O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana como elemento estruturante do sistema de direitos fundamentais na constituição brasileira de 1988

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  1. As faces ético-moral (axiológico), jurídico-normativa, política e cultural da dignidade da pessoa humana: breves delineamentos.

O princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado em nossa ordem constitucional, é fundamento basilar de nosso Estado e matriz principal de nosso sistema de direitos fundamentais. No presente capítulo, tentar-se-á demonstrar sua evolução histórica, bem como suas facetas ético-moral (axiológico), jurídico-normativo, político e cultural, por entenderem-se essenciais à compreensão do dito princípio como elemento unificador da ordem sistemática dos direitos fundamentais da Constituição de 1988, assim como fundamento maior do direito fundamental ao patrimônio cultural.

Em conformidade com o mestre português J. J. Gomes Canotilho (2003), o princípio da dignidade da pessoa humana, originado historicamente do princípio antrópico da dignitas-hominis – princípio pré-moderno há muito estruturado por Pico della Mirandola – retrata a ideia do homem enquanto sujeito autônomo de direitos, que guia sua vida em conformidade com seu projeto espiritual particular (plastes et fictor).

Na Modernidade, destaca-se, dentre outras, a obra de Immanuel Kant, que inspirado pelo pensamento antropocentrista, defendia que o indivíduo não poderia ser compreendido como mero objeto social, em razão de sua racionalidade, que lhe qualifica como pessoa. Isto é, o homem compreendido como ser racional, como fim em si mesmo, ergue-se a uma autonomia intelectiva que lhe concebe a qualidade de pessoa, de outro modo, os demais seres são, por ele, considerados meios, justamente por serem desprovidos de razão. Mais ainda, no pensamento kantiano, tem-se a acepção de que a razão humana é valor absoluto, vez que “a natureza racional existe como fim em si mesma” (KANT, 1992, p. 104). Em face disso, somente o ser humano é pessoa, pois só ele é racional. Desse modo, todo ser humano, por ser um ser racional, é pessoa, tendo seu projeto espiritual particular, segundo Kant, composto por valores, virtudes, consciência e experiência de sua própria vida. Em suas próprias palavras:

Age de tal sorte que consideres a Humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio […] os seres racionais estão submetidos à lei segundo a qual cada um deles jamais se trate a si mesmo ou aos outros simplesmente como meio, mas sempre e simultaneamente como fim em si […] o homem não é uma coisa, não é, por conseqüência, um objeto que possa ser tratado simplesmente como meio, mas deve em todas as suas ações ser sempre considerado como um fim em si (KANT, 1992, p. 105-111).

Posto isto, segundo o filósofo alemão, a pessoa, que não pode ser tratada como coisa, ou seja, como meio em si e sim como fim, é detentora da maior qualidade destinada a um indivíduo, a dignidade. Qualidade esta que, para Kant, constitui valor absoluto por não possuir substituto equivalente, o que para ele significa dizer não ter um preço de mercado, ou seja, um valor condicionado. Destarte, percebe-se que a dignidade é elemento precípuo inerente à pessoa humana.

A partir do pensamento kantiano, a dignidade da pessoa humana passa a influenciar as construções do homem no campo da política e das ciências, ganhando força com o movimento iluminista e, sobretudo, nas revoluções que ele inspirou. Destaque para a Independência dos Estados Unidos da América e as Constituições libertárias das Colônias, que vieram se tornar independentes, mormente a da Virgínia (1766), bem como para a Revolução Francesa (1789) e seus ideais de liberdade, igualdade e fraternidade.

Contudo, foi somente após a Segunda Guerra Mundial, através do movimento de constitucionalização dos direitos1, que o princípio da dignidade da pessoa humana passou a ocupar seu merecido lugar de proeminência, enquanto norma maior da liberdade racional do homem e expressão legítima de sua igualdade frente a seus semelhantes. Nesse sentido, ensina José Afonso da Silva (2010) que a dignidade da pessoa humana só foi alçada ao status de fundamentalidade constitucional, positivamente falando, pela Lei Fundamental da República Federal da Alemanha de 1949 (Lei de Bonn), que em seu art. 1º, n.1, estabeleceu: “A dignidade humana é inviolável. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todos os Poderes estatais”.

Em face da grande desgraça humana ocorrida durante a Segunda Guerra Mundial, emergiram-se, ainda, documentos internacionais reconhecendo os direitos do homem, com fulcro na dignidade da pessoa humana, destacando-se a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, que já em seu preâmbulo reconheceu a dignidade como sendo “inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis” e, em seu art. I, afirmou que: “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”.

Dentre os diplomas jurídicos constitucionais do pós-Guerra, ressaltem-se a Constituição Portuguesa de 1976 e a Constituição Espanhola de 1978, ambas assaz influenciadas pela Constituição Alemã, nas quais foi protegido vigorosamente o princípio da dignidade da pessoa humana, sendo este fundamento basilar da construção do Estado. Na Carta Constitucional Portuguesa, em seu art. 1º, dispôs-se que: “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”. Já no documento constitucional da Espanha, declarou-se em seu art. 10, n.1, que: “A dignidade da pessoa, os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o livre desenvolvimento da personalidade, o respeito à lei e aos direitos dos demais são fundamentos da ordem política e da paz social”.

Inspirado, principalmente, nas Constituições sociais e democráticas da Alemanha, Portugal e Espanha, o Constituinte brasileiro (1987/88) estatuiu a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito da República Federativa do Brasil, positivando-a no art. 1º, III da Constituição de 1988. Conforme leciona Ingo Wolfgang Sarlet (2010), ao estabelecer a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental do Estado brasileiro, o Constituinte reconheceu positivamente que é o Estado que existe em razão da pessoa humana e não a pessoa humana em razão do Estado, pois, conforme há muito ensinara Kant, é o homem quem constitui a finalidade essencial do Estado, não podendo ser mero meio da atividade estatal.

Justamente pelo fato de ter sido guinado à condição de princípio fundamental do Estado brasileiro, a dignidade da pessoa humana é reconhecidamente um valor supremo de sua ordem jurídica constitucional, sendo, nas palavras de José Afonso da Silva, “valor fundante da República, da Federação, do País, da Democracia e do Direito”, irradiando-se não só por toda a ordem jurídica, como também pela ordem política, social, econômica e cultural (2010, p. 40). Nesse mesmo sentido, ensina Carlos Roberto Siqueira de Castro (2005), que a dignidade da pessoa humana é o “princípio dos princípios”, principalmente devido à sua característica multifacetária, que influencia, de modo intenso, toda a ordem jurídica.

O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, evidentemente, possui um denso conteúdo axiológico, por exprimir os valores basilares da condição do homem enquanto pessoa (sujeito dotado de razão e consciência). Contudo, possui, também, um conteúdo jurídico-normativo, constitucionalmente estabelecido, que se irradia por toda à ordem normativa constitucional e infraconstitucional do Estado brasileiro, dotando de eficácia os valores fundamentais do homem e da sociedade tutelados pela dignidade da pessoa humana, constituindo-se, assim, em valor-guia2 do ordenamento jurídico pátrio, por se caracterizar como princípio constitucional de maior hierarquia axiológico-valorativo. Baseado em Karl Larenz, o professor Carlos Roberto Siqueira Castro (2005) demonstra que o princípio da dignidade da pessoa humana cumpre também papel deontológico ao conectar, com eficácia, as normas jurídicas do ordenamento, nos dizeres de Larenz, este, em razão disto, detém uma conexão multímoda. Ademais, expõe ainda que a dignidade humana possui importante papel na seara hermenêutica da ordem jurídica contemporânea, constituindo-se em um dos principais elementos interpretativos do direito nacional.

Por ser um princípio fundamental multifacetário que visa proteger, preservar e estimular o homem, a dignidade da pessoa humana o acompanha por toda sua vida, não podendo, em nenhuma hipótese, ser-lhe retirada, pois está na essência de sua própria natureza, inadmitindo que o ser humano seja vitimado por qualquer tipo de discriminação, humilhação e agressão (física ou moral), bem como seja perseguido, torturado, ou mesmo ameaçado. Nesse sentido, demonstra Ingo Wolfgang Sarlet que “a dignidade, como qualidade intrínseca da pessoa humana, é algo que simplesmente existe, sendo irrenunciável e inalienável, na medida em que constitui elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser destacado”. Mais ainda, segundo ele, “a dignidade independe das circunstâncias concretas, sendo algo inerente a toda e qualquer pessoa humana, de tal sorte que todos – mesmo o maior dos criminosos – são iguais em dignidade” (2010, p. 100-101).

Como ficara evidenciado, a dignidade da pessoa humana é responsável por uma concordância prática do sistema normativo, tornando-se requisito indispensável para a existência legítima deste, o que traduz a ideia de que não há uma Constituição sem que haja a dignidade da pessoa humana presente. Insurge ainda que tal princípio seja de máxima relevância para aferição da legitimidade substancial do poder estatal, o que evidencia sua função política. Unindo-se a isto o direito inalienável da existência digna da pessoa humana, isto é, o direito de desenvolver-se livremente e de forma igual (substancialmente) aos seus semelhantes, que é inerente a todos os homens, culmina-se no dever do Estado – enquanto ente representativo da coletividade humana, que deve proteger, preservar e trabalhar em prol dos desenvolvimento digno de seus cidadãos – de promover positiva e negativamente a dignidade da pessoa humana, o que significa dizer que é dever do Estado preservar e proteger a dignidade de cada membro da coletividade, bem como cunhar condições profícuas ao pleno desenvolvimento e exercício da dignidade aos seus cidadãos.

Nesse sentido, ensina Antonio-Enrique Perez Luño que “a dignidade da pessoa humana constitui não apenas a garantia negativa de que a pessoa não será objeto de ofensas ou humilhações, mas implica também, num sentido positivo, o pleno desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo” (1995, p. 318). Ante o exposto, é possível afirmar, também com base em Ingo Wolfgang Sarlet (2008), que toda a estrutura e atividade do Estado estão vinculadas e submetidas ao princípio da dignidade da pessoa humana, infligindo-lhe um dever inarredável de dever e proteção, devendo, portanto, não intervir no âmbito individual da pessoa, bem como obrigando-o a proteger a dignidade de cada indivíduo contra ofensas de terceiros, independentemente da situação. Destarte, percebe-se que o princípio da dignidade da pessoa humana impõe tanto um dever de abstenção estatal, em respeito à esfera particular do indivíduo, como um dever de agir positivamente, buscando efetivar e proteger a dignidade do homem. A referida efetivação traduz-se na concretização, por parte do Estado, do programa normativo da dignidade da pessoa humana direcionado, sobretudo, ao legislador, que tem o dever de estatuir uma ordem jurídica correspondente às exigências reais do princípio, conforme consagradas na própria Constituição, principalmente, através dos direitos fundamentais, como se demonstrará no Capítulo seguinte.

Assim sendo, a acepção positiva do dever do Estado é entendida como dever prestacional, destacando o seu compromisso para com os direitos humanos e os valores sociais. De outro norte, aponta-se seu dever negativo, também chamado de ação defensiva, na qual a dissuasão é elemento preponderante. A proteção da dignidade da pessoa humana é fruto, pois, de um contrabalanceamento das ações estatais (comissiva e omissiva), o que reflete no respeito a um princípio também constitucional fundamental, qual seja, o da igualdade. Sic et simpliciter seu objetivo é tratar isonomicamente as pessoas, o que se traduz no respeito à igualdade no sentido aristotélico, como muito bem explanado por Celso Antônio Bandeira de Mello (1993), ao demonstrar que a igualdade não deve ser meramente formal, mas também deve contemplar um âmbito material, identificado na máxima tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de sua desigualdade. Enunciado este que não constitui letra morta, apesar de ter sido formulado há mais de dois mil anos, prova disto está não só no trabalho do professor Celso Antônio, supramencionado, mas também na celebrada obra de Hannah Arendt, A Condição Humana, que tem sido objeto de constantes citações e, inclusive, monografias e teses acadêmicas no âmbito da Filosofia, da Economia, da Política e do Direito. Tudo isto posto, conclui-se, a priori, ser dever do Estado promover a igualdade entre seus cidadãos, isto é, tratar de maneira igual os iguais e de maneira desigual os desiguais, estabelecendo um estado de isonomia que busque atingir a paz social e garantir a dignidade de cada cidadão (possibilitando que cada um exerça seu desenvolvimento intelectivo pessoal, bem como os demais elementos inerentes à sua dignidade e protegendo tal desenvolvimento de agressões alheias).

Demonstrada a variabilidade de funções da dignidade da pessoa humana, bem como sua classificação axiológico-normativa, cabe ressaltar, como ensinam Fábio Konder Comparato (2010) e Ingo Wolfgang Sarlet (2008), dentre outros, que a dignidade da pessoa humana é conceito aberto, sendo impossível e inviável a tentativa de criar-lhe uma conceituação cerrada e totalmente rígida. Tal inviabilidade reside justamente na alta carga valorativa da dignidade da pessoa humana, que perpassa o âmbito, já bastante denso, dos direitos individuais do homem, refletindo também nos direitos sócio-culturais da pessoa, arraigados a seu patrimônio histórico e à sua condição mínima de vida.

É justamente a partir das premissas relacionadas ao princípio da dignidade da pessoa humana como matriz de uma ordem normativa que se conclui que tal princípio é a ambiência natural dos direitos fundamentais, como será melhor evidenciado no Capítulo que se segue.

 

2. A dignidade da pessoa humana como princípio fundamental estruturante do sistema de direitos fundamentais na Constituição Brasileira de 1988.

No Capítulo anterior, quedou-se demonstrado que a dignidade da pessoa humana é elemento nuclear da ordem normativa do Estado brasileiro. Suas acepções axiológica, jurídico-normativa, política e cultural, altamente concentradas de valores sociais, impossibilitam uma delimitação demasiado precisa do conceito e do conteúdo de tal princípio, vez que o próprio ato de uma delimitação cerrada bloquearia as necessárias evoluções acerca de seu significado, sendo, portanto, inadequada.

Contudo, retomando as linhas mais basilares da conceituação da dignidade da pessoa humana e apoiando-se na obra de Luís Roberto Barroso, tem-se que o referido princípio “representa a superação da intolerância, da discriminação, da exclusão social, da violência, da incapacidade de aceitar o outro, o diferente, na plenitude de sua liberdade de ser, pensar e criar” (2009, p. 336). O professor Barroso recorda, ainda, que o princípio da dignidade da pessoa humana “expressa um conjunto de valores civilizatórios incorporado ao patrimônio da humanidade” e sua aplicação, nos Estados contemporâneos, está relacionada à positivação dos direitos fundamentais nas Constituições Modernas, englobando os direitos individuais, políticos, sociais e culturais (2009, p. 337).

Concretizada a ideia de que a dignidade da pessoa humana é baliza para construção dos direitos fundamentais, ela passa a ocupar lugar de destaque no estudo da sistemática desses direitos, constituindo, portanto, objeto do presente estudo. Posto isto, é possível afirmar que o conteúdo da dignidade da pessoa humana é basicamente constituído pelos direitos fundamentais positivados nas Constituições de cada Estado, interessando aqui, especificamente, os da Constituição Brasileira de 1988.

Nesse contexto, merece destaque a doutrina portuguesa do professor Vieira de Andrade, da Universidade de Coimbra, citado por Ingo Wolfgang Sarlet (2010), que muito influenciou e ainda influencia a doutrina brasileira. Para ele existe uma íntima relação entre os direitos fundamentais e o princípio da dignidade da pessoa humana, pois aqueles possuem seu conteúdo comum pautados neste, que, por sua vez, é concretizado pelo reconhecimento e positivação daqueles. Posicionamento adotado por diversos doutrinadores brasileiros, como Luis Roberto Barroso, segundo quem, “a dignidade da pessoa humana está no núcleo essencial dos direitos fundamentais, e dela se extrai a tutela do mínimo existencial e da personalidade humana, tanto na sua dimensão física como moral” (2011, p. 276).

Neste ponto, vale enfatizar que o mínimo existencial, desdobramento e exigência direta da dignidade da pessoa humana – enquanto fundamento do Estado brasileiro e princípio estruturante da sistemática de direitos fundamentais da Constituição de 1988 – compõe o conteúdo mais essencial da dogmática dos direitos fundamentais, sobretudo, dos direitos fundamentais sociais, conforme ensinam Ricardo Lobo Torres (2010) e Paulo Gilberto Cogo Leivas (2010), dentre outros.

Do ponto de vista axiológico-valorativo, é evidente a relação entre os direitos fundamentais e o princípio da dignidade da pessoa humana, bastando para tal identificação simples leitura do rol de dispositivos do art. 5º da Constituição Federal de 1988. Contudo, ao se passar a uma análise jurídico-normativa, sobretudo do ponto de vista constitucional, faz-se necessária uma interpretação do §2º do art. 5º do Diploma Supremo, através da qual se chega ao raciocínio de que os direitos fundamentais (tanto os constantes do catálogo do referido artigo como os demais) guardam relação direta com os princípios fundamentais constitucionais (art. 1º da Constituição Federal de 1988), ainda que difiram em conteúdo e intensidade, conforme leciona Ingo Wolfgang Sarlet (2010), José Afonso da Silva (2010) e Paulo Bonavides (2003), dentre outros.

Deste modo, sendo a dignidade da pessoa humana o princípio fundamental mais umbilicalmente ligado à pessoa, é de se imaginar que os direitos fundamentais do homem possuam relação originária com ela. Todavia, como visto, eles possuem também matriz em outros princípios fundamentais. Resta saber, pois, se aqueles direitos fundamentais que se originam preponderantemente de outros princípios fundamentais que não a dignidade da pessoa humana, guardam com esta alguma relação matricial. Isto é, falta identificar se a tese que defende que todos os direitos fundamentais possuem origem no princípio da dignidade da pessoa humana, tratando-se assim, tal princípio, de elemento comum e unificador da sistemática desses direitos, está correta ou não.

Poder-se-ia ventilar que tal tese está incorreta, vez que o princípio da dignidade da pessoa humana pode, sobre determinada perspectiva, ser considerado um autêntico direito fundamental autônomo. Mais ainda, fazendo-se uma análise rápida sobre o rol de direitos fundamentais estabelecidos na Constituição, notam-se algumas hipóteses, que despertam, no mínimo, certa dúvida sobre sua relação “umbilical” com o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, como por exemplo, os identificados no art. 5º, incs. XVIII, XXI, XXV, XXVIII, XXIX, XXXI, XXXVIII e também no art. 7º, incs. XI, XXVI, XXIX, dentre outros, conforme criticamente demonstra Ingo Wolfgang Sarlet (2010). Em contrapartida, com base nos ensinamentos do próprio professor Ingo, entende-se que a dignidade da pessoa humana constitui princípio fundamental do Estado brasileiro e não direito fundamental, ao contrário do que ocorre em algumas Constituições. Isso se dá, em função de uma opção do Constituinte, que a positivou no rol dos princípios fundamentais do Estado brasileiro e não do rol dos direitos fundamentais. Além disso, para ele é possível sustentar que todos os direitos fundamentais do homem, em maior ou menor grau, correspondem a explicitações do princípio da dignidade da pessoa humana. No mesmo sentido, sustenta Daniel Sarmento que “o princípio da dignidade da pessoa humana nutre e perpassa todos os direitos fundamentais que, em maior ou menor medida, podem ser considerados como concretizações ou exteriorizações suas” (2010, p. 89).

Identificado que o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana irradia-se pelos direitos fundamentais, obviamente, em maior ou menor grau de acordo com o direito em espécie, reconhece-se tal princípio como elemento unificador, central e matricial que origina um verdadeiro sistema.

Neste ponto, para uma melhor compreensão de sistema nas ciências jurídicas, faz-se oportuno lembrar algumas lições elementares do professor alemão Claus-Wilhelm Canaris, que podem ser sintetizadas, em seus próprios dizeres, conforme se segue:

As características do conceito geral do sistema são a ordem e a unidade. Eles encontram a sua correspondência jurídica nas ideias da adequação valorativa e da unidade interior do Direito; estas não são apenas pressuposições de uma jurisprudência que se entenda a si própria que se entenda como Ciência e premissas evidentes dos métodos tradicionais de interpretação, mas também, e sobretudo, conseqüências do princípio da igualdade e da <<tendência generalizadora>> da justiça, portanto, mediatamente, da própria <<ideia de Direito>> […] o conceito de sistema jurídico deve-se desenvolver a partir da função do pensamento sistemático. Por isso, todos os conceitos de sistema que não sejam capazes de exprimir a adequação valorativa e a unidade interior da ordem jurídica são inutilizáveis ou, pelo menos, de utilização limitada; […] uma vez determinado o conceito de sistema como referência às ideias de adequação valorativa e unidade interior do Direito, deve-se definir o sistema jurídico como <<ordem axiológica ou teleológica de princípios jurídicos gerais>>. Também é imaginável uma correspondente ordem de valores de conceitos teleológicos ou de institutos jurídicos. […] este sistema não é fechado, mas antes aberto. Isto vale tanto para o sistema de proposições doutrinárias <<sistema científico>>, como para o próprio sistema da ordem jurídica, o <<sistema objectivo>>. A propósito do primeiro, a abertura significa a incompleitude do conhecimento científico, e a propósito do último, a mutabilidade dos valores jurídicos fundamentais (CANARIS, 2008, p. 279-281).

Postas essas premissas gerais, passa-se a uma análise voltada, especificadamente, ao sistema de direito fundamentais, estabelecido pela Constituição Brasileira de 1988, tendo como fundamento substancial conformador da ordem (ordenador) e unificador dos próprios direitos, a dignidade da pessoa humana.

Adotando-se como base a sistematização dos direitos fundamentais elaborada por Ingo Wolfgang Sarlet (2010), tem-se que a dignidade da pessoa humana constitui-se em um princípio fundamental estruturante, que tem por característica conferir unidade axiológica ao sistema de direitos fundamentais, o que, por óbvio, não exclui sua faceta normativa. Mais ainda, a dignidade da pessoa humana, enquanto princípio fundamental balizador do sistema de direitos fundamentais, possui ainda função instrumental integradora e hermenêutica, vez que se constitui em verdadeiro parâmetro para aplicação, integração e interpretação dos direitos fundamentais3 imprimindo coerência interna ao sistema. Nas palavras exatas do professor Ingo, o princípio da dignidade da pessoa humana é considerado “fundamento de todo o sistema de direitos fundamentais, no sentido de que estes constituem exigências, concretizações e desdobramentos da dignidade da pessoa humana e que com base nesta devem ser interpretados” (2010, p. 109). É neste sentido que ele denomina o princípio da dignidade da pessoa humana de lex generalis, pois constitui fundamento de todos os direitos fundamentais do homem previstos na Constituição de 1988, em maior ou menor grau, bem como, de modo inverso, os direitos fundamentais traduzem garantias específicas da dignidade da pessoa humana, da qual, podem ser considerados verdadeiro desdobramento. Nesse liame, Ingo ainda demonstra que, hodiernamente, tem sido objeto constante de sustentação na doutrina pátria e estrangeira que o princípio da dignidade da pessoa humana “exerce o papel de fonte jurídico-positiva dos direitos fundamentais, dando-lhes unidade e coerência” (2010, p. 109). Na mesma esteira, Tatjana Geddert-Steinacher (1990), lembrada por Ingo, sustenta que a relação entre direitos fundamentais e princípio da dignidade da pessoa humana assume faceta sui generis, pois a dignidade é função de elemento e medida dos direitos fundamentais simultaneamente, de modo que, em regra, ofensas a esses direitos constituem-se, ao mesmo tempo, em ofensa à dignidade da pessoa humana.

Em trabalho mais recente, Ingo Wolfgang Sarlet (2011), ao analisar a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal brasileiro em ralação à aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana como norma de cunho interpretativo, integrador e aplicativo, demonstra que o referido princípio fundamental do Estado Democrático brasileiro constitui-se no principal responsável pela abertura material do sistema de direitos e garantias fundamentais do homem assegurados pela Constituição de 1988. O professor Ingo afirma, ainda, que na Jurisprudência do Tribunal Constitucional pátrio têm-se consagrado na interpretação dos direitos fundamentais, que a dignidade da pessoa humana tem preferência sobre os demais princípios, sobretudo, nos casos de dúvidas, devendo, assim, o intérprete “optar pela alternativa mais compatível com as exigências da dignidade da pessoa humana” (2011, p. 72-73). Tudo isso corrobora para a concretização da tese de que o princípio da dignidade da pessoa humana é a base comum unificadora de todo o sistema de direitos fundamentais pátrio, pois, como leciona Daniel Sarmento, “representa o epicentro axiológico da ordem constitucional, irradiando seus efeitos sobre todo o ordenamento jurídico” (2000, p. 59).

Para uma clarificação da sistemática dos direitos fundamentais tendo como base a dignidade da pessoa humana, insurge discorrer sobre o conteúdo do referido princípio. Nesse ponto, destaca Ingo Wolfgang Sarlet (2010) não ser possível, a não ser em análise de casos concretos, reduzir o conteúdo do princípio em tela a uma fórmula abstrata e geral, em face de sua alta carga semântica, axiológica e, inclusive, normativa. Contudo, com base nos trabalhos doutrinários e jurisprudenciais, é possível identificar as principais, ou ao menos mais utilizáveis, hodiernamente, posições que compõem o âmbito de proteção da dignidade da pessoa humana, isto é, o seu conteúdo.

Ao realizar a referida análise, o professor Ingo Wolfgang Sarlet (2010) aponta diversos direitos fundamentais4 constantes nos artigos 5º, 6º e 7º da Constituição de 1988, bem como em outros dispositivos constitucionais esparsos, e, ainda, seus desdobramentos diretos na legislação infraconstitucional e na formação da doutrina e jurisprudência pátria, destaque para os direitos da personalidade trazidos pelo atual Código Civil brasileiro. Vale destacar também, enquanto conteúdo essencial da dignidade da pessoa humana, o mínimo existencial, conceito demasiado importante para uma análise material da sistemática de direitos fundamentais brasileira, como demonstra Ricardo Lobo Torres (2010) e Luís Roberto Barroso (2011).

Em síntese conclusiva a respeito do conteúdo da dignidade da pessoa humana, enquanto princípio basilar do sistema de direitos fundamentais da Constituição brasileira, leciona Ingo:

O que se percebe, em última análise, é que onde não houver respeito pela vida e pela integridade física do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde a intimidade e identidade do indivíduo forem objeto de ingerências indevidas, onde sua igualdade relativamente aos demais não for garantida, bem como onde não houver limitação do poder, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana, e esta não passará de mero objeto de arbítrio e injustiças. A concepção do homem-objeto, como visto, constitui justamente a antítese da noção de dignidade da pessoa humana (SARLET, 2010, p. 104).

Com toda certeza, por se tratar, como demonstra Ingo Wolfgang Sarlet (2010), de um valor-guia dos direitos fundamentais, bem como por ser caracterizada como o princípio constitucional de maior hierarquia axiológica e valorativa, a dignidade da pessoa humana se apresenta como norma jurídico-fundamental estruturante do Estado e do sistema de direitos fundamentais de impossível precisão, ou melhor, de inviável caracterização cerrada, sendo inadequada sua conceituação fechada, sob pena de se “mutilar” facetas importantes deste princípio essencial a um Estado que se diga democrático, social e, sobretudo, que valorize o ser humano.

Contudo, como conteúdo básico da dignidade da pessoa humana, nada mais evidente e inquestionável que os direitos e garantias fundamentais da Constituição, até mesmo porque, como já demonstrado, o referido princípio constitui elemento basilar de todos os direitos e garantias fundamentais positivados na Constituição (em maior ou menor grau), de forma expressa ou implícita, bem como aqueles que se pode abstrair da sistemática constitucional de direitos fundamentais, o que, por óbvio, não exclui outros desdobramentos.

Ante o exposto, resta clara e evidente a ligação umbilical existente entre o sistema de direitos fundamentais na Constituição brasileira de 1988 e o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana como elemento estruturante de tal sistema, constituindo verdadeiro “útero” gerador desses direitos, que por sua vez, são materializações de tal princípio.

 

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1 Fruto do Neoconstitucionalismo, esse movimento inspira-se, sobretudo, na Supremacia da Constituição e na consequente necessidade de amoldamento do restante do ordenamento jurídico à ordem jurídica estabelecida por ela (SARMENTO, 2009), superando assim a pretérita visão de que a Constituição seria um mero documento político procedimental que estabeleceria apenas metas para o Estado de Direito, como acreditava, por exemplo, Carl Schmitt (2007) e Ferdinand Lassalle (2001).

2 Expressão utilizada pelo professor Ingo Wolfgang Sarlet (2010). VER FORMATAÇÃO

3 Tais funções estendem-se a toda ordem constitucional, bem como ao ordenamento jurídico de um modo geral, não se restringindo apenas aos direitos fundamentais.

4 Dentre esses direitos: Direito a vida, a integridade física e moral, a liberdade, a igualdade, a propriedade privada, a intimidade, ao pensamento livre, ao culto, a honra, a um sistema efetivo de seguridade social, a cultura etc. Assim como a vedação ao tratamento discriminatório, arbitrário, a invasão da esfera privada da pessoa, a escravidão, a discriminação racial ou de qualquer outra natureza, a perseguições por motivos políticos, religiosos etc. E ainda, direito as garantias processuais constitucionais asseguradoras dos direitos fundamentais, tais como o habeas corpus, habeas data, mandado de segurança, acesso à justiça, devido processo legal, contraditório, ampla defesa, fundamentação das decisões estatais administrativas e judiciais etc.

Eduardo Rodrigues dos Santos

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