Responsabilidade civil do estado no direito brasileiro

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RESUMO

A presente pesquisa tem por escopo analisar as causas excludentes da responsabilidade civil extracontratual do Estado, abordando, também, aspectos gerais relativos ao tema cuja compreensão são bastante relevantes para o entendimento do objeto principal. Para tanto, trata-se inicialmente da noção geral de responsabilidade jurídica, passando-se, em seguida, a investigar a origem da responsabilidade civil do Estado, abordando o desenvolvimento das teorias que buscaram fundamentá-la. Depois, passa-se a avaliar a questão no âmbito do ordenamento jurídico brasileiro, visando definir suas características históricas, para, então, delimitar seus contornos atuais mediante a apreciação da norma constitucional consagradora da responsabilidade civil objetiva do Estado, definindo seus pressupostos e demais características que lhe atribui o texto da Constituição da República, para, ao final, analisar suas causas excludentes.

Palavras-chaves: responsabilidade civil do Estado; histórico; pressupostos; causas excludentes.

  

ABSTRACT

This research aims analyzing the causes that exclude the liability of State, covering also general aspects related to the subject whose understanding is very relevant for the understanding of the main object. For this, the general notion of legal liability is initially seen, moving then to investigate the origin of the liability of the State and the development of theories that sought to substantiate it. Hereafter it moves on to assess the issue within the Brazilian legal system, aimed at defining its historical character, to then define its current contours by assessing the standard of civil objective liability of the state, as constitutionally guaranteed, defining their assumptions and other characteristics it attaches the text of the Constitution, to, finally, analyze their exclusionary causes.

Keywords: civil liability of the state, history, assumptions, exclusionary causes.

 

 

INTRODUÇÃO

É notório que o Estado tem como função primordial atender ao interesse público, buscando, para tanto, satisfazer às necessidades de toda sociedade. Contudo, a Administração não tem como manifestar, por si só, sua vontade, de modo que, para concretizar seus objetivos, ela precisa se valer da atuação dos agentes públicos. Pode ocorrer, no entanto, de os agentes públicos, ao atuarem sob essa condição e não em suas vidas privadas, lesarem direitos de particulares, causando-lhes danos materiais ou mesmo morais, sendo tal atuação atribuída ao próprio Estado. E é nesse contexto, da atuação estatal causadora de danos, que se situa a questão da responsabilidade civil do Estado.

Verifica-se que a irresponsabilidade do Poder Público já foi tese admitida e praticada em tempos remotos. Contudo, como o Estado de Direito pressupõe a submissão do próprio Estado às leis que ele edita, atualmente resta pacífico nas sociedades ocidentais – como a brasileira – que a Administração também deve ser responsabilizada pelos danos que causar aos particulares. E a responsabilidade civil do Estado perante terceiros, da mesma forma que ocorre com os particulares, pode ser tanto contratual quanto extracontratual, sendo que esta última espécie, a responsabilidade civil extracontratual do Estado, é que será analisada no presente trabalho, enfatizando suas causas excludentes.

Uma vez apreciadas as circunstâncias gerais acerca da responsabilidade civil extracontratual do Estado, passar-se-á a tratar das suas causas excludentes, tendo como base os entendimentos da doutrina pátria, visando estabelecer as hipóteses em que a responsabilidade estatal por danos causados a particulares é afastada ou, quando for o caso, atenuada.

 

RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO NO DIREITO BRASILEIRO

 

1.1 ANÁLISE DO ARTIGO 37, § 6° DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

Afirma a doutrina que a noção de responsabilidade pode ser entendida a partir da própria origem da palavra, que vem do latim respondere, significando “responder a alguma coisa, ou seja, a necessidade que existe de responsabilizar alguém por seus atos danosos”.[1] E, buscando a origem dessa necessidade de imputar responsabilidade a alguém, conclui-se que ela decorre do dever moral de não prejudicar a outrem que está incutido na própria noção de Justiça, visando, em última análise, possibilitar a convivência social.

Nota-se, portanto, que a ideia de responsabilidade está relacionada a uma sucessão de deveres jurídicos, sendo o primeiro preexistente e direcionado indistintamente a cada membro da sociedade e o segundo decorrente da violação do primeiro e direcionado apenas ao autor da violação, ou seja, ao responsável.

A Constituição de 1988, ao determinar em seu art. 37, § 6°, que “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”, conforme consenso dos doutrinadores adotou a teoria da responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas ali indicadas, com base no risco administrativo.

A responsabilidade objetiva, como foi consignada pela Constituição brasileira vigente, possui características que facilitam sua operacionalização pelos aplicadores do direito e proporcionam maior proteção aos administrados que eventualmente sofrerem algum dano em decorrência da atuação estatal. A primeira delas é que a norma constitucional dá tratamento igualitário à responsabilização do Estado ao eliminar a distinção entre atos lícitos e ilícitos típica do direito civil. A segunda é que a generalidade do § 6° do art. 37 da Constituição possibilita maior amparo à vítima, que não necessita demonstrar a culpa ou dolo do agente, pois, a princípio, basta o nexo de causalidade entre a conduta do Estado e o prejuízo sofrido, para ocorrer a indenização. A terceira característica que se infere do dispositivo constitucional é que ele não se restringe apenas às pessoas jurídicas de direito público, mas também alcança as de pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público.

Portanto, no atual estágio do direito brasileiro, a responsabilidade extracontratual do Estado resulta de qualquer ação ou omissão do Estado, ainda que não seja possível apontar o agente responsável pela conduta causadora do dano. Uma vez estabelecido o nexo de causalidade entre o dano indenizável e a ação ou omissão do Estado, haverá, em princípio, a responsabilidade deste. A conduta estatal, como será detalhado adiante, sequer necessita ser ilícita para acarretar sua responsabilização. Muitas vezes a conduta do Estado é lícita e mesmo assim produz danos aos particulares, devendo o Poder Público responder por eles. É o que ocorre, por exemplo, quando o poder público interdita completamente uma rua para realizar obras de saneamento básico, impedindo que um dono de posto de combustíveis realize sua atividade normalmente, causando-lhe prejuízo durante aquele período. Neste caso, toda a sociedade deverá responder pelo prejuízo ocasionado ao comerciante, já que toda ela será beneficiada pela obra, e o Estado indeniza-lo-á.

Com a finalidade de realizar um exame mais delineado do dispositivo constitucional, proceder-se-á como José dos Santos Carvalho Filho[2] o faz, analisando três elementos distintos trazidos pela Constituição Federal: as pessoas responsáveis, os agentes do Estado e a existência de duplicidade de relações jurídicas.

As pessoas jurídicas responsáveis face ao dispositivo constitucional, que permite acionar tanto a pessoa jurídica de direito público (Estado), quanto a pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço público (empreiteiro), a jurisprudência tem admitido que o lesado acione tanto o Poder Público Responsável quanto o empreiteiro, ou mesmo ambos conjuntamente. Assim, restaria aos dois últimos “discutir pelas vias ordinárias a atribuição das respectivas responsabilidades, pois não guarda pertinência com o fundamento da ação principal”.[3]

Em relação aos agentes, percebe-se, que é suficiente que o causador do dano se valha da sua condição de agente perante o particular para a pessoa jurídica ao qual ele se vincula responder objetivamente nos temos do princípio consagrado pela Constituição, ou seja, se a condição de agente público tiver contribuído para a ocorrência do evento danoso, responderá o Estado pela obrigação de indenizar.

Por fim, temos a duplicidade de relações jurídicas, sendo que são duas as responsabilidades presentes no texto constitucional: a do Estado perante o particular (que é objetiva) e a do agente público perante o Estado (que é subjetiva), sendo que a análise desta última demandaria longo debate, fugindo ao objetivo do presente trabalho, que é tratar das causas excludentes da responsabilidade objetiva do Estado.

 

1.2 PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO

No item anterior foi feita uma análise dos termos utilizados pelo legislador no art. 37, § 6°, da Constituição. Uma vez entendida a abrangência deles, resta avaliar quais são os pressupostos que ensejam a responsabilização do Estado. Nos dizeres de Celso Antônio Bandeira de Mello, os pressupostos são “as condições deflagradoras da responsabilidade do Estado”.[4]

Já foi dito que a característica fundamental da responsabilidade objetiva é que o lesado não necessita provar que houve culpa do agente ou do serviço para que o Estado seja responsabilizado. Portanto, uma vez comprovados os pressupostos da responsabilidade objetiva, a Administração terá o dever de indenizar o lesado pelos danos sofridos, sem qualquer questionamento sobre a culpabilidade da conduta atribuída ao Estado.

A doutrina moderna não é uniforme ao delimitar os pressupostos para configuração da responsabilidade objetiva do Estado. Yussef Said Cahali[5], por exemplo, enumera os seguintes: evento danoso, nexo de causalidade material e a qualidade de agente na prática do ato. Nota-se que o primeiro pressuposto consignado pelo autor – evento danoso – caracteriza não só o dano, mas também a conduta ensejadora dele. Quanto ao último pressuposto – qualidade de agente na prática do ato – já foi abordado no item anterior deste capítulo em uma análise dos termos do dispositivo constitucional.

José dos Santos Carvalho filho[6] por sua vez, afirma que constituem pressupostos da responsabilidade extracontratual estatal: o fato administrativo, o dano e o nexo causal.

Por mera opção didática, serão adotados no presente trabalho os pressupostos consagrados por este último autor.

  

1.2.1 Fato Administrativo

O fato administrativo, para José dos Santos Carvalho Filho, “tem o sentido de atividade material no exercício da função administrativa, que visa a efeitos de ordem prática para a Administração”.[7] O fato administrativo constitui, nessa visão, a conduta da Administração em busca de atingir suas finalidades.

Sendo assim, considera-se como primeiro pressuposto da responsabilidade civil objetiva extracontratual do Estado o fato administrativo, compreendendo-se este como qualquer forma de conduta comissiva ou omissiva, legítima ou ilegítima, singular ou coletiva, atribuída ao Poder Público. Em suma, o fato administrativo é a conduta administrativa capaz de causar dano a alguém, ensejando ao Estado o dever de repará-lo, independentemente de análise do elemento culpa.

Um ponto importante a se ressaltar é a divergência quanto à obrigação de o Estado indenizar em caso de conduta omissiva.

José dos Santos Carvalho Filho[8], sem discorrer a respeito da divergência, entende que qualquer conduta administrativa – seja ela comissiva ou omissiva – subsume-se à responsabilidade objetiva prevista pela Constituição.

Para Celso Antônio Bandeira de Mello a responsabilidade do Estado por omissão seria subjetiva, entendendo que:

Quando o dano foi possível em decorrência de uma omissão do Estado (o serviço não funcionou, funcionou tardia ou ineficientemente) é de aplicar-se a teoria da responsabilidade subjetiva. Com efeito, se o Estado não agiu, não pode, logicamente, ser ele o autor do dano. E, se não foi o autor, só cabe responsabilizá-lo caso esteja obrigado a impedir o dano. Isto é: só faz sentido responsabilizá-lo se descumpriu dever legal que lhe impunha obstar o evento lesivo.[9]

Essa polêmica em torno do tipo de responsabilidade presente no caso de omissão do Estado, se é ela objetiva ou subjetiva, é insuperável e, tanto na doutrina quanto na jurisprudência pátrias, são encontrados argumentos nos dois sentidos. No presente trabalho, opta-se pela caracterização da omissão estatal como responsabilidade objetiva. É que a Constituição não parece admitir que a responsabilidade do estado por condutas omissivas seja convertida em subjetiva. Sergio Cavalieri Filho, discorrendo a respeito da responsabilidade estatal, afirma, após citar o posicionamento de Bandeira de Mello, que no seu entender “o art. 37, § 6°, da Constituição, não se refere apenas à atividade comissiva do Estado; pelo contrário, a ação a que alude engloba tanto a conduta comissiva quanto a omissiva”.[10]

 

1.2.2 Dano

 O segundo pressuposto da responsabilidade civil do Estado é o dano. Yussef Said Cahali diz que “é de direito comum o princípio segundo o qual o dano insere-se como pressuposto da responsabilidade civil, contratual ou extracontratual”.[11] Portanto, na responsabilidade civil do Estado não basta a ilegalidade ou irregularidade da conduta ou do ato atribuídos ao Poder Público. Há que decorrer dessa conduta ou desse ato, necessariamente, um dano para que lhe seja atribuída responsabilidade e ocorra, conseqüentemente, a indenização.

Ressalta-se que para o Poder Público ser responsabilizado não importa a natureza do dano que ele causou, nem a natureza de sua conduta: deverá indenizar tanto o dano patrimonial quanto o dano moral decorrentes tanto de condutas ilícitas como de condutas lícitas.

Yussef Said Cahali, entretanto, diferencia as características dos danos ressarcíveis provenientes de atividades ilícitas das características dos que são provenientes de atividades lícitas.

Para ele, no caso de danos ilícitos (decorrentes de culpa ou dolo do agente ou de deficiência ou falha do serviço público) a pretensão ressarcitória resultará na indenização dos danos certos e não eventuais, sejam eles atuais ou futuros. Ou seja, deverá ser a mais completa possível, assimilando-se à responsabilidade civil comum. É o caso, por exemplo, de taxista que tem seu veículo de trabalho danificado em acidente causado culposamente por funcionário da prefeitura que utilizava viatura oficial. Neste caso, tanto o dano emergente quanto o lucro cessante, caso o taxista deixe de trabalhar enquanto o veículo estiver sob conserto, deverão ser indenizados pela Administração. E os pressupostos da responsabilidade, aqui, se limitarão aos normalmente exigidos: fato administrativo, dano e nexo de causalidade.[12]

De outra forma, há casos em que os danos decorrem de atuação lícita do Poder Público, onde o interesse público exige o sacrifício de interesses privados. É o caso, por exemplo, de interdição total de uma avenida, por longo tempo, para reparos no sistema público de distribuição de água, impedindo que comerciantes nela estabelecidos exerçam suas atividades normalmente. Nota-se que aqui a indenização pleiteada também diz respeito aos lucros cessantes e pode, eventualmente, abranger danos emergentes. Contudo, ressalta Cahali que, nesse caso, “o dano é excepcional, ultrapassando os sacrifícios toleráveis ou exigíveis normalmente e o pagamento da indenização redistribui o encargo que, de outro modo, seria apenas suportado pelo titular do direito, sendo indispensáveis para a responsabilização do Poder Público, além da configuração do dano, a concorrência de três outras características: a especialidade, a anormalidade e uma certa permanência”.[13]

Para o doutrinador, a especialidade é verificada na necessidade de se atender ao interesse público em detrimento do interesse privado; a anormalidade, por sua vez, está relacionada ao tipo de dano causado ao particular, pois há atividades estatais que, apesar de causarem algum transtorno, são consideradas normais – como a interdição de uma das faixas de avenida para fiscalização de veículos; quanto à permanência, deve ela ser suficiente para causar danos consideráveis ao particular.

 

1.2.3 Nexo de Causalidade

O derradeiro pressuposto da responsabilidade civil do Estado a ser analisado é o nexo de causalidade entre a conduta estatal e o dano.

Para José dos Santos Carvalho Filho:

O nexo de causalidade é fator de fundamental importância para a atribuição de responsabilidade civil ao Estado. O exame supérfluo e apressado de fatos causadores de danos a indivíduos tem levado alguns intérpretes à equivocada conclusão de responsabilidade civil do Estado. Para que se tenha uma análise absolutamente consentânea com o mandamento constitucional, é necessário que se verifique se realmente houve um fato administrativo (ou seja, um fato imputável à Administração), o dano da vítima e a certeza de que o dano proveio efetivamente daquele fato.[14]

O nexo de causalidade, portanto, é o liame que atribui determinado dano à conduta administrativa. Nos dizeres de Yussef Said Cahali: “Estabelecido o liame causal, a decorrência do dano à causa da atividade ou omissão da Administração Pública, ou de seus agentes, exsurge daí o dever de indenizar”.[15]

Problema dificultoso em sede doutrinária, entretanto, é a perquirição da causa eficaz para a produção do resultado lesivo, o que deu origem a várias teorias, como a da causa próxima, da causa direta e da causa adequada. Seu exame minucioso fugiria das questões relevantes para análise do tema do presente trabalho. Contudo, a conclusão de Yussef Said Cahali, após análise de tais teorias, é adequada. Segundo ele: “sempre em função das circunstâncias do caso concreto, impende considerar se o dano sofrido pelo particular vincula-se direta e adequadamente ao ato (comissivo ou omissivo) imputado ao agente da Administração”.[16]

Logo, a relação de causa e efeito entre a ação ou omissão estatal e o dano sofrido pelo particular é que constitui o nexo de causalidade e, por conseguinte, implica na responsabilidade objetiva do Estado.

 

2 CAUSAS EXCLUDENTES DA RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL DO ESTADO

Foi visto que a Constituição de 1988, ao tratar da responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas indicadas em seu art. 37, § 6°, adotou a teoria do risco administrativo. Também se viu que os pressupostos para essa responsabilização são o dano, a ação ou omissão do ente público ou privado prestador de serviço público e, por fim, a existência de nexo de causalidade entre os outros dois pressupostos. Desse modo, não é necessária qualquer averiguação sobre o dolo ou culpa do agente para que o ofendido possa pleitear ressarcimento pelo dano sofrido.

Logo, a ausência de dolo, ou mesmo de culpa, do agente que praticou a conduta não constitui causa excludente da responsabilidade do Estado. De outra forma, dolo e culpa consistirão apenas excludentes da responsabilidade subjetiva do agente perante o Estado, em sede de direito de regresso previsto na segunda parte do dispositivo constitucional.

Da averiguação sobre a licitude ou a ilicitude do ato também não se chega a uma causa excludente da responsabilidade do Poder Público. Como foi visto, ainda que seja lícita a atuação do Estado, poderá este ser responsabilizado pelos danos excepcionalmente causados a particulares quando atuar regularmente no interesse da coletividade.

E quais seriam as causas excludentes da responsabilidade do Estado?

Como o Estado é obrigado a indenizar os danos atribuídos a sua conduta, independentemente de dolo ou culpa, fica claro que não os indenizará somente se restar provado que sua ação ou omissão não possui nexo de causalidade com tais danos. Nos dizeres de Yussef Said Cahali: “Trata-se de questão de fato, a ser investigada em cada caso concreto, de modo que, demonstrado o referido nexo, surge a obrigação de indenizar, sendo indevida esta se ausente sua demonstração”.[17] Portanto, o que a doutrina chama de “excludentes da responsabilidade do Estado”, na verdade, são as causas que não podem ser atribuídas, nem mesmo indiretamente, à atuação estatal.

Desse modo, quando o dano é causado exclusivamente pela conduta do Estado, não há que se falar em excludente de responsabilidade estatal. Neste caso, o nexo de causalidade permite concluir que o evento lesivo decorreu unicamente de atuação atribuída à Administração Pública, ou ao particular prestador de serviço público, e aí resta comprovado que não há contribuição alheia à ação ou omissão do Poder Público e o Estado deverá indenizar integralmente o prejuízo que causou ao ofendido.

Há que se distinguir, aqui, que, além das causas excludentes, existem causas atenuantes da responsabilidade do Estado. A diferença situa-se no fato de as causas excludentes elidirem totalmente a responsabilidade estatal, enquanto que as causas atenuantes, por serem consideradas concausas do evento danoso, atenuam o valor a ser pago pelo Estado a título de indenização. Passa-se, adiante, a tratar das causas atenuantes e excludentes de forma individualizada.

 

2.1 Causas Atenuantes da Responsabilidade do Estado

Há situações em que o dano não decorre apenas da atuação do Estado, mas de uma pluralidade de causas, de forma que todas concorrem de forma adequada e eficiente para a ocorrência do resultado. Segundo a doutrina, nesses casos há concorrência de causas e a responsabilidade do Poder Público deverá ser atenuada, “circunscrevendo-se apenas ao dano efetivamente causado pela atividade administrativa”.[18]

Portanto, no caso de concorrência de causas, não há propriamente exclusão da responsabilidade do Estado, mas apenas atenuação dela. Isso porque cooperam para o dano não só a ação ou omissão estatal, mas também um fato estranho relacionado com a vítima, com terceiro ou decorrente de caso fortuito ou força maior.

Sendo assim, se o evento danoso é causado por alguma falha da Administração – v.g. um cabo de eletricidade de prédio público que se rompe, devido à falta de manutenção, causando ferimentos em alguém – não há que se falar em atenuação ou exclusão da responsabilidade estatal, pois é nítido que o Estado violou um dever jurídico pré-existente e a causa do dano é exclusivamente atribuída a ele.

De outro modo, o dano pode decorrer de atuação estatal em concorrência com ato de terceiro – v.g. um fazendeiro não dá manutenção na cerca de sua propriedade possibilitando que um boi fuja e, depois de muito tempo e de vários telefonemas de usuários da rodovia comunicando a presença do animal na pista à polícia, o Poder Público não toma providências, possibilitando a ocorrência de um acidente. Neste caso, a responsabilidade do Poder Público poderá ser atenuada, pois duas causas concorreram para a ocorrência do evento: a omissão do fazendeiro, que não cuidou de sua cerca, e a omissão do Estado, em decorrência, aqui, da inércia em providenciar a retirada do animal da pista, apesar de ter sido comunicado diversas vezes  sobre sua presença na rodovia.

Já na ocorrência de caso fortuito ou força maior, duas são as situações a se ponderar. Na primeira, se o dano decorrer única e exclusivamente de fato inevitável – v.g. no caso de uma enchente de proporções inimagináveis que inunda várias avenidas da cidade, danificando os veículos que lá se encontravam – estará configurarada causa excludente de responsabilidade do Estado, que será abordada a seguir. Na segunda situação, se a ação ou omissão do Poder Público concorrer com o evento inevitável para produzir o dano – v.g. ruas inundadas por chuva excessiva associada à falta de manutenção nas galerias pluviais – ocorrerá coexistência de fatores na provocação do evento: influência de fatores naturais e mau funcionamento do serviço público, operando-se uma atenuação da responsabilidade estatal, pois a excepcionalidade do evento natural concorreu com a inércia estatal, de modo que os prejuízos sofridos pelos particulares poderiam ser menores caso o Estado tivesse agido com diligência.

Outro caso de atenuação da responsabilidade do Estado é a concorrência de fato de terceiros ou do próprio ofendido com a conduta do Estado. Neste caso, valem as palavras de Yussef Said Cahali, para quem:

Se o ato de terceiro atua apenas como concausa na verificação do evento danoso, a questão se resolve pelos princípios do Código Civil, concernentes à responsabilidade solidária, podendo a ação ser ajuizada contra qualquer dos co-autores partícipes, com direito de regresso contra o outro.[19]

Assim, conclui-se que todas as possíveis causas de um evento danoso devem ser analisadas visando estabelecer se há ou não hipótese de atenuação da responsabilidade objetiva do Estado. Ou seja, deve-se confirmar se há ou não, junto com a ação ou omissão do Estado, a presença de culpa ou dolo do próprio prejudicado ou de terceiro, caso fortuito ou força maior.

 

2.2 Causas Excludentes da Responsabilidade do Estado

Viu-se que os danos causados pela Administração – seja atuando de forma ilícita, seja de forma lícita – devem ser reparados por ela, em virtude do princípio da responsabilidade civil extracontratual objetiva do Estado previsto pela Constituição Federal de 1988. Além disso, mostrou-se que em certas situações a responsabilidade estatal será atenuada devido à concorrência de causas externas. Cabe, agora, analisar as causas excludentes da responsabilidade do Poder Público.

Uma vez constatado o nexo de causalidade entre o dano e a conduta estatal, caberá à Administração a obrigação de indenizar o lesado. Sendo assim, de maneira lógica conclui-se que, havendo um dano, o Estado não responderá pela sua reparação apenas quando a conduta causadora do resultado não lhe puder ser imputada.

A doutrina enumera as seguintes situações como causas excludentes da responsabilidade do Estado: quando o dano é causado exclusivamente por caso fortuito ou força maior; quando o dano é causado exclusivamente pela própria vítima ou por terceiro ou, ainda, por este concorrendo com o ofendido.

 

2.2.1 Caso Fortuito ou Força Maior

Na primeira situação, onde a causa do dano é o caso fortuito ou a força maior, deve ser ressaltado que a doutrina não é uniforme ao conceituar tais excludentes. Para alguns, a força maior decorre da vontade do homem (v.g. a greve), enquanto o caso fortuito decorre da natureza (v.g. uma tempestade)[20]. Outros os diferenciam de forma totalmente contrária, considerando força maior o evento causado pela natureza e caso fortuito o que decorre, de alguma forma, de ato humano[21]. Há, ainda, doutrinadores que preferem não fazer a distinção, considerando tanto a força maior, quanto o caso fortuito, como eventos imprevisíveis decorrentes do acaso.[22]

Seguir-se-á neste trabalho o entendimento de Rui Stoco, para quem os “critérios diferenciais adotados pelos escritores procuram extremar o caso fortuito da força maior. Preferível, todavia, não obstante concordar que abstratamente se diferenciem, admitir que na prática os dois termos correspondem a um só efeito”.[23]

O importante, dessa forma, é entender que tanto o caso fortuito quanto a força maior constituem excludentes da responsabilidade estatal, desde que sejam totalmente inevitáveis. É o que também ensina Maria Helena Diniz, ao afirmar que “o caso fortuito e a força maior se caracterizam pela presença de dois requisitos: o objetivo, que se configura na inevitabilidade do evento, e o subjetivo, que é a ausência de culpa na produção do acontecimento”.[24]

Sendo assim, constituirão excludentes da responsabilidade do Estado apenas as situações completamente inevitáveis, ou seja, aquelas onde o Poder Público, mesmo tomando todas as diligências normalmente requeridas, não poderia evitar.

Merece destaque o entendimento de Yussef Said Cahali, que afirma:

A Administração Pública será responsabilizada pela reparação dos danos sofridos pelos particulares, causados por eventos inevitáveis da natureza, desde que, por sua omissão ou atuação deficiente, deixando de realizar obras que razoavelmente lhe seriam exigíveis, poderia ter evitado a causação do prejuízo, ou atenuado as suas conseqüências.[25]

Além disso, conforme entendimento de Yussef Said Cahali: “tal como acontece nos demais ramos do direito, o caso fortuito ou de força maior representa exceção substancial, cujo ônus probatório é atribuído à defesa”.[26]

 

 

2.2.2 Culpa exclusiva da vítima e/ou de terceiro

As outras excludentes da responsabilidade do Estado enumeradas pela doutrina são a culpa exclusiva da vítima e a culpa exclusiva de terceiro, ressaltando, obviamente, que a culpa concorrente entre a vítima e terceiro, sem qualquer envolvimento da Administração, também acarretará a irresponsabilidade desta.

Isso ocorre porque, como já visto no presente trabalho, não se admite no direito brasileiro a tese de que o Estado responde por qualquer prejuízo sofrido pelos particulares (Teoria do Risco Integral), mas apenas por aqueles em que alguma “falha da Administração ou culpa anônima do serviço possa ser identificada como causa, ainda que indiretamente concorrente na verificação do evento danoso”.[27] Sendo assim, embora a teoria da responsabilidade objetiva do Estado com base no risco administrativo dispense a prova da culpa da Administração, entende-se que lhe é permitido demonstrar a culpa da vítima ou de terceiro para ilidir a indenização. Nesse sentido, Yussef Said Cahali afirma que “a excludente de responsabilidade fundada na culpa exclusiva da vítima representa exceção substancial a ser demonstrada pelo ente estatal demandado”.[28]

Portanto, se não forem comprovadas pelo Estado as excludentes alegadas na contestação, sua responsabilidade dependerá apenas da comprovação do nexo causal entre a conduta administrativa e o dano resultante.

 

CONCLUSÃO

O trabalho que ora se encerra teve o escopo de analisar a responsabilidade civil extracontratual do Estado no direito brasileiro, para, depois, analisar as causas excludentes enumeradas pela doutrina. E, do que foi exposto, pode-se ressaltar algumas conclusões.

Entendeu-se que o texto constitucional prevalece como norteador da aplicação da responsabilidade objetiva do Estado e passou-se a analisar seus pressupostos, mediante a análise do art. 37, § 6°, da Constituição Federal, concluindo que ele consagra uma duplicidade de relações jurídicas: a do Estado, sujeito à responsabilidade objetiva perante o administrado, e a do agente público, sob o qual incide a responsabilidade subjetiva decorrente do direito de regresso do Estado. Ainda da análise do dispositivo constitucional, constatou-se que os pressupostos da responsabilidade objetiva do Estado são a conduta estatal, o dano a terceiro e o nexo de causalidade, sendo este último o liame existente entre o dano e conduta administrativa.

Ao final, foram diferenciadas e enumeradas as causas atenuantes e as causas excludentes da responsabilidade do Estado. Viu-se que tanto o caso fortuito ou a força maior quanto a culpa da vítima ou de terceiro podem ora atenuar a responsabilidade estatal – no caso de concorrerem com alguma ação ou omissão estatal causadora de danos – ora excluir totalmente a responsabilidade do ente – no caso de constituírem a causa exclusiva do dano, sem qualquer interferência ou participação de conduta atribuída ao Estado.

Ressalta-se que existe divergência entre os doutrinadores na conceituação do que seria caso fortuito e do que seria força maior, causando uma confusão entre os conceitos, e, por isso, preferiu-se seguir aqueles que não levam a efeito a terminologia, mas sim a inevitabilidade do evento, seja ele causado pela ação da natureza ou pela vontade humana.

Conclui-se, assim, que, embora a Constituição Federal tenha adotado a teoria da responsabilidade objetiva do Estado, não é ela do tipo integral. Ou seja, foi adotada no ordenamento jurídico Brasileiro a teoria do risco administrativo, sendo permitido ao ente demandado provar a ausência de nexo de causalidade entre sua atuação e o dano para afastar – ou ao menos atenuar – sua responsabilidade pelos danos sofridos pelo autor da ação.

 

Douglas de Sousa Silva

Kenia Ferreira Adania

 

 

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VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: responsabilidade civil. 4. ed. São Paulo: Atlas, v. IV, 2004.

 

 

[1] STOCO, Rui. Responsabilidade Civil. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 59.

[2] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo, pp. 478-482.

[3] Idem. Ibidem, p. 139.

[4] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 618.

[5] CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade Civil do Estado, pp. 68-88.

[6] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo, pp. 482-484.

[7] Idem, Ibidem, p. 89.

[8] Idem, Ibidem, p. 482.

[9] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 624.

[10] CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil, p. 239.

[11] Idem. Ibidem, p. 67.

[12] Idem. Ibidem, pp. 68-69

[13] Idem. Ibidem, p. 69.

[14] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo, p. 483.

[15] CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade Civil do Estado, p. 74.

[16] Idem. Ibidem, p. 79.

[17] Idem. Ibidem, p. 44.

[18] CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil, p. 137.

[19] CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade Civil do Estado, p. 65.

[20] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, p. 979.

[21] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, p. 530.

[22] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo, p. 486.

[23] STOCO, Rui. Responsabilidade Civil, p. 86.

[24] DINIZ, Maria Helena. Direito Civil Brasileiro: responsabilidade civil. 20. ed. São Paulo, Saraiva, v. VII, 2006, p. 115.

[25] CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade Civil do Estado, p. 53 (grifo nosso).

[26] Idem. Ibidem, p. 53.

[27] CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade Civil do Estado, p. 57.

[28] Idem. Ibidem, p. 56.

Kenia Ferreira Adania

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