Abuso de Direito – art. 187 CC – e Homofobia: comentários acerca de decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

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Resumo: o artigo busca comentar decisão do TJRS que aborda pedido de indenização por danos morais decorrentes de ações ofensivas de caráter homofóbico praticadas por dentista contra um paciente. A partir dos votos vencedores e do voto vencido, analisa a questão do “abuso de direito” a partir do Direito Constitucional e do art. 187 do Código Civil, bem como a temática da discriminação contra homossexuais.

Palavras-chave: abuso de direito, danos morais, homofobia.

No dia 19 de outubro de 2009 o site do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) noticiou acórdão da 6ª Turma daquele Tribunal que julgara a Apelação Cível n. 70028064632, que se insurgira contra sentença que condenara o réu a pagar valor a título de indenização por danos morais1. Seria esta mais uma decisão não fosse a singularidade do caso.

Tratava-se de ação movida por um cabeleireiro (autor) contra seu dentista (réu) porque este o constrangeu a fazer exame de HIV e de Hepatite B, já que aquele acidentalmente entrou em contato com sangue deste quando de uma consulta. O dentista o obrigara a fazer isso porque disse que seu paciente pertencia a “grupo de risco”. A ação havia sido julgada procedente no primeiro grau, mas o TJRS aumentou o valor da indenização.

O réu era cliente do autor e, quando estava no salão deste, o autor havia reclamado estar com dor de dente, ali mesmo marcaram consulta. Durante o procedimento dentário, o réu se machucou com a broca que estava utilizando no autor. Segundo a notícia, “[s]abendo da orientação sexual diversa [sic] do autor, desesperou-se, afirmando que ‘do nada poderia perder tudo’ e retirou-se do consultório sob a justificativa de que não possuía condições de finalizar o atendimento”. O cabeleireiro ficou abalado com o ocorrido e voltou a seu local de trabalho. Em seguida chegou o dentista e, à vista de todos os presentes, clientes e empregados, dizia que o cabeleireiro pertencia a um “grupo de risco” e exigia que ele fizesse exames de HIV e Hepatite, ou então o réu teria de começar a tomar o coquetel de medicamentos contra AIDS. Essa pressão continuou dias seguidos. Segundo testemunhas, o autor ficou muito abatido com o fato; outras testemunhas disseram que no dia do incidente o réu chegou a pegar o cabeleireiro pelo braço para levá-lo até um laboratório2.

O juiz de primeiro grau julgou procedente o pedido de indenização, fixando-a em três mil reais.

Ambos recorreram da sentença, sendo que o cabeleireiro pedia o aumento da indenização, já que a julgava irrisória, face ao patrimônio do dentista e também porque entendia ser a mesma insuficiente para coibir novas atitudes semelhantes do réu.

Já o réu entendia não caber indenização, pois que ele não era preconceituoso (tanto que até frequentava o salão e ainda o chamou para consultar consigo no mesmo dia); alegava ainda que não houvesse intenção de ofender e que foi a sua saúde que ficou exposta.

O recurso do cabeleireiro foi julgado procedente por maioria de votos e a indenização foi aumentada para dez mil reais; já o recurso do dentista foi julgado improcedente, in verbis:

APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. atendimento odontolÓgico. acidente OCORRIDO COM O PROFISSIONAL DENTISTA. corte CAUSADO PELA BROCA GERANDO CONTATO COM O SANGUE DO PACIENTE. exigência de exames de saúde PARA VERIFICAÇÃO DE CONTAMINAÇÃO POR doenças infectocontagiosas. ABUSO NA CONDUTA DO PROFISSIONAL AO EXIGIR A REALIZAÇÃO DOS EXAMES QUE AFASTA A EXCLUDENTE DO exercício regular do direito. ATO ILÍCITO OBJETIVO DECORRENTE DE ABUSO DE DIREITO. CABIMENTO DA INDENIZAÇÃO.

Tendo em vista a ocorrência de acidente profissional em intervenção odontológica, causando lesão no dentista e contato com o sangue do paciente presente no aparelho utilizado no procedimento, é lícito ao profissional, até por recomendação médica, exigir do paciente a pronta realização de exames laboratoriais para verificação da existência de eventuais doenças infectocontagiosas, viabilizando, inclusive, com o procedimento adequado, evitar o contágio.

Contudo, ao abusar o réu do direito a ele reconhecido, adentrando no estabelecimento profissional do autor e acusando-lhe em frente a seus clientes de pertencer a grupo de risco, em razão de suas opções sexuais, resta configurado o abuso de direito, afastando a excludente do exercício regular de um direito, implicando em ilícito objetivo passível de indenização, nos termos do art. 187 do CC/02.

Verificada a violação a direito da personalidade do autor, concernente à sua honra subjetiva e objetiva, cabível a condenação do demandado ao pagamento de indenização por danos morais.

Majoração do montante indenizatório para melhor adequá-lo aos parâmetros jurídicos adotados para a quantificação dos danos morais.

APELAÇÃO DO AUTOR PROVIDA.

APELO DO RÉU DESPROVIDO (Apel.Cív. n. 70028064632, TJRS, 6ª T., Rel. Des. Liege Puricelli Pires. DJ. 11/09/2009).

A questão que colocamos aqui no presente é justamente a correção da decisão do TJRS (inclusive do voto vencido) frente aos postulados do Estado Democrático de Direito, notadamente no que tange à privacidade, intimidade e proteção à vida privada.

A decisão nos parece correta, mas sua fundamentação se mostra problemática. Ela desrespeita a liberdade individual sob o argumento paradoxal de pretender defendê-la.

Tanto o acórdão majoritário quanto o voto vencido são passíveis de críticas. No fundo, as posições de ambos não são tão divergentes quanto parecem à primeira vista. O Acórdão, por entender que o dentista teria direito a que o cliente fizesse os exames, mas que apenas teria errado em razão do constrangimento, do “excesso”, abusando de seu direito3.

E o Voto Vencido4, pois que, na verdade, o direito à vida (digna)5 desrespeitado foi o do paciente, não o do dentista.

Questionamos a “correção” quanto à pretensão do réu acerca de um “direito” à preservação de sua saúde, o que justificaria o “incômodo” imposto ao autor da ação: seria esta uma pretensão legítima ou configuraria um abuso de direito? Uma primeira leitura do caso poderia levantar a hipótese de se tratar de um “conflito entre princípios” (valores): de um lado, a privacidade, de outro o direito à vida.

Entendemos que não há aqui um “conflito entre valores”, já que um deles apenas é aplicável “prima facie”, sendo, entretanto, abusivo, “in casu”6. Em primeiro lugar, seria requerido de um profissional da saúde o conhecimento de que, quanto à AIDS, órgãos públicos e organizações não-governamentais já não mais trabalham com a ideia de “grupos de risco” (homossexuais, prostitutas, hemofílicos, etc.), como nos anos 1980 e sim de “situações de risco”. Atribuir a um sujeito a “suspeita” (ou quase certeza, dada a reação do réu) de ser portador do vírus HIV (e/ou de Hepatite) apenas porque este é homossexual se traduz em discriminação (o que é condenado pela Constituição: art. 3º, IV)7. De forma que, como poderia desse ilícito surgir, no caso, um direito para o dentista?

Em segundo lugar, as ações do réu fundadas no direito à vida e à saúde configuram uma pretensão abusiva de direito, no caso8. O que o impediria de fazer exames (gratuitamente, diga-se de passagem, pelo SUS) e/ou tomar remédios (também distribuídos gratuitamente)? Aliás, este é o procedimento que se recomenda nesses casos. De toda sorte, mesmo que o exame para HIV e/ou o exame de Hepatite fossem positivos, não há como saber com certeza exatamente em que situação ele teria se infectado. Com ou sem constrangimento a pretensão do réu seria abusiva.

Nesse sentido o voto da Relatora para o acórdão, Des. Liége Puricelli Pires:

(…) a discussão [aqui] não reside na caracterização, em tese, da excludente da responsabilidade, mas no abuso de tal prerrogativa pelo demandado, circunstância que faz subsumir a conduta do requerido na hipótese do art. 187 do CC/029 (…). No caso concreto, tais limites restaram ultrapassados pelo autor, tornando irregular o exercício do direito por ele invocado.

 

Noutro lado, temos a preservação do direito à intimidade e à vida privada. Diz o princípio da legalidade que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (art. 5º, II – CR/88) e, mais especificamente, a Constituição garante a preservação da (e a indenização por violação à) intimidade no art. 5º, X: “ são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

O que há, nesse caso, senão a ação ilícita do réu em querer obrigar o autor a fazer algo a que este não está vinculado por lei? Isso ainda em detrimento de sua privacidade, já que o réu expôs o autor frente a terceiros com insinuações discriminatórias.

Não se pode tratar mais essas questões que envolvem privacidade, dever de conduta, direitos fundamentais, integridade física e moral, etc, no marco de um direito privado tradicional, que raciocina em termos patrimonialistas; há aqui uma questão de reconhecimento da dignidade das pessoas envolvidas.

Imaginem o desrespeito que é o reconhecer um suposto direito “regular” a alguém de “buscar junto a outrem” o realizar exames médicos, ainda mais nas circunstâncias em que a questão se deu, um acidente, aliás, causado pelo próprio dentista, um profissional de saúde, no seu consultório, diante de um paciente? E como esse suposto direito poderia ser regularmente exercido? Judicialmente? Um juiz ou tribunal poderia condenar alguém a fazer um exame médico, ainda mais nessas circunstâncias? Quer dizer que sem “constranger” se pode exigir de alguém o que pretendia o dentista?

A autonomia privada do indivíduo, em um Estado Democrático de Direito implica um espaço que ele possui de reserva, um lugar de “não-manifestação”; e ainda, no limite, implica o “direito de não ser altruísta”, é dizer, o altruísmo e a compaixão são imperativos morais que não são chancelados pelo Direito10.

 

Referências bibliográficas:

BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Anti-Semitismo, Tolerância e Valores: anotações sobre o papel do Judiciário e a questão da intolerância a partir do voto do Ministro Celso de Mello no HC 82.424. Revista dos Tribunais, São Paulo, v.847, p. 443-470, maio 2006.

BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. A não-discriminação como Direito Fundamental e as redes municiapis de proteção a minorias sexuais – LGBT. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 186, p. 89-115, abr./jun. 2010.

BAHIA, A., NUNES, D. O potencial transformador dos direitos privados no constitucionalismo pós-88. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 882, p.45-60, abril 2009.

BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco; MORAES, Daniel. Discriminação contra minorias sexuais, religião e o constitucionalismo brasileiro pós-88. Revista General de Derecho Constitucional, Madrid, v. 10, p. 409-431, octubre 2010.

CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo A. Devido Processo Legislativo: uma justificação democrática do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e do processo legislativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000.

GÜNTHER, Klaus. Justification et application universalistes de la norme en droit et en morale. Archives de Philosophie du Droit, Paris, tome 37, p. 269-312, 1992.

GÜNTHER, Klaus. Uma concepção normativa de coerência para uma teoria discursiva da argumentação jurídica. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, n. 6, p. 85-102, 2000.

HABERMAS, Jügen. Três modelos normativos de democracia. Cadernos da Escola do Legislativo, Belo Horizonte, n. 3, p. 107-121, jan./jun. 1995

HABERMAS, Jügen. Remarks on erhard denninger’s triad of diversity, security, and solidarity. Constellations, Oxford, v. 7, n. 4, p. 522-528, 2000.

 

1 Disponível em: < http://www.tjrs.jus.br/site/imprensa/noticias/>.

2 De acordo com o acórdão: “o demandado, não contente em externar assunto de foro íntimo do autor, acusando-lhe de pertencer a grupo de risco em razão de suas orientações sexuais, passou insistindo no local de trabalho do autor, desta feita por telefone, para saber do resultado dos exames, outra conduta a desbordar dos limites de um exercício regular de direito” (trecho do Voto da Relatora, Des Liege Puricelli Pires, Apel.Cív. n. 70028064632, TJRS, 6ª T., DJ. 11/09/2009).

3 “…não há dúvidas que o réu tem o direito de buscar junto ao paciente a realização dos exames laboratoriais” (Des. Liége Puricelli Pires – seu voto foi seguido pelo Des. Luiz Augusto Coelho Braga). Para ela, entretanto, o que houve foi “abuso daquela prerrogativa”: “Desconsiderando a carga pejorativa e equivocada da expressão (segundo os médicos não se pode mais pensar em grupos de risco em disseminações virais como as do HIV e Hepatite B), o réu desbordou dos limites ao externar suas impressões em relação ao demandante na frente de seus clientes, inclusive criando constrangimentos que implicaram em perda de clientela” (trecho do Voto da Relatora, Des Liege Puricelli Pires, Apel.Cív. n. 70028064632, TJRS, 6ª T., DJ. 11/09/2009).

4 O Desembargador Artur A. Ludwig (voto vencido), entendeu que o direito à saúde do dentista no caso (já que se trata de doença grave, que reclama providências imediatas) justificava suas ações, não havendo, pois, dano moral indenizável. Para o Desembargador, “não caracterizam dano moral as situações que, embora desagradáveis, são necessárias ao exercício regular de direito reconhecido” (sem grifos). De fato, havendo suspeita de contágio o procedimento é que se tome preventivamente o coquetel de remédios, o que reduz, em muito, a chance de desenvolvimento da doença. Entretanto, duas questões não foram consideradas aqui, em primeiro lugar, nenhum direito é absoluto (cf. e.g., AgR.RE 455283, STF, 2ª T., Rel. Min. Eros Grau, j. 28/03/2006) e nem hierarquicamente superior a outro (prima facie), em segundo lugar, como mostraremos, a pretensão do réu, no caso, se mostrava abusiva.

5 O direito à vida não se resume a uma leitura “negativa” (direito de não ser morto), mas se estende hoje a leituras “positivas” que ressaltam que a preservação do direito à vida inclui a dignidade (cf. BAHIA; NUNES, 2009).

6 BAHIA (2006, p. 455 et seq).

7 BAHIA; MORAES (2010) e BAHIA (2010).

8 Klaus Günther (1992; 2000) mostra que, ainda que pretensões a direito possam se apresentar como válidas e aplicáveis prima facie, somente no caso concreto é que será possível verificar qual delas é a adequada. De forma que o “conflito entre princípios” é sempre aparente ou inicial, já que a reconstrução das particularidades do caso e das pretensões a direito mostrará qual deve ser aplicado.

9 Diz o art. 187 do Código Civil: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

10 Habermas entende que o Direito na Modernidade está fundado na tensão entre “direitos humanos” (autonomia privada) e “soberania popular” (autonomia pública). A autonomia privada garante um espaço no qual o cidadão não é obrigado a tomar posições público-políticas. Ele cita, a propósito, um exemplo mencionado por Denninger: a “Joint Constitutional Comission” estabeleceu via Resolução que “each person is urged to be altruistic and to respecto the common good” (HABERMAS, 2000, p. 527). Contra tal medida pedagógica, Habermas mostra que “[i]n modern legal orders, for good reasons the political rights of participation and communication take on the form of subjective-public rights, which can be interpreted by citizens as liberties. Citizens of a democratic state are free to decide when and how they can make use of their political rights. In any case, respect for the common good can only be recommended, but it cannot be made into a duty” (idem). Não se pode pretender do cidadão que haja sempre orientado eticamente ao “bem comum”, como pretendem os republicanos (cf. HABERMAS, 1995 e CATTONI DE OLIVEIRA, 2000, p. 58).

Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia

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