Reposicionamento do direito penal sob um viés constitucional: perspectivas humanistas

Scarica PDF Stampa

RESUMO: Dentro do movimento denominado neoconstitucionalismo e pós-positivismo, inúmeras perspectivas teóricas passa a influenciar a ciência jurídica. Especificamente o Direito Penal passa a ser reinterpretado sob um viés constitucional, sendo encarado não apenas como idealização legal, mas, sobretudo como emanação constitucional. Portanto, as normas arcaicas incrustadas no Código de 1940 não tutelam de forma condizente os bens jurídicos fundamentais para a atual ordem constitucional, não correspondendo adequadamente aos acontecimentos dentro da ordem social. Deste modo, por essas e outra razões, o sistema penal acaba atuando de forma eminente coercitiva e violadora de garantias constitucionais. Substancialmente, atendendo a essa nova concepção do fenômeno jurídico, um novo olhar deve ser lançado sobre os fundamentos do Direito Penal. Aventa-se, assim, para que os princípios dos constitucionais, os postulados acerca dos Direitos Humanos e, especialmente, o conteúdo normativo da dignidade da pessoa humana, possam alicerçar estas perspectivas humanistas.

 

PALAVRAS-CHAVE: DIREITO PENAL. TUTELA CONSTITUCIONAL. DIREITOS HUMANOS.

 

1. Introdução

As bases teorias que permitem a abordagem proposta estão intimamente relacionadas com a moderna teoria constitucional. O desenvolvimento teórico desencadeado após a segunda Grande Guerra Mundial irradiou para inúmeros países, permitindo uma série de novas perspectivas teóricas. A centralidade e força normativa da constituição, pelo neoconstitucionalismo e a consideração normativa dos princípios, pelo pós-positivismo, foram cruciais para a ocorrência da constitucionalização de direitos e a abrangência dos direitos fundamentais.

Especificamente no Brasil a doutrina aponta a Constituição Federal de 1988 como marco jurídico-político importante para a expansão da jurisdição constitucional e a confecção de uma interpretação constitucional peculiar1.

Deste modo, o Direito Constitucional passa a ser um dos fundamentos axiológico-normativos do Direito Penal, perpassando indubitavelmente pelos Direitos Humanos. Portanto, o Direito Penal sob um viés constitucional deve se sustentar, também, pelo conteúdo irradiante da dignidade da pessoa humana.

 

2. As incongruências do Código Penal brasileiro

A sociedade brasileira adentra no século XXI com um Código Penal publicado em 1940, com uma parte geral de 1984. São, portanto, setenta anos de vigência de um diploma que acaba não correspondendo nem aos anseios populares e configuração social, nem aos ditames da constituição.

Talvez por isso, encontramos desproporções diversas no postulados do Código Penal. O conteúdo machista é notório ao tratar o gênero feminino, emanando conceitos e valores completamente discriminatórios. Embora recentes mudanças tenham retirado formalmente a menção “mulher honesta”, o art. 59 do Código ainda permite margens para considerações retrógadas.

Em outros aspectos2, verificamos que o delito de latrocínio (art. 157, §3º) prevê uma pena de 20 a 30 anos de reclusão, em discrepância com a pena de 12 a 30 anos de reclusão prevista para o crime de estupro de vulnerável que resulte em morte (art. 217-A, §4º). Além disso, atenta-se para a gritante disparidade a pena de 6 a 20 anos reclusão estipulada para o homicídio simples (art. 121). O patrimônio, segundo o Código, merece uma tutela mais repressora do que os bens jurídicos vida e liberdade sexual.

Com o intuito de expor estas incongruências do Código, relembra que ele prevê uma pena de 2 a 8 anos de reclusão para um agente que reduz alguém à condição análoga de escravo (art. 149) e estipula uma pena de 3 a 8 anos de reclusão para um sujeito que subtrai um veículo automotor e o transporta para outro Estado ou para outro país (art. 155, §5º). O furto e transporte de um veículo automotor para outros Estados recebe tratamento penal mais repressivo do que manter um trabalhador como escravo.

Ainda mais, escancarando os equívocos mencionados:

Para deixar um pouco mais clara a reflexão, atém-se ao seguinte fato: se um criminoso, sem a intenção de matar, furar os dois olhos de uma pessoa e, a ainda, deixá-la tetraplégica, poderá receber uma pena de 2 a 8 anos de reclusão, mas, se ousar a roubar o relógio de uma pessoa, ameaçando-a com uma arma de brinquedo, sem lhe produzir qualquer lesão física, estará sujeito a uma pena de 4 a 10 anos de reclusão. (ANDRADE, 2009, p. 27)

Evidente, portanto que os exemplos mencionados podem gerar inúmeras injustiças e estigmas, revestindo determinados sujeitos, segmentos sociais, ou até mesmo o gênero feminino, de uma alta carga discriminante sem qualquer fundamento jurídico.

Infelizmente, mesmo com as diversas mudanças sofridas, o Código Penal ainda perpetua e emana uma mentalidade patrimonialista e desproporcional, completamente dissociada de uma necessária adequação à Constituição Federal.

 

3. As mazelas do sistema punitivo brasileiro

As incongruências normativas mencionadas acabam refletindo diretamente no Sistema de Justiça brasileiro. Essas questões são evidenciadas quando se verifica o sistema penitenciário brasileiro. Sem entrar na discussão da notória violação da Lei de Execuções Penais e da própria Constituição em relação ao tratamento dispensado aos presos brasileiros, é possível perceber como são nefastas estas desconexões do sistema.

Dando concretude para o alegado, menciono o relatório de junho de 2010 do Departamento Penitenciário Nacional (DPEN), órgão vinculado ao Ministério da Justiça3, traz inúmeras peculiaridades. A população brasileira é estimada em 191.480.630 de habitantes e a população carcerária é de 494.237 pessoas. O que enseja na alarmante proporção de 258,11 pessoas presas por 100.000 habitantes.

Além disso, a quantidade de crimes, tanto tentados como consumados, é de 432.787. E a maior quantidade de pessoas presas, 217.247 (50,19% do total), refere-se a crimes contra o patrimônio. Este aspecto poderia ensejar diversas análises e conclusões, denunciando tanto a preocupação meramente patrimonialista do Código Penal e do Sistema de Justiça, como também graves problemas sociais.

Outros aspectos são revelados se os dados apontados são correlacionados. No Brasil, existem apenas 59 pessoas presas pelo delito de apropriação indébita previdenciária (Art 168-A), crime normalmente praticado por pessoas com relativo poder aquisitivo. Como já dito, longe de ser reducionista e para além de inúmeras variáveis que concorrem para essas estatísticas, o Direito Penal brasileiro atua de forma desarrazoada tutelando bens jurídicos em completo descompasso com a realidade e com a Constituição.

Continuando, os presos por crimes contra o meio ambiente totalizam no Brasil 120 pessoas. Ora, em um momento delicado da conjuntura internacional em que diversos organismos promovem congressos, publicam declarações e estudos, constatando os inúmeros danos que o meio ambiente vem sofrendo ao longo, sobretudo, do último século, não existe qualquer razão plausível para que apenas 120 pessoas cumpram pena no Brasil.

Ainda há mais. Segundo o Relatório do Departamento Penitenciário Nacional há apenas 723 pessoas presas por crimes contra a Administração Pública. Estas percepções demonstram que a cifra negra em relação a estes crimes é enorme.

O relatório do DPEN acaba não mencionando diversos crimes previstos em legislação especial, tais como, crime contra o sistema financeiro, sonegação fiscal ou contra a ordem econômica. Esta omissão ou é em razão da falta de presos por estes crimes ou por equívocos no levantamento e não em função da ausência no cometimento de crimes.

A afirmação é possível e constatada após analise do levantamento produzido pelo Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário4 (IBPT) sobre sonegação fiscal pelas empresas brasileiras. Este estudo foi publicado em 2009 e elenca dados entre anos 2000 a 2008. O estudo aponta que a sonegação das empresas brasileiras corresponde a 25% do seu faturamento. Alerta que o faturamento não declarado chega a alarmantes R$ 1,32 trilhão. E os tributos sonegados pelas empresas somam R$ 200 bilhões por ano.

Assim, mais uma vez demonstra-se que existe uma persecução penal incongruente no Brasil, pois, bens jurídicos relevantes ou ofensas a certos bens jurídicos que promovem maior repercussão social e econômica são pouco averiguados, reprimidos e punidos. Um redirecionamento da atuação estatal é imprescindível para que o Direito Penal não realize, em certos casos, tutelas excessivas e em outros deficientes.

 

4. A tutela pena dos bens jurídicos relevantes constitucionalmente

Pelo exposto e para evitar uma proteção insuficiente, a Constituição Federal de 1988 poderia ser considerada como conteúdo normativo do Direito Penal. De tal modo, os bens jurídicos expressamente mencionados receberiam maior tutela e acuidade. Neste viés leciona Feldens (2005, p. 60): “A intensa relação que compartem a Constituição e o Direito Penal pode ser diagnosticada, prima facie, pelo universo de normas explicitamente positivadas na ordem normativa superior (Constituição Penal em sentido formal)”.

A Constituição brasileira ressalva inúmeros bens jurídicos que merecem uma efetiva tutela penal. No art. 5º encontram-se os seguintes: previsão de legislação repressiva contra qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais, no inciso XLI; racismo no inciso XLII; tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo e crimes hediondos no inciso XLIII; e ação de grupos armados, civis ou militares contra a ordem constitucional e o Estado Democrático no inciso XLIV.

No artigo 7º, inciso X, encontramos a previsão sobre a retenção dolosa do salário dos trabalhadores. No art. 29-A, §2º a estipulação de crime de responsabilidade do Prefeito Municipal e no §3º de responsabilidade do Presidente da Câmara dos Vereadores.

Agora, no art. 225, denotam-se as condutas lesivas ao meio ambiente e no art. 227, § 4º, há estipulação para a punição em razão do abuso, a violência e a exploração sexual de criança ou adolescente.

E no art. 236, §1º, prevê a responsabilidade criminal dos notários, oficiais de registro e prepostos.

No entanto, podemos ainda verificar algumas menções implícitas no texto constitucional para que determinadas condutas sejam criminalizadas. Esta percepção, de origem alemã, não pode estar dissociada dos princípios do Direito Penal, em especial da intervenção mínima e da subsidiariedade. Ainda assim, estará permeada, fundamentada e limitada pelo princípio da proporcionalidade. A partir deste recorte, podemos identificar que a Constituição Federal de 1988 não exigiu expressamente a tutela penal de violações contra a vida, a dignidade humana ou mesmo contra a liberdade. De qualquer forma, como inerentes à própria conceituação de Estado Constitucional, evidente que se faz necessária uma previsão punitiva contra atos que os atentem.

Essas previsões expressas e implícitas de tutela, por vezes, são desrespeitadas tanto pelo legislador infraconstitucional, que acaba não confeccionando a legislação determinada pela Constituição, como pelos agentes estatais, que acabam focalizando a persecução penal em bens jurídicos relevantes apenas para o Código Penal. É neste sentido que explana Márcia Dometila Lima de Carvalho:

Toda norma penal carece de fundamentação constitucional. Portanto, a não fundamentação de uma norma penal em qualquer interesse constitucional, implícito ou explícito, ou o choque mesmo dela com o espírito que perambula pela Lei Maior, deveria implicar, necessariamente, na descriminalização ou não aplicação da norma penal. (CARVALHO, 1992, p. 23)

Assim, a discussão doutrinária sobre punição e criminalização de condutas deveria, necessariamente, sob pena de inaplicabilidade ou até mesmo inconstitucionalidade, estar fundada nestas expressões Constitucionais.

 

5. Conclusão

A percepção da necessária relação entre Direito Constitucional e Direito Penal não é recente. Como já mencionado, o processo do neoconstitucionalismo contém inúmeros métodos, abordagens e perspectivas que podem sustentar essa constitucionalização do Direito Penal. Por isso, também, que diversas disciplinas jurídicas, em razão da mudança paradigmática, passaram a se sustentar em suas Constituições. No Brasil, não foi diferente.

Destarte, dentre outros ramos, o Direito Civil, o Trabalhista, o Processual e o Administrativo buscaram seus fundamentos normativos, limites materiais e fontes valorativas na Constituição. O Direito Penal permeou este caminho de forma lenta e gradual. Embora encontremos trabalhos, livros, congressos e jurisprudência nesse sentido, a cultura jurídica nacional resiste de forma mais incisiva numa aproximação.

De qualquer maneira, a justaposição, interlocução e até mesmo determinação fundante do Direito Penal pelo Direito Constitucional é irreversível. A normatividade da constituição (força normativa), a supremacia constitucional e sua centralidade são fenômenos consolidados no cenário jurídico e que ensejam essa abordagem multidisciplinar.

Nesse sentido recorre-se novamente à lição salutar de Márcia Dometila Lima de Carvalho:

Assim, voltando ao Direito Penal, a sua relação com a Constituição se verifica quando se depreende que a essência do delito se alicerça em uma infração ao direito, e o conceito do que é direito tem que ser deduzido do que se encontra concentrado como tal, como idéia de justiça, expresso no ordenamento constitucional. (CARVALHO, 1992, p. 37)

Ademais, o ordenamento constitucional e os bens jurídicos tutelados (expressa ou implicitamente) serão norteadores de toda a configuração do Direito Penal. Não há, no entanto, uma relação conflituosa ou de sobreposição, mas como explicita Feldens (2005, p. 94): “A relação entre bens jurídicos constitucionais e penais não haverá de ser necessariamente de coincidências, senão de coerência.”

Para o atingimento da necessária coerência, serão necessários, novos mecanismos interpretativos, novos pressupostos normativos e até mesmo outras normas, agora condizentes com esta readequação do Direito Penal.

De qualquer modo, a dignidade da pessoa humana e os fundamentos dos Direitos Humanos se apresentam como o ponto nevrálgico entre Direito Penal e ordenamento constitucional, sendo, deste modo, uma importante perspectiva que permite consolidar esse viés humanista para a temática.

 

REFERÊNCIAS.

 

ANDRADE, Lédio Rosa. Direito Penal Diferenciado. Florianópolis: Conceito Editoral, 2ª ed 2009.

BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a formulação do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009.

BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 11ª ed., 2007.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 19ª Edição, São Paulo: Editora Malheiros, 2006.

BORGES, Paulo César Corrêa. Direito Penal Democrático. São Paulo: Lemos e Cruz, 2005.

CARVALHO, Márcia Dometila Lima de. Fundamentação Constitucional do Direito Penal. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 1992.

COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 4ª Edição, São Paulo: Saraiva, 2005.

________________________. Fundamentos dos direitos humanos. In MARCÍLIO, Maria Luiza e outros (Coord.) Cultura dos direitos humanos. São Paulo: LTr, 1998. p. 53-74

FELDENS, Luciano. A Constituição Penal: a dupla face da proporcionalidade no controle de normas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.

_______________. Tutela Penal dos interesses difusos e crimes do colarinho branco: por uma relegitimação da atuação do Ministério Público: uma investigação à luz dos valores constitucionais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.

FLORES, Joaquín Herrera. Teoria Crítica dos Direitos Humanos: os Direitos Humanos como produtos culturais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

FRAGOSO, Cláudio Heleno Fragoso. Direitos Penais e Direitos Humanos. São Paulo: Editora Forense, 1977.

MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. A ciência do direito: conceito, objeto, método. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Processo e hermenêutica na tutela penal dos direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2ª ed. rev. e ampl., 2009.

RÚBIO, David S.; FLORES, Joaquín Herrera; CARVALHO, Salo de (Org). Direitos Humanos e Globalização Fundamentos e Possibilidades desde a Teoria Crítica. Rio de Janeiro, Lúmen Júris, 2004.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 24. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2005.

SHECARIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.

ZAFFARONI, Eugênio Raul & PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro, v. 01. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

WOLKMER, Antonio Carlos. Novos pressupostos para a temática dos direitos humanos. In: RÚBIO, David S.; FLORES, Joaquín Herrera; CARVALHO, Salo de (Org.). Direitos Humanos e Globalização Fundamentos e possibilidades desde a teoria crítica. Rio de Janeiro, Lúmen Júris, p. 03-19, 2004.


Roberto Galvão Faleiros Júnior

Paulo Cesar Corrêa Borges


1 Cf. Barroso (2009, p. 243-266)

2 Cf. Andrade (2009, p. 15-35)

3 Disponível em: http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJC4D50EDBPTBRNN.htm. Acesso em 30/10/10

Roberto Galvao Faleiros Junior

Scrivi un commento

Accedi per poter inserire un commento