Procedimento Operacional Padrão no Tratamento Penitenciário de Minas Gerais: Violação Institucionalizada dos Direitos Humanos

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Resumo

O Estado de Minas Gerais através da Subsecretaria de Administração Penitenciária (SAP) órgão integrante da Secretaria de Defesa Social (SEDS) elaborou uma normativa padronizada para regulamentação do tratamento com presos, ato que recebeu nome de Procedimento Operacional Padrão (POP). A referida norma, que é um ato administrativo, apresenta procedimentos que orientam a atuação do sistema penitenciário no estado das alterosas e não se descura da necessidade da uniformização no tratamento da questão. Contudo, algumas das normas encartadas no referido ato administrativo representam burla aos princípios e normas constitucionais e legais. Este trabalho tem por objetivo fazer uma análise da restrição às visitas e da incomunicabilidade dos detentos no referido Procedimento Operacional Padrão sob o prisma da Dignidade da Pessoa Humana, o princípio da Humanidade da Pena e a Lei de Execuções Penais, a fim de verificar se o ato administrativo representa uma violação dos direitos humanos.

Palavras-chave: Procedimento Operacional Padrão; Sistema Penitenciário; Direitos Humanos; Violência Institucional.

 

Abstract

The State of Minas Gerais, though the Penitentiary Administration Under Secretariat, integrant of the Social Defense Secretariat, elaborated a standardized normative to regulate the prisoners’ treatment, act that receive the name of Standard Operational Procedure. This norm, that is an administrative act, present procedures that orientate the actuation of the penitentiary system in the State and don’t neglect the need of standardize the treatment of the issue. However, some of the norms presented in the above-mentioned administrative act represent violation to conditional and legal norms and principles. This article has as aim make an analysis of visits restriction and incommunicability in prisons under the Standard Operational Procedure, observing the Human Dignity, the Punishment Humanity and the Penal Execution Law, to verify if the administrative act represents a human rights violation.

Key-words: Standard Operational Procedure; Penitentiary System; Human Rights; Institutional Violence.

 

1.    Introdução

O Estado de Minas Gerais instituiu, por meio da Secretaria de Estado de Defesa Social, uma normativa padronizada que regulamenta a rotina dos presos, bem como o tratamento de funcionários e visitantes adotados em todos as unidades prisionais vinculadas diretamente à Subsecretaria de Administrações Prisionais (Suape).  O ato administrativo instituído recebeu o nome de Procedimento Operacional Padrão (POP).

O Procedimento Operacional Padrão estabelece em seu item 6.1.21 que o preso submetido ao procedimento deve permanecer isolado por um período de trinta dias para classificação. No item 6.1.21.1 determina que, nesse período, fica o detento impedido de receber visitantes, estudar, trabalhar e tomar banho de sol. Ademais, o prazo pode ser estendido caso a área técnica não disponha de tempo para a realização dos procedimentos necessários.

Os artigos supra-citados contrariam a Lei de Execuções Penais, que determina, em seu art. 3º, caput, que “ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei”. Nesse sentido, se manifesta Heleno Cláudio Fragoso, ao afirmar que o Estado, embora seja possuidor do jus puniendi, podendo impor ao réu a diminuição de bens jurídicos ou mesmo sua perda, não pode ultrapassar os limites fixados, de forma que a pena não deve ser diversa ou maior do que o previsto em lei, preservando todos os direitos do preso que não foram atingidos pela sentença (1980, p. 3). Ademais, a mesma Lei 7.210 de 11/07/1984 estabelece, em seu art. 41, X, que constitui direito do preso receber visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados.

Cezar Roberto Bitencourt, ao tratar sobre as prisões, afirma que a progressiva humanização e liberalização interior do cárcere são a via de sua permanente reforma (2004, p. 2). Mais importante que uma finalidade punitiva, a pena tem uma finalidade recuperativa, motivo pelo qual é necessário procurar sempre atribuir a ela um caráter mais humano. Entretanto, hoje existe um absoluto desinteresse das unidades federativas em cumprir a Lei de Execuções Penais, havendo inúmeros princípios e dispositivos que, embora consagrados na Constituição Federal e na legislação ordinária, ainda não alcançaram a sua efetividade. (DOTTI, 2003, p. 272)

Faz-se, em pleno século XXI, uso da antiga idéia de que o preso não tem direitos e que, por violar a norma, é objeto de máxima reprovação social e deve sofrer em um cárcere duro e penoso, sem qualquer proteção do ordenamento jurídico que ousou violar. Desta forma, o preso estaria submetido ao poder absoluto e arbitrário da administração penitenciária (FRAGOSO; CATÃO; SUSSEKIND, 1980, p. 1-2). “Desgraçadamente, a opinião pública latino-americana está aplaudindo Auschwitz, a tortura e a execução sem processo”, mostradas como símbolo da eficácia preventiva (ZAFFARONI, 1991, p. 226).

O presente trabalho busca demonstrar que a incomunicabilidade dos presos e a restrição a visitas acima expostas representam clara violação à dignidade humana dos encarcerados, desrespeito ao princípio da humanidade das penas e à finalidade de ressocialização do detento, à Lei de Execuções Penais e principalmente, à Constituição Federal de 1988.

 

2.    Princípio da Dignidade Humana

Apresentando-se, logo no art. 1º da nossa Carta Magna, o princípio da dignidade da pessoa humana, eixo central do Estado Democrático de Direito. A lei, quando o consagra, traceja um perímetro mínimo de respeitabilidade aos direitos humanos, pouco importando o indivíduo, vez que é universal a sua incidência.

Conforme expõe Rizzatto Nunes (2002, p. 49)

É ela, a dignidade, o primeiro fundamento de todo o sistema constitucional posto e o último arcabouço da guarida dos direitos individuais… Dignidade é um conceito que foi elaborado no decorrer da história e chega ao início do século XXI repleta de si mesmo como valor supremo, construído pela razão jurídica… A dignidade nasce com a pessoa. É-lhe inata. Inerente à sua essência.

O grau de maturidade de uma democracia demonstra-se na intensidade de seu respeito, bem como no teor da concretização de uma igualdade de fato, material e não uma reles letra seca e fria no texto constitucional.

Luiz Antônio Rizzatto Nunes (2002, p. 49-50) diz:

…toda pessoa humana, pela condição natural de ser, com sua inteligência e possibilidade de exercício de sua liberdade, se destaca na natureza e se diferencia do ser irracional. Estas características expressam um valor e fazem do homem não mais um mero existir, pois este domínio sobre a própria vida, sua superação é a raiz da dignidade humana. Assim, toda pessoa humana, pelo simples fato de existir, independentemente de sua situação social, traz na sua superioridade racional a dignidade de todo ser. Não admite discriminação, quer em razão do nascimento, de raça, de inteligência, saúde mental ou crença religiosa.

A dignidade da pessoa humana é o postulado que demanda um tratamento condigno a cada ser humano, com reconhecido equilíbrio na concretização de políticas públicas e o respeito às individualidades e particularidades de cada ser humano.

José Joaquim Gomes Canotilho (1993, p. 303) diz que o postulado é um elemento dotado de abertura de valoração, cuja adequação e concretização depende de uma atuação dos órgãos ou agentes de concretização das normas.

José Afonso da Silva (1998, p. 89) endossa o coro ao afirmar:

(…) o conceito de dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo-constitucional e não uma qualquer idéia apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido da dignidade humana à defesa dos direitos sociais, ou invocá-la para construir ‘teoria do núcleo da personalidade” individual, ignorando-a quando se trate de direitos econômicos, sociais e culturais”. Daí decorre que a ordem econômica há de ter por fim assegurar a todos existência digna (art. 170), a ordem social visará a realização da justiça social (art. 193), a educação, o desenvolvimento da pessoa e seu preparo para o exercício da cidadania (art. 205) etc., não como meros enunciados formais, mas como indicadores do conteúdo normativo eficaz da dignidade da pessoa humana.

Luiz Antônio Rizzatto Nunes (2002, p. 48) aponta que a dignidade da pessoa humana é “conquista da razão ético-jurídica, fruto da reação à história de atrocidades que, infelizmente, marca a experiência humana” e isso não pode ser menoscabado pelo Estado.

Ingo Wolfgang Sarlet (2006, p. 174) aponta que o Estado tem o dever geral de evitar lesões a essa espécie de direitos ao assinalar:

Outra importante função atribuída aos direitos fundamentais e desenvolvida com base na existência de um dever geral de efetivação atribuído ao Estado, por sua vez agregado à perspectiva objetiva dos direitos fundamentais, diz com o reconhecimento de deveres de proteção (Schutzpflichten) do Estado, no sentido de que a este incumbe zelar, inclusive preventivamente, pela proteção dos direitos fundamentais dos indivíduos não somente contra os poderes públicos, mas também contra agressões provindas de particulares e até mesmo de outros Estados. Esta incumbência, por sua vez, desemboca na obrigação de o Estado adotar medidas positivas da mais diversa natureza (por exemplo, por meio de proibições, autorizações, medidas legislativas de natureza penal, etc.), com o objetivo precípuo de proteger de forma efetiva o exercício dos direitos fundamentais. No âmbito da doutrina germânica, a existência de deveres de proteção encontra-se associada principalmente – mas não exclusivamente – aos direitos fundamentais à vida e à integridade física (saúde), tendo sido desenvolvidos com base no art. 2°, inc. II, da Lei Fundamental, além da previsão expressa encontrada em outros dispositivos. Se passarmos os olhos pelo catálogo dos direitos fundamentais de nossa Constituição, será possível encontrarmos também alguns exemplos que poderiam, em princípio, enquadrar-se nesta categoria.

Porém, apesar de todo o desenvolvimento teórico a respeito dos direitos humanos, durante a execução penal, no Brasil, constatam-se as maiores violações à dignidade da pessoa humana. O condenado, quando inserido no cárcere brasileiro, torna-se uma potencial vítima do descaso estatal. A falência prisional tem implicado na violação de direitos essenciais dos presos (BORGES, 2005, p. 85-86).

 

3. Princípio da Humanidade das Penas

O princípio da humanidade das penas adveio de construção cujo remonte histórico nos remete aos dias dos pensadores franceses, das idéias libertárias do iluminismo com pensadores como Jean Jacques Rousseau, que buscava fugir da opressão tirânica do estado despótico e draconiano.   

José Antônio Paganella Boschi (2000, p. 40) aponta que

…o princípio da humanidade das penas é iluminista, contratualista, moderno. Ele equivale a um divisor de águas entre opressão e libertação, entre barbárie e modernidade, na medida em que, em nome dele, se considera o homem em primeiro lugar e desconsidera-se tudo aquilo que afronta sua dignidade e ‘humanidade.

O Princípio da Humanidade das Penas (artigo 5º, XLIX, Constituição da República) é um elemento motriz do sistema punitivo, vez que deriva diretamente do postulado da dignidade da pessoa humana cuja consagração é constitucionalmente firmada (artigo 1º, III, Constituição da República), a qual não é dado ao Estado descurar e furtar-se de adimplir na implementação da política carcerária nacional aspectos atinentes a profilaxia do delito.

No mesmo sentido, Luiz Regis Prado (2002, p. 123) ensina que:

…a idéia de humanização das penas criminais tem sido uma reivindicação constante no perpassar evolutivo do Direito Penal. Das penas de morte e corporais, passa-se, de modo progressivo, às penas privativas de liberdade e destas às penas alternativas (ex.: multa, prestação de serviços à comunidade, interdição temporária de direitos, limitação de fim de semana).

Cesare de Bonesana, o Marquês de Beccaria (2006, p. 49), pontifica:

Entre as penalidades e no modo de aplicá-las proporcionalmente aos delitos, é necessário, portanto, escolher os meios que devem provocar no espírito público a impressão mais eficaz e mais durável e, igualmente, menos cruel no culpado.

John Rawls (1987, p. 81) diz que

The priority of the basic liberties implies that they cannot be justly denied to any one, or to any group of persons, or even to all citizens generally, on the grounds that such is the desire, or overwhelming preference, of an effective political majority, however strong und enduring. The priority of liberty excludes such considerations from the grounds that can be entertained.

Assim, é dever estatal obedecer aos preceitos mínimos traçados na Constituição, na Lei de Execução Penal e também semear elementos de menoscabo ao poder social, pois o Direito Penal apenas serviria para hostilizar os menos favorecidos e mais distantes dos bens de consumo, em um constante processo de repulsa social.

Jesús-María Silva Sánchez (2000, p. 54) aponta a segregação entre ricos e pobres no Direito Penal, o que é totalmente adaptável a realidade jurídico-penal brasileira:

Sin embargo, por otro lado, y simultáneamente, se propugnaba el recurso al Derecho penal como mecanismo de transformación de la sociedad y de intervención contra quienes obstaculizaban el progreso de la misma hacia formas más avanzadas e igualitárias de convivencia democrática M. Este modelo abonaba una utilización selectiva -y, además, antigarantista- de los instrumentos punitivos en términos opuestos a los seguidos por el Derecho penal convencional. Si a éste se le imputaba el incidir únicamente sobre los «powerless» y dejar de lado a los poderosos, se trataba de modificar su orientación de modo que no incidiera sobre los marginados (para los que lo procedente sería el recurso a la política social) y sí en cambio sobre los «powerful». Em este último ámbito sí se justificana desde todos los puntos de vista la intervención -lo más amplia posible- del Derecho penal.

Renato Flávio Marcão (2003, on-line) aponta que “A crise instalada na execução penal se reflete, também, na segurança pública. Não se restringe aos direitos e garantias do preso. É certo que, na medida em que não se efetivam as regras da execução penal, pune-se o condenado duas vezes” (g.n).

As funções da pena privativa de liberdade são erigidas ao patamar de equilíbrio entre idéias absolutas e relativas, positivas e negativas, pois não se pode apenas querer punir o cidadão que delinqüe, pois não raras vezes consegue observar o desdém estatal no atendimento de suas necessidades, desde a concessão vagas em escolas até o suprimento de alimento, saúde, educação.

A Execução Penal no Brasil viola o princípio da humanidade (BORGES, 2005, p. 87).

 

4.    Da restrição às visitas

A Lei de Execução Penal brasileira também encampa os ideários da filosofia das luzes que bem acompanhou a crescente do humanismo e, por conseguinte, da dignidade da pessoa humana. No entanto, na realidade fática, seu descumprimento é contundente.

Logo em seu artigo 1º, a Lei nº 7.210 de 11-07-1984 institui que “a execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”.

A partir da Escola do Neodefensismo Social, fonte na qual beberam os legisladores responsáveis pela Lei de Execuções Penais de 1984, buscou-se a instituição de uma política criminal fundada na idéia de que a sociedade só é realmente defendida quando se propicia ao condenado a adaptação ao meio social. Seria impossível alcançá-la, porém, sem uma humanização progressiva da pena privativa de liberdade e uma liberação progressiva de sua execução.

Inicia-se aí a violação à norma, posto que a incomunicabilidade do preso e a restrição ao seu direito de visita são extremamente prejudiciais à sua reintegração social, tendo o objetivo claro de afastá-lo do convívio com seus familiares e com o mundo extramuros.

É importante ressaltar o quanto os vínculos sociais, afetivos e familiares são importantes para afastar o indivíduo da delinquência e proporcionar seu retorno à sociedade de forma efetiva. E, para a manutenção dos laços afetivos com o cônjuge, a família e os amigos, o contato é essencial.

Nesse sentido expõe Ivan Carvalho Junqueira (2005, p. 100), através de depoimentos de ex-presidiários, que os dias mais aguardados pelos detentos são os dias de visita, pois isso representa o encontro com o mundo livre, com as notícias da rua.

Já o art. 3º da mesma lei trata da preservação dos direitos dos condenados

Art. 3º – Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei.

O condenado não deve cumprir, seja quantitativa, seja qualitativamente, pena diversa daquela que lhe for aplicada pela sentença. Os direitos a ele restritos devem estar diretamente expressos na sentença. Todas as outras garantias inerentes à dignidade humana permanecem intactas.

Conforme esclarecido por Mirabete (2004, p. 39), com o intuito de impedir o excesso ou desvio da execução que comprometa a dignidade humana, a LEP torna expressa a titularidade de direitos constitucionais dos encarcerados. Por outro lado, assegura também direitos para que eles, em sua condição particular, possam desenvolver-se no sentido da reintegração social, buscando afastar problemas que surgem junto com o encarceramento.

Além disso, a Lei de Execução Penal, no art. 41, inciso X, reconhece o direito do preso a receber visitas, in verbis:

Art. 41 – Constituem direitos do preso:

(…) X – visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados.

É essencial ao regime penitenciário o princípio de que o preso não deve romper seu contato com os familiares e amigos, para que ele sinta sua relação não seja debilitada. Segundo Mirabete (2004, p. 124)

Não há dúvida de que os laços mantidos principalmente com a família são essencialmente benéficos para o preso, porque o levam a sentir que, mantendo contatos, embora com limitações, com as pessoas que se encontram fora do presídio, não foi excluído da comunidade. Dessa forma, no momento em que for posto em liberdade, o processo de reinserção social produzir-se-á de forma natural e mais facilmente, sem problemas de readaptação a seu meio familiar e comunitário.

Aliás, as Regras Mínimas de Tratamento dos Presos da ONU preceituam que se deve cuidar para preservar as boas relações do preso com sua família, desde que sejam convenientes para ambas as partes (nº 79), devendo ser autorizadas visitas de familiares e amigos periodicamente (nº 37).

A Resolução 14, do Conselho Nacional de Política Penitenciária é clara ao salientar no artigo 33 e 36 que:

O preso estará autorizado a comunicar-se periodicamente, sob vigilância, com sua família, parentes, amigos ou instituições idôneas, por correspondência ou por meio de visitas.

A visita ao preso do cônjuge, companheiro, família, parentes e amigos, deverá observar a fixação dos dias e horários próprios.

Como se não bastasse o drama vivido cotidianamente no cárcere devido à falta de liberdade, a prática adotada nas alterosas priva o encarcerado ainda do liame estabelecido com a companheira ou companheiros, com os filhos e com os amigos mais próximos, o que impede as possibilidades de ressocialização e reeducação (JUNQUEIRA, 2005, p. 100)

Com a prática adotada pelo Secretaria de Administração Penitenciária, a Lei de Execuções Penais, Resolução supra citada e as Regras Mínimas da ONU são violadas porquanto, malgrado haja previsão normativa para suspensão ou restrição da visita, o descumprimento sobressaiu aos olhos, pois não há qualquer espécie de visitação a presos antes do período de triagem instituindo verdadeira sanção disciplinar sem cometimento de falta grave realizado por autoridade incompetente para tal.

O direito à liberdade não pode ser subtraído do cidadão em um estado de normalidade institucional, uma vez que a restrição a esse direito apenas pode decorrer em uma hipótese de crise hábil a justificar tal medida de extrema gravidade como se apura da leitura constitucional.

 

5.    Da incomunicabilidade do preso

A incomunicabilidade do preso existe com previsão no ordenamento jurídico, a saber, no artigo 21, do Código de Processo Penal, contudo, infere-se que tal prática restou não recepcionada pela Constituição Federal de 1988, tendo em mente sua incompatibilidade material com o conteúdo libertário impingido pela nova legislação que assegura ao preso assistência jurídica e familiar nos termos do artigo 5º, LXII, da lei magna.

Mirabete (2004, p. 100) é taxativo ao declarar que

O artigo 21 do CPP, entretanto, foi revogado pela nova Constituição Federal que, no capítulo destinado ao ‘Estado de Defesa e de Sítio’, proclama: ‘É vedada a incomunicabilidade nas situações excepcionais, em que o Governo deve tomar medidas enérgicas para preservar a ordem pública ou a paz social, podendo restringir direitos, com maior razão não se pode permiti-la em situação de normalidade. Aliás, a nova Carta Magna assegura ainda ao preso a ‘assistência da família e de advogado’ (artigo 5º, LXIII), determinando que sua prisão seja comunicada imediatamente ao ‘juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada’ (art.5º, LXII). Não havendo nenhuma ressalva a esses direitos nos dispositivos constitucionais, não pode a lei possibilitar a incomunicabilidade do preso em hipótese alguma.[3]

Para Fernando da Costa Tourinho Filho (2002, p. 210), em hipótese alguma é permitido a incomunicabilidade do preso, seja em situações excepcionais ou não, quando escreve que:

Ora, se durante o estado de defesa, quando o Governo deve tomar medidas energéticas para preservar a ordem pública ou a paz social, ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza, podendo determinar medidas coercitivas, destacando-se restrições aos direitos de reunião, ainda que exercida no seio das associações, o sigilo da correspondência e o sigilo de comunicação telegráfica e telefônica, havendo até prisão sem determinação judicial, tal como disciplinado no art. 136, § 3.º, IV), com muito mais razão não há que se falar em incomunicabilidade na fase do inquérito policial.

Já na ótica de Paulo Lúcio Nogueira (1996, p. 44):

Data venia, também entendemos que houve revogação da incomunicabilidade, tanto do preso comum como do político, já que não há propriamente diferença no tratamento a ser dispensado. E se a proibição existe no estado de exceção ou defesa, com muito mais razão deve prevalecer no Estado democrático ou de Direito, em que deve haver maior proteção. A proibição não só vale para a fase do inquérito como também para a fase processual, sob pena de restrição de direitos conquistados pela vigente Constituição Federal.

José Geraldo da Silva (2000, p. 201), sendo simples e taxativo, se manifesta da seguinte maneira:

A Constituição Federal vigente diz no art. 136, § 3º, IV, que, em estado de defesa e de sítio, “é vedada a incomunicabilidade do preso”. Assim sendo, nesses casos não há que se falar em incomunicabilidade na fase do inquérito policial.

Neste mesmo sentido, cite-se a posição de Flávio Meirelles Medeiros (1994, p. 90) que também chegou a esta conclusão:

Quer nos parecer que esse dispositivo do CPP encontra-se revogado pelo artigo 136, parágrafo 3º, inciso IV, da CF, o qual veda a incomunicabilidade do preso na vigência de estado de defesa. Ora, se na vigência de estado de defesa, situação excepcional, é vedada, pela nova Carta Política, a incomunicabilidade do preso, é de se entender que a Constituição Federal proíbe a incomunicabilidade também quando não está em vigor o estado de defesa.

Fernando Capez (2008, p. 82) leciona que

Ora, se não se admite a incomunicabilidade durante um estado de exceção, o que não dizer da imposta em virtude de mero inquérito policial. Também, o art. 5º, LXII e LXIII, do mesmo texto teria revogado o dispositivo infraconstitucional, já que a incomunicabilidade tornaria as garantias ali consagradas inócuas.

Rosmar Antonini e Nestor Távora (2008, p. 92) apontam em sentido idêntico sustentando a inconstitucionalidade da medida quando contraposto com os mesmos alinhamentos constitucionais sobre o tema.

Com arrimo nas linhas retromencionadas como a própria lei não pode criar tal restrição não seria crível que um ato infralegal da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado o fizesse sem que houvesse o supedâneo fático-constitucional autorizador da medida, qual seja, a gravidade da manutenção da ordem pública interna ou a crise institucional.

 

6.    Conclusão

A proibição ao direito de liberdade pode vir apenas nos limiares da condenação criminal do preso ou em decorrência da prisão cautelar, sendo certo que o direito de visitação não pode sofrer cerceamento por ato interno da administração penitenciária do Estado, a qual, por seu turno, por ato infralegal restaura a incomunicabilidade do preso pelo período de 30 (trinta) dias dentro do estabelecimento prisional no período em que chegam ao presídio.

O item 6.1.21 também cria o isolamento do preso, sem visitação, para classificação por 30 (trinta) dias, o que vulnera também o artigo 41, X, da Lei de Execução Penal que assegura o direito à visita, amplo e ilimitado, bem como o artigo 4º, da Portaria 2.065/07 do Ministério da Justiça que admite o direito à visita inclusive em período de triagem nos estabelecimentos penitenciários federais e o artigo 37, X, do Decreto 6.049/07 que regulamenta os estabelecimentos penitenciários federais.

Ainda na Lei de Execução Penal frisamos que o ato de decretar o isolamento cautelar do preso é de atribuição da autoridade diretora do presídio não podendo ser determinada em um ato administrativo da SAP sob pena de flagrante crise de ilegalidade porquanto tal ato é sanção administrativa disposta no artigo 53, da Lei 7.210/84 e aplicada por aquela autoridade ex vi legis do artigo 54, da LEP.

Ao voltarmos os olhos para a Constituição temos que o Estado possui competência concorrente para legislar em matéria de direito penitenciário, contudo, a fixação de competência para regras gerais é da União que estabeleceu na LEP o direito à visita sem qualquer restrição e estabeleceu o isolamento como sanção disciplinar, portanto, o ato de proibir genericamente a visita a todos usurpa a competência da União já delimitada na LEP para tal isolamento e, ao fim, viola também a analogia referente ao estado de sítio.

O POP viola também os princípios do contraditório, da ampla defesa apresentando-se como uma hipótese de presunção de culpabilidade genericamente traçada pelo Estado em desfavor dos detentos.

Desta feita, o item 6.1.21 do Procedimento Operacional Padrão da Subsecretaria de Administração Penitenciária é inquinado de ilegal e arbitrário por afrontar os dispositivos constitucionais sobre o tema.

 

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[3] Grifo nosso.

Flavio Augusto Maretti Sgrilli Siqueira

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