art. 906 do CPC. Precedentes citados: RESP 156.965-SP, DJ 3/5/1999, e RESP 160.129-SP, DJ 17/5/1999.

  1. Dever-se-ia proceder à análise da boa fé do depositário, avaliando-se as condições objetivas e subjetivas do depósito – RHC 15.756: 9

A origem do depósito, liame que liga a recorrente ao decreto prisional, foi a quebra de um compromisso por ela assumido perante o juiz de desempenhar o munus de ser depositária de bens penhorados. Tais bens foram furtados, mas o fato não foi comunicando ao Juiz. Quanto à impossibilidade de apresentação dos bens dados para depósito, há diferentes posições em face da atitude assumida pelo depositário. Se houver dolo ou culpa no dever de guarda ou de vigilância, responderá o depositário ao juízo da execução. Diferentemente, se não se houver com culpa, não poderá ser constrangido com ameaça de prisão. A depositária negligenciou do seu dever, não comunicando ao juiz das execuções o destino dos bens. É claro que deve responder por eles, efetuando o depósito do respectivo valor sem, entretanto, passar pelo constrangimento de uma permanência na prisão. Na hipótese, não se há de cogitar de punição com respaldo no Pacto de São José da Costa Rica, legislação referente aos depósitos oriundos de vínculo contratual, não se estendendo à legislação dos depositários judiciais. A Turma deu parcial provimento ao recurso, para reformar o acórdão e conceder a ordem de habeas corpus, sem prejuízo de efetuar a paciente o depósito do valor dos bens.

  1. O bem deveria oferecer a possibilidade real de ser reavido (se já pereceu, se se encontra em estado lastimável, não há bem a reaver). Conforme o julgado do STJ – RESP. 654.741: 10

O Tribunal a quo entendeu que, encontrando-se o bem em estado de sucata e o credor recusando-se a recuperá-lo por entender sem valor econômico, houve perda do objeto e, por conseqüência, perece a ação de depósito em razão do desaparecimento da responsabilidade depositária, sem prejuízo da responsabilidade do devedor pelo débito. A Turma, ao prosseguir o julgamento, por maioria, conheceu do recurso e deu provimento a ele, concluindo que a localização do bem dado em garantia em estado de sucata pode ser equiparada à situação de não-localização, o que autoriza, por conseqüência, a conversão da ação de busca e apreensão em ação de depósito. O credor fiduciário, para obter a satisfação de um crédito, pode requerer a conversão do pedido de busca e apreensão, nos mesmos autos, em ação de depósito quando o bem dado em garantia for considerado sucata. Precedentes citados do STF: RE 102.242-MG, DJ 1º/7/1988; do STJ: REsp 51.522-MT, DJ 7/11/1994.

A prisão também sofria limitações em decorrência da natureza do bem depositado, limitando-se a possibilidade ao caso de bem infungível, pela natureza de tal bem. Bens fungíveis submeter-se-iam a outro status de satisfação do depositante – res quae pondera, numero, mensura consistunt. Esta situação dissímel entre bem fungível e infungível decorre de que bens fungíveis: 11

Nota-se que o STJ deu início a relativização da ação de depósito dentro do complexo normativo de satisfação do direito do depositante, exigindo proporcionalidade entre a pretensão e as condições objetivas do devedor em saldá-la (inclusive na análise da boa fé do devedor), vedando a exigência de comportamentos heróicos do réu para a entrega do bem – RHC. 17.711: 12

Não caracteriza infidelidade do depósito judicial o descumprimento da ordem de remoção dos bens constritos por falta de recurso financeiro.

Outro problema discutido na jurisprudência e doutrina era o da indispensável precedência que deveria ter a ação de depósito para a decretação de prisão. Entende parte da jurisprudência que esta ação era indispensável para qualquer pretensão prisional feita pelo autor. Assim, pedidos prisionais feitos, por exemplo, em execução, e não em ações de depósito, não poderiam resultar em decretação de prisão (ainda que presente a infidelidade do depositário). O entendimento que gozava de maior aceitação é o da dispensabilidade de ação de depósito.

Há casos eloquentes, em que a discussão sobre a necessidade da promoção de ação de depósito acabava por ser afastada (em vista das peculiaridades de certos casos). No caso de inadimplemento do depositário judicial (vê-se logo que se exclui o depósito de origem convencional) dispensava-se a propositura da ação, já que o depositário judicial é auxiliar do juízo.

Habeas corpus. Execução fiscal. Prisão civil. Depositário infiel. Ação de depósito. Prescindibilidade. Precedentes desta corte. Súmula 619/STF. 1. Tratam os autos de habeas corpus impetrado em favor de Antônio Carlos Schneider Pinho tendo por ato coator decisão que decretou a sua prisão civil (depositário infiel) em autos de ação de execução fiscal que foi movida pelo Estado do Rio Grande do Sul. A ordem foi concedida pelo TJRS à luz do entendimento segundo o qual não cabe a prisão do depositário infiel nos autos de execução porque essa decretação deve ser precedida de ação de depósito, na forma dos arts. 901 a 906 do CPC. Inconformado, o Estado movimentou recurso especial alicerçado na alínea “c” do permissivo constitucional, apontando dissídio pretoriano com julgados emanados desta Corte. 2. É legal a prisão civil do depositário que não apresenta os bens sujeitos à sua guarda quando solicitado pelo Juízo. 3. É tranqüila a posição jurisprudencial desta Corte no sentido da prescindibilidade da ação de depósito como medida para viabilizar a decretação de prisão do depositário infiel nos autos de execução. Face a esse entendimento, configurado está que a ordem de coerção prisional do paciente não se manifesta como constrangimento ilegal e abusivo. 4. Precedentes. Súmula 619/STF. 5. Recurso especial provido.

  1. O depositário infiel e o Pacto de San Jose. Matéria que causou rica discussão foi a recepção do Pacto de San Jose de Costa Rica pelo ordenamento nacional. Vários julgados nas instâncias ordinárias já entendiam que a incorporação ao ordenamento nacional havia revogado a possibilidade da prisão do depositário infiel. O STF, em um primeiro momento, mantendo a teoria da paridade normativa e da hierarquia legal dos documentos de direito internacional incorporados à ordem interna, manifestou-se no seguinte sentido:

Esta Corte, por seu Plenário (HC 72.131), firmou o entendimento de que, em face da Carta Magna de 1988, persiste a constitucionalidade da prisão civil do depositário infiel em se tratando de alienação fiduciária, bem como de que o Pacto de São José da Costa Rica, além de não poder contrapor-se à permissão do artigo 5º, LXVII, da mesma Constituição, não derrogou, por ser norma infraconstitucional geral, as normas infraconstitucionais especiais sobre prisão civil do depositário infiel. Esse entendimento voltou a ser reafirmado recentemente, em 27-5-98, também por decisão do Plenário, quando do julgamento do RE 206.482. Dessa orientação divergiu o acórdão recorrido. Inconstitucionalidade da interpretação dada ao artigo 7º, item 7, do Pacto de São José da Costa Rica no sentido de derrogar o Decreto-Lei 911/69 no tocante à admissibilidade da prisão civil por infidelidade do depositário em alienação fiduciária em garantia. (RE 253.071, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em 29-5-01, DJ de 29-6-01). No mesmo sentido: RE 250.812, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 1º-2-02; HC 75.977, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em 5-5-98, DJ de 3-3-00; HC 75.687, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 10-3-98, DJ de 20-4-01; HC 73.044, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 19-3-96, DJ de 20-9-96).

A decisão do STF mereceu censura de parte considerável da doutrina e inclusive reformou expressivo número de julgados que entendiam pela revogação da possibilidade de prisão do depositário. A citada teoria da paridade normativa adotada firma o seguinte raciocínio:

  1. Normas de direito internacional recepcionadas ingressam como leis ordinárias;

  2. Normas de direito internacional ingressam no sistema como leis ordinárias pois são processadas pelo Congresso Nacional com equivalentes desta norma;

  3. O Pacto de San Jose também foi recepcionado como lei ordinária;

  4. O Pacto, recepcionado como lei ordinária, não pode revogar norma constitucional – respeito à hierarquia do sistema.

Eis manifestação do STF neste sentido, reconhecendo a paridade entre a lei (no caso a figura à época existente, Decreto-lei) e o tratado recepcionado (Recurso Extraordinário n° 80004 – DJ de 29 de dezembro de 1977, p. 9433, DJ de 19 de maio de 1978, p. 03468, Ementário v. 01083-02, p. 00915, RTJ v. 00083-03, p. 00809):

Convenção de Genebra, lei uniforme sobre letras de câmbio e notas promissórias, aval aposto a nota promissória não registrada no prazo legal, impossibilidade de ser o avalista acionado, mesmo pelas vias ordinárias. Validade do decreto-lei n° 427, de 22.01.1969. Embora a convenção de Genebra que previu uma lei uniforme sobre letras de câmbio e notas promissórias tenha aplicabilidade no direito interno brasileiro, não se sobrepõe ela as leis do pais, disso decorrendo a constitucionalidade e conseqüente validade do dec. Lei nº 427/69, que institui o registro obrigatório da nota promissória em repartição fazendária, sob pena de nulidade do título. Sendo o aval um instituto do direito cambiário, inexistente será ele se reconhecida a nulidade do título cambial a que foi aposto. Recurso extraordinário conhecido e provido.

Com a EC nº 45 há a possibilidade do Constituinte recepcionar normas de direito internacional com status de norma constitucional. Este novo procedimento não tem a possibilidade de erguer a norma recepcionada anteriormente ao patamar de norma constitucional. Assim, o pacto mantém-se como equivalente à lei ordinária.

Mais recentemente, no voto proferido no Recurso Extraordinário nº 466.343, o Supremo se inclina à tese diversa:

Após o voto do Senhor Ministro Cezar Peluso (Relator), que negava provimento ao recurso, no que foi acompanhado pelo Senhor Ministro Gilmar Mendes, pela Senhora Ministra Cármen Lúcia e pelos Senhores Ministros Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Carlos Britto e Marco Aurélio, pediu vista dos autos o Senhor Ministro Celso de Mello.

A situação foi paradigmática e alterou completamente situação anterior sobre o status dos tratados internacionais de direito humanos no HC nº 90.172 (DJ de 05 de junho de 2007):

Habeas Corpus. 1. No caso concreto foi ajuizada ação de execução sob o nº 612/2000 perante a 3ª Vara Cível de Santa Bárbara D’Oeste/SP em face do paciente. A credora requereu a entrega total dos bens sob pena de prisão. 2. A defesa alega a existência de constrangimento ilegal em face da iminência de expedição de mandado de prisão em desfavor do paciente. Ademais, a inicial sustenta a ilegitimidade constitucional da prisão civil por dívida. 3. Reiterados alguns dos argumentos expendidos em meu voto, proferido em sessão do Plenário de 22.11.2006, no RE nº 466.343/SP: a legitimidade da prisão civil do depositário infiel, ressalvada a hipótese excepcional do devedor de alimentos, está em plena discussão no Plenário deste Supremo Tribunal Federal. No julgamento do RE nº 466.343/SP, Rel. Min. Cezar Peluso, que se iniciou na sessão de 22.11.2006, esta Corte, por maioria que já conta com sete votos, acenou para a possibilidade do reconhecimento da inconstitucionalidade da prisão civil do alienante fiduciário e do depositário infiel. 4. Superação da Súmula nº 691/STF em face da configuração de patente constrangimento ilegal, com deferimento do pedido de medida liminar, em ordem a assegurar, ao paciente, o direito de permanecer em liberdade até a apreciação do mérito do HC nº 68.584/SP pelo Superior Tribunal de Justiça. 5. Considerada a plausibilidade da orientação que está a se firmar perante o Plenário deste STF – a qual já conta com 7 votos – ordem deferida para que sejam mantidos os efeitos da medida liminar.

Os votos mencionados, no Recurso Extraordinário e Habeas Corpus, consideram as normas de direito internacional, ainda que não recepcionadas pelo iter do § 3º, artigo 5º, superiores à lei. Noutras palavras, superiores à lei porém inferiores à Constituição.

Atualmente, acompanhando entendimento Supremo, a jurisprudência brasileira definiu que os tratados internacionais, em regra, integram o ordenamento jurídico brasileiro com status de lei ordinária. Todavia, em se tratando de tratado internacional de direitos humanos, depende do quorum de aprovação. Caso siga o §3o do art. 5o da Constituição, com aprovação de três quintos dos membros do Poder Legislativo em dois turnos votação na duas casas do Congresso Nacional, o tratado ingresso com status de Emenda Constitucional. Seguindo a aprovação por meio de Decreto Legislativo, sem qualquer procedimento especial, possui status supralegal, conforme o caso do pacto de san jose.

Posteriormente, no sentido da decisão do STF, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 419, com a seguinte redação “Descabe a prisão civil do depositário judicial infiel”.

Por final, após diversas discussões, o STF arrematou o tema com a Súmula Vinculante n. 25, nos seguintes termos, “É ilícita a preisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito”.

Assim, percebemos que o atual contexto do tema está bastante consagrado, principalmente por se tratar de Súmula Vinculanete, tornando mais rígida a orientação e impedindo decisões em sentido contrário. Portanto, qualquer seja a modalidade do tratado de direitos humanos, possui ele status, no mínimo, supralegal.

 

 

 

1 Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor dos programas de mestrado em Direito da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Advogado.

2 Mestrando em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Professor do curso de Graduação em Direito e Administração de Empresas da Faculdade Pitágoras de Uberlândia. Pesquisador. Advogado.

3 Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia. Ex-bolsista de Iniciação Científica CNPQ. Advogado.

1 http://www.stj.gov.br/SCON/infojur/doc.jsp?livre=@cod=0213.

2 A regra é de que o depositário não possa sub-depositá-la. A razão é que o contrato de depósito é intuitu personae.

3 Este julgado apresenta uma peculiaridade: trata do depósito de coisa fungível. A regra consagrada na legislação brasileira é de que o depósito seja de coisa infungível. Nesta hipótese temos o chamado depósito impróprio. A jurisprudência admite a prisão do depositário de bens fungíveis em hipóteses muito restritas.

4 Op. cit. p. 155-156.

5 PEREIRA, C. CPC, art. 890. In: MARCATO, A. C. Código de processo civil interpretado. 2. ed. São Paulo: Atlas. P. 2.437-2.438.

6 NERY JR., N; NERY, R. M. de A. Op. cit. p. 987. WAMBIER, L. R. et. al. op. cit. p. 153.

7 http://www.stj.gov.br/SCON/infojur/doc.jsp?livre=@cod=0057

8 http://www.stj.gov.br/SCON/infojur/doc.jsp?livre=@cod=0095

9 http://www.stj.gov.br/SCON/infojur/doc.jsp?livre=@cod=0207

10 BRASIL. STJ. Informativo n. 310. disponível em: <http://www.stj.gov.br/SCON/infojur/doc.jsp?livre=@cod=0310>. Acesso em: 01. jun. 2007.

11 GOMES, O. Introdução ao direito civil. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1974. p. 245.

12 BRASIL. STJ. Informativo n. 211. disponível em: <http://www.stj.gov.br/SCON/infojur/doc.jsp?livre=@cod=0251>. Acesso em: 30. mai. 2007.

Alexandre Walmott Borges – Bernardo Morais Cavalcanti

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