Prolegômenos da teoria agnóstica da pena

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A solução de conflitos em uma sociedade pode se dar por dispositivos de poder que atuam em busca de uma efetiva solução, satisfazendo o interesse das partes, ou através de uma mera decisão. Ainda, dentre os principais modelos decisórios, tem-se: (a) o reparador; (b) o conciliador; (c) o corretivo; (d) o terapêutico; e (e) o punitivo.

O modelo decisório punitivo é menos flexível para ser combinado com os demais, e possui menor aptidão para solucionar conflitos, já que ao invés de resolvê-los, apenas os suspende, tendo em vista que, como regra, não admite a participação da vítima na construção da solução. Ao lançar o conflito no tempo (suspensão), ele se dissolve diante da dinâmica social, até que se apague – isso na espera de que os protagonistas do conflito desliguem-se dele ou tranquilizem-se em relação a ele. De fato, não há preocupação acerca do surgimento de novos conflitos diante desse esquecimento.

Há uma disparidade entre as funções que as instituições realizam de forma declarada e as que elas efetivamente concretizam na sociedade, de tal forma que pode-se dizer que o poder estatal concede às instituições funções manifestas ou latentes. As funções manifestas são aquelas que são expressas, declaradas e públicas, ao passo que as funções latentes são aquelas que se coadunam com a realidade, que estão por detrás da função manifesta e coincidem com o que a instituição realiza, de fato, na sociedade.

O problema reside no fato de que grande parte do poder estatal possui funções manifestas não-punitivas, ou seja, em tese não são dotadas de poder punitivo, contudo, possuem funções latentes que são ou podem ser punitivas.

Partindo-se da premissa de que a legislação penal é a base hermenêutica do Direito Penal, Zaffaroni a conceitua, prima facie, como o conjunto de leis que programam a decisão de conflitos mediante uma pena.

Contudo, a lei penal é o instrumento pelo qual as agências políticas formalizam seus programas de intervenção punitiva, podendo nelas exprimir adequação somente em relação às funções manifestas (para “mascarar” a existência das funções latentes).

Para evitar que isso ocorra, Zaffaroni indica a necessidade de construção de um conceito de lei penal que abranja não somente as leis penais manifestas, mas também as leis penais latentes, que mesmo com uma função manifesta não-punitiva, possibilitam o exercício de poder punitivo – ex.: assistencial, pedagógica, tutelar, etc. -, e as leis penais eventuais, que não tem funções punitivas manifestas ou latentes, mas eventualmente podem ser exercidas com poder punitivo – ex.: prisão preventiva, quando considerada como antecipação da pena.

Isto porque, com o reconhecimento das funções punitivas latentes ou eventuais das instituições, as mesmas passam a ser objeto do Direito Penal e, assim, submetem-se aos seus limites constitucionais e podem ser devidamente controladas.

Desta forma, restaria garantido o objetivo político interpretativo do Direito Penal de contenção do poder punitivo para fortalecer o Estado de Direito: as leis penais manifestas orientariam as agências no sentido de limitar a seletividade da criminalização; as leis penais latentes seriam interpretadas pelos juízes, na maior medida possível, de modo a reconhecer sua inconstitucionalidade; e, por fim, as leis eventualmente penais seriam interpretadas pelos juízes no sentido de serem identificados os momentos punitivos exercidos ao seu amparo, excluindo-os ou declarando-os inconstitucionais1.

Assim, a órbita da pena, que segundo Zaffaroni delimita o horizonte de projeção do Direito Penal, deve abranger a legislação manifesta, latente e eventual, sendo certo que a forma de sua delimitação se dará de acordo com a precisão de seu conceito.

As principais teorias que foram desenvolvidas com o fito de conceituar e determinar a finalidade da pena, denominadas de teorias positivas da pena23, não lograram êxito ao tentar encontrar uma função racional que a legitimasse, já que restou constatado não representar um bem, mas sim uma dor. Cada uma dessas teorias corresponde a um paradigma de Direito Penal, já que: “de cada discurso legitimante se deriva uma função e um horizonte4.

Diante do fracasso dessas teorias em legitimar a pena de modo positivo, Zaffaroni busca um novo paradigma através do esclarecimento da função política do Direito Penal, para que, a partir dela, seja possível precisar o real conceito de pena.

Para tanto, diferencia as ideias de estado de polícia e estado de direito. O primeiro é um estado paternalista regido pelas decisões do governante, em que apenas um grupo ou classe social decide sobre o que é bom e essa decisão será lei, resultando em uma justiça substancialista e em um direito transpersonalista. Já o Estado de Direito é um modelo fraterno em que o bom é decidido pela maioria, respeitadas as minorias, resultando em uma justiça procedimental e em um direito personalista (para humanos).

Pode-se perceber, contudo, que: “em qualquer tipo de poder político institucionalizado em forma de estado, o estado de direito e o estado de polícia coexistem e lutam como ingredientes que se combinam através de medidas diversas e de modo instável e dinâmico5. E é exatamente a tensão entre essas duas tendências que impede que os direitos se realizem completamente.

O poder punitivo está atrelado ao estado de polícia, e sua legitimação atua em detrimento do Estado de Direito. E, ao conceder função positiva para este poder punitivo, o que na verdade se faz é ocultar e ao mesmo tempo legitimar o poder real que impõe escassas penas a determinadas pessoas dotadas de vulnerabilidade.

Por mais que as teorias positivas no âmbito do Direito Penal liberal tradicional sejam preferíveis, já que impõem maiores limites ao poder punitivo, não deixam de legitimar o estado de polícia, e geram contradições ao utilizarem-se de preceitos do estado de direito para tentar legitimar um poder próprio do estado de polícia. Dessa forma, a solução é a renúncia de qualquer teoria positiva da pena.

Diante da constatada falsidade das teorias positivas, Zaffaroni propõe uma teoria negativa ou agnóstica da pena, a qual, partindo do desconhecimento das funções da pena, não a atribui nenhuma função positiva e é obtida por exclusão.

Zaffaroni busca em suas linhas preliminares, demonstrar a delimitação do horizonte a partir de uma teoria negativa da pena. Isto é, demonstrar os limites da mesma tendo em vista que todas as teorias positivas da pena, em sua teoria argumentativa, ou seja, em sua base, atribuem diretamente à pena uma função manifesta.

Essas chamadas funções manifestas, que são atribuídas pelas teorias positivas à pena trazem à tona diversas indagações e problematizações, dentre as quais a possibilidade de o Estado estender a pena quantas vezes julga necessário, motivação essa para legitimar e ainda deduzir a teoria do direito penal. Tal função pode, de fato, ser facilmente traduzida num jus puniendi estatal.

A busca de uma teoria agnóstica mira-se, então, na construção de uma função da pena a partir das falhas e fracassos advindos das teorias positivas, mormente em torno das funções manifestas, por elas explicadas.

Segundo essa concepção, adotando uma teoria negativa seria possível delimitar o horizonte do Direito Penal, sem que isso provoque a legitimação do estado de polícia. A dificuldade mira-se, então, em se estabelecer um conceito de pena isento de influências das teorias positivas ou até mesmo utilizar as funções latentes da pena.

Assim, imune das influências externas passa-se à tentativa de se construir um conceito jurídico e logo, limitativo, demandando principalmente referências ônticas.

Incorporando as chamadas “referências ônticas”, busca-se eminentemente a construção do conceito de pena, assim, obtido basicamente por exclusão.

Segundo Zaffaroni, a pena não tem função reparadora ou restitutiva, tampouco configura coerção administrativa direta. Ao contrário, a pena é uma coerção que impõe privação de direitos ou dor, e não se coaduna com um legítimo modelo de solução ou mesmo prevenção de conflitos6. Nestes termos, o conceito agnóstico da pena é negativo por não reconhecer nenhuma função positiva da pena e, também, por ser obtido por exclusão – é agnóstico quanto a sua função, já que afirma não a conhecer (ou seja: a pena não tem função alguma).

De fato, mirar a pena como coerção reparadora ou restitutiva e coerção direta constitui uma problemática eminente. Tendo em vista que o conceito da pena na teoria negativa é obtido por exclusão, mister se faz a delimitação das demais formas coercitivas estatais (reparadora ou restitutiva e a direta), até porque somente deixando bem claro os liames justificativos das teorias positivas é que se obtém propriamente a conclusão da Teoria Negativa.

Teorizar, então, de maneira negativa ou agnóstica a pena é o mesmo que reduzi-la a um mero ato de poder fulcrado unicamente numa razão política. Como ideia fixa, deve-se ressaltar que o único exercício de poder que o Direito Penal pode programar não poderá exceder o âmbito do “reduzido poder jurisdicional” praticado sobre a criminalização secundária.

Em suma, pode-se dizer que a concepção agnóstica da pena caracteriza-a por: (i) ser uma coerção; (ii) impor uma privação de direito ou dor; (iii) não ter função reparadora ou restitutiva; e, por fim, (iv) não deter as lesões em curso ou neutralizar os perigos iminentes7.

Zaffaroni, de fato, elenca possíveis argumentos aptos a refutar as ideias e argumentos exegéticos contra a teoria negativa. Todavia, ressalta com eloquência que os pressupostos metodológicos que justificam a teoria agnóstica são efetivamente passíveis de constantes objeções.

Não obstante, talvez seja esse efetivamente o clímax de toda perquirição da teoria agnóstica da pena: debater e duvidar. Porém, demonstrando de maneira argumentativa as razões justificadoras, bem como aquelas aptas a refutar as teorias positivas.

 

 

1 ZAFFARONI, Eugenio Raul. BATISTA, Nilo. SLOKAR, Alejandro. ALAGIA, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: v. 1 : teoria geral do Direito Penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 90.

2 “Zaffaroni argumenta que as principais teorias que têm sido propostas para indicar a finalidade da pena (teorias positivas da pena), ou são falsas (teoria da prevenção especial) ou, pelo menos, é falsa a sua generalização (teoria da prevenção geral negativa)”. Sobre a nota, vide: BRODT, Luís Augusto Sanzo. O Direito Penal sob a perspectiva funcional redutora de Eugenio Raul Zaffaroni. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 101, p. 97-136, jul./dez. 2010, p. 101.

3 No que se refere às teorias da prevenção especial e da prevenção geral negativa, respectivamente, aponta o Professor Luís Brodt: “A falsidade da pretensão de ressocializar o homem, por meio da pena privativa de liberdade, está fartamente comprovada pela experiência” (…) “A prevenção geral negativa pode, eventualmente, funcionar em relação a um número pequeno de pessoas e crimes. Entretanto, na maior parte das vezes a pessoa, na realidade, não deixa de praticar crimes pela ameaça da pena, mas por questões éticas, jurídicas e afetivas”. Idem Ibidem.

4 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Obra citada, p. 93.

5 Idem, p. 95.

6 Idem, p. 99.

7 BRODT, Luis Augusto Sanzo. Obra citada, p. 101.

Flavia Siqueira Costa Pereira

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