Trabalho Voluntário,Piedoso e Religioso e “Venire contra factum proprium”

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A expressão latina “nemo potest venire contra factum proprium” significa, grosso modo, “ninguém pode contravir(ir contra) o próprio fato”, isto é, não pode se obrigar a alguma relação bilateral no comércio jurídico e, sem razão fundada, desdizer-se, ir contra as primeiras declarações que, prestadas sponte propria, geraram na contraparte uma expectativa legítima de que as coisas seriam cumpridas talqualmente combinadas. O venire quebra a boa-fé objetiva, e se aplica, às inteiras, ao contrato de trabalho, cujo elemento imaterial é justamente a fidúcia, isto é, a confiança que uma parte deposita nas reais intenções da outra.
São comuns no foro trabalhista ações pretendendo o reconhecimento jurídico do vínculo de emprego de voluntários ou de pessoas ligadas a entidades filantrópicas, beneficentes, religiosas ou assistenciais por vínculo social ou religioso. O trabalho voluntário[1]refoge ao âmbito do direito do trabalho. Entende-se por voluntário todo trabalho não remunerado prestado por pessoa física a entidade pública de qualquer natureza, ou a instituição privada sem fins lucrativos, que tenha objetivos cívicos, culturais, educacionais, científicos, recreativos ou de assistência social. Já que ausente a onerosidade(remuneração), a lei não estipula se no trabalho voluntário deve ou não haver subordinação jurídica. O trabalho voluntário é prestado às políticas públicas ou sociais em atenção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice, assim como a pessoas portadoras de necessidades especiais, à criança e ao adolescente carentes e aos programas de assistência educacional ou de saúde gratuitos. Não gera vínculo de emprego[2] nem acarreta qualquer obrigação de natureza trabalhista, tributária ou previdenciária ao tomador desses serviços. As despesas que o prestador do serviço voluntário comprovadamente tiver contraído no desempenho do serviço voluntário devem ser ressarcidas[3], o que evidentemente não tem natureza jurídica de salário. O trabalho voluntário é em tudo semelhante ao trabalho normal, com pelo menos três peculiaridades: é gratuito, exercido sem subordinação jurídica e a prazo certo. Não configura contrato de trabalho porque o contrato individual de trabalho é o acordo tácito, ou expresso,que corresponde à relação de emprego[4]. Sendo expresso, pode ser escrito ou verbal. Se tácito, as partes efetivamente não combinam o contrato, mas comportam-se de tal modo na execução de suas cláusulas espontâneas que a lei, a priori, diz que aquele comportamento deve ser interpretado como um autêntico contrato de trabalho. Depura-se o conceito de contrato de trabalho do exame dos conceitos de empregador e de empregado[5]. Empregador é a empresa(atividade), individual ou coletiva que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal dos serviços. Empregado é a pessoa física que presta serviços salariados e não-eventuais juridicamente subordinados a outra pessoa física, formal ou jurídica. Para que o trabalho voluntário não abra portas à fraude, a lei exige assinatura de um termo de adesão entre a entidade pública ou privada e o prestador do serviço voluntário[6]. Esse termo não configura contrato de trabalho. Abstraídas as hipóteses de fraude, o trabalho tipicamente voluntário não se iguala à prestação de serviços subordinados porque é gratuito, não exige subordinação jurídica e é sempre a prazo certo. O prestador do serviço voluntário sabe, desde o início, que a prestação do serviço voluntário não gera vínculo de emprego porque isso consta da própria lei do serviço voluntário porque as condições em que é prestado em nada se assemelham àquelas de um empregado em sentido estrito.
A despeito disto, ações trabalhistas pretendendo o reconhecimento de vínculo na hipótese de trabalho voluntário são comuns. É sobremodo evidente que o sedizente empregado, ao residir em juízo reclamando vínculo de emprego e indenização do “contrato” , pela CLT, contraria o fato próprio(“venire contra factum proprium”), pois quebra a confiança legítima da entidade contratante de que, tendo se comportado na assinatura do termo de adesão de trabalho voluntário com absoluta transparência, poderia razoavelmente esperar que o prestador do serviço voluntário não a demandasse posteriormente, pondo sob suspeição justamente todas aquelas certezas jurídicas que, com correttezza, deu ao tomador do trabalho voluntário no momento da adesão. Dito de outra forma, a conduta inicial do ente tomador do trabalho voluntário em nenhum momento transcendeu à pessoa da entidade contratante para despertar no prestador do trabalho voluntário qualquer expectativa legítima que não fosse a de prestar um trabalho voluntário, inteiramente gratuito, benemerente, de relevante importância social, de prazo certo e sem qualquer subordinação jurídica. Por mais que a conduta do tomador se revestisse de certo poder de ingerência nas atividades do prestador, o trabalhador voluntário não poderia, validamente, supor que estivesse sendo contratado como empregado.
Também contradizem o fato próprio aquelas ações trabalhistas em que ministros religiosos e outros professadores de fé recorrem ao judiciário pretender transmudar o vínculo de fé em de emprego, e, com isso, embolsar vultosas quantias à custa das igrejas a que pertenceram e das quais se afastaram pelo esmorecimento da fé ou por questões internas, quase sempre de foro íntimo. Para o direito, igrejas são pessoas jurídicas de direito privado[7]. Vistas em si mesmas, são comunidades morais sem fins lucrativos, estruturadas sobre normas de conduta religiosa de origem divina, que supõem regular a relação entre os homens e Deus[8]. A natureza jurídica da atividade religiosa é de estado eclesiástico. O vínculo que liga o ministro religioso e sua congregação é de ordem moral e espiritual. Se a atividade desenvolvida pelo religioso for essencialmente espiritual, desenvolvida dentro ou fora da congregação, mas sempre imbuídas do espírito de fé[9], a regulação desse trabalho se faz sob os olhos do direito canônico, e não dos do direito do trabalho porque essa atividade decorre do espírito de seita ou de voto, e não de subordinação jurídica. Esse vínculo dirige-se à assistência espiritual e moral para a divulgação da fé. Não pode ser apreçado, ainda que o religioso receba com habitualidade certos valores mensais. Tais valores destinam-se à sua assistência e subsistência e, também, para livrá-lo das inquietações mortais para que melhor possa se dedicar à sua profissão de fé. Não têm a natureza retributiva e sinalagmática do salário, em sentido estrito. O trabalhador laico, que não tem vínculo moral com a congregação, como, por exemplo, o sacristão, o zelador, o carpinteiro, os faxineiros, organistas, o decorador, os campanários etc, e que não presta serviços em caráter devotionis causa, pode celebrar contrato de trabalho com a igreja se satisfizer os pressupostos dos arts.2º e 3º da CLT. Sacerdotes, freiras, diáconos e ministros religiosos que, a par das suas funções evangélicas, prestem serviços em condições especiais como professores, enfermeiros, instrutores de educação física, de culinária,de encadernação e de ilustração, técnicos em informática, revisores e redatores, entre outras, poderão vir a ter seus vínculos de emprego reconhecidos se provarem que essas atividades não guardam qualquer relação com a religiosa[10]. Configura óbvia quebra da confiança legítima da igreja a ação trabalhista em que o religioso, deslembrado-se dos votos de fé, pede o reconhecimento jurídico do vínculo de emprego. Ao professar o voto o religioso, sabe, desde o início, que se liga à sua comunidade moral por um vínculo de fé, e não de emprego. A igreja, quando o aceita entre os seus, não se comporta de modo a despertar na confiança desse membro a impressão de que está sendo aceito como empregado, ainda que dentre as suas funções correlatas à de professar a fé sejam incluídos a divulgação e o comércio de assinaturas de revistas, anúncios de publicidade e venda de porta em porta de revistas e outros artigos religiosos.
 
 
José Geraldo da Fonseca[11]
 
 


[1] Disciplinado pela L.nº 9.608, de 18/2/98.
[2] L.nº 9.608/98, art.1º.
[3] L.nº 9.608/98, art.3º.
[4] CLT,arts.442 e 443.
[5] CLT,arts.
[6] L.nº 9.608/98, art.2º.
[7] CC/2002,art.44,IV.
[8] BARROS, Alice Monteiro de.Curso de Direito do Trabalho.Ed.RT,São Paulo,2ª ed.,2006,p.438.
[9] Ibid.pp.441.
[10] GALANTINO,Luísa. Diritto del Lavoro. Torino: Giappiachelli Editore, 2000,p.14.
[11] Juiz do Trabalho, membro efetivo da 7ª Turma do TRT/RJ.

Jose Geraldo da Fonseca

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