O hipossuficiente e os obstáculos ao acesso à justiça no brasil

Flavio Bento 21/04/11
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SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. Identificação do Hipossuficiente. Obstáculo Econômico. Obstáculo Sociocultural. Obstáculo Psicológico. CONSIDERAÇÕES FINAIS.

 

RESUMO: O presente estudo apresenta algumas observações sobre os principais obstáculos que ainda interferem no acesso das pessoas hipossuficientes ao Poder Judiciário no Brasil. Apesar de se tratar de tema antigo, e que ganhou destaque mundial na célebre obra “Acesso à Justiça” de Mauro Cappelletti e Bryant Garth, o assunto continua a apresentar questões sociais e jurídicas que demandam reflexão, visando uma maior efetividade do direito de acesso à Justiça, em especial pela população mais carente.

 

PALAVRAS-CHAVES: Acesso à Justiça. Assistência judiciária. Direitos sociais.

 

INTRODUÇÃO

Este trabalho analisa o problema do acesso à justiça e o cidadão hipossuficiente no Brasil.

Partimos da ideia de que o acesso à justiça é garantia constitucional, devendo o Estado proporcioná-lo de forma eficaz a todos.

Para tanto se faz necessário que o Estado busque meios de objetivar os direitos fundamentais, e é imprescindível que se garanta, a todos, o acesso aos direitos e a possibilidade de defesa desses direitos.

Diante da necessidade que o Estado possui de proporcionar o acesso à justiça, surgem algumas diversidades que ecoam como obstáculos para a efetivação dessa garantia, devendo o Estado tratá-las adequadamente, observando suas peculiaridades.

Para assegurar às pessoas mais carentes os seus direitos, é preciso compreender quem são esses cidadãos, e em quais situações eles se encontram, bem como quais as necessidades que enfrentam. Faz-se necessário identificar o hipossuficiente. E a partir da identificação e da análise do hipossuficiente, é preciso compreender quais os anseios que essas pessoas possuem, com relação ao Poder Judiciário.

Detectados os problemas que contribuem para a situação de hipossuficiência, é preciso buscar saídas para saná-los, uma vez que o Estado deve garantir, por todos os meios, a eficácia dos direitos fundamentais, entre eles o do acesso à justiça.

Logo, devem ser traçados os caminhos para a efetivação do acesso à justiça, de modo a atingir a sociedade mais carente, identificando quem são essas pessoas, quais problemas a serem enfrentados e que soluções podem ser tomadas.

 

Identificação do Hipossuficiente

Em razão dos propósitos deste estudo, é necessário distinguir quem são os necessitados e quais os meios de prover uma equiparação que lhes permita o acesso à justiça nas mesmas condições dos que possuem mais recursos econômicos.

Preliminarmente faz-se necessário aplicar os preceitos descritos na Constituição Federal brasileira, observando que o hipossuficiente está amparado nos termos do inciso LXXIV, do artigo 5º, que assim estabelece:

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

LXXIV – O Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos. (BRASIL, 2011a).

Além da Constituição Federal, a Lei n. 1060, de 5 de fevereiro de 1950, versa de forma mais específica sobre o conceito de hipossuficiente e do seu direito à assistência judiciária gratuita:

Gozarão dos benefícios desta Lei os nacionais ou estrangeiros residentes no país, que necessitarem recorrer à Justiça penal, civil, militar ou do trabalho.

Parágrafo único. – Considera-se necessitado, para os fins legais, todo aquele cuja situação econômica não lhe permita pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo do sustento próprio ou da família. (BRASIL, 2011b)

Posteriormente a Constituição de 1967, com a Emenda Constitucional número 01, o artigo 153 dispôs no parágrafo 32 que “será concedida assistência judiciária aos necessitados, na forma da lei” (BRASIL, 2011c).

Juridicamente se define hipossuficiente como “pessoa de escassos recursos econômicos, de pobreza constatada, que deve ser auxiliada pelo Estado, incluindo-a assistência jurídica” (LUZ, 1999). É a pessoa economicamente muito humilde, que não é auto-suficiente financeiramente para demandar perante o Poder Judiciário.

Constata-se que as normas de nosso ordenamento jurídico prevêem que é dever do Estado proporcionar efetiva assistência aos hipossuficientes, identificando-os a partir de preceitos específicas, para ampará-los no caso de necessidade de acesso ao Poder Judiciário.

Silvana Cristina Bonifácio Souza expõe que:

a hipossuficiência não é medida, nem tem rigores preciosos e matemáticos. Ao contrário, é caracterizada através da análise conjunta de diversos fatores, tais como rendimento familiar, encargos de aluguel, doença em família etc., ou seja, deduzidos os encargos básicos, para que um ser humano e sua família vivam dignamente (SOUZA, 2003, p. 73).

Nesse sentido, destaque-se a ideia de que o hipossuficiente somente será identificado caso a caso. Há uma constante necessidade de se identificar quem é o hipossuficiente, a fim de garantir, no caso específico, a tão buscada equidade.

A hipossuficiência deve ser analisada sob dois importantes aspectos: o econômico e o de informação ou técnica.

Assim, por exemplo, no devido processo legal, ao identificarmos quem é o hipossuficiente, o Estado garante que este obtenha a “paridade de armas” processual, nivelando-o à outra parte, para que a sua insuficiência de recursos não impeça a defesa ou a aquisição de seus direitos. É o que acontece na Justiça do Trabalho.

Apenas a título exemplificativo, o Poder Judiciário trabalhista já decidiu que a ação rescisória pode ser proposta com o benefício da justiça gratuita, porque “a própria Carta Política prevê a assistência judiciária dos hipossuficientes, de modo a lhes garantir o acesso ao Judiciário” (MINAS GERAIS, 2011).

No mesmo sentido, e de forma mais ampla, o hipossuficiente será identificado em todos os demais modos de acesso à justiça, como no caso de concessão de direitos decorrentes da cidadania, como, por exemplo, o direito aos registros de nascimento e casamento; a expedição de registro geral de pessoas; entre outros. Essas situações de concessão de direitos possibilitam que todos exerçam o direito à cidadania, conforme está previsto nos preceitos normativos de caráter essenciais de nosso Estado de Direito, sem permitir que a insuficiência econômica, cultural, ou qualquer que seja, interfira na aplicação desses preceitos.

Em síntese, dentre os meios de acesso a justiça oferecidos pelo Estado, seja no tocante à prestação da tutela jurisdicional por meio do devido processo legal, seja no tocante ao acesso a justiça de forma mais ampla, ou seja, no sentido da cidadania, sempre há de se buscar identificar o hipossuficiente, a fim de lhe assegurar a efetividade de seus direitos.

E por fim, ao se identificar o hipossuficiente, é preciso uma ampla compreensão de que problemas estes enfrentam, para somente então, tentar superá-los.

 

Obstáculo Econômico

No Brasil, a desigualdade social aparece de modo bem evidente como um dos problemas cruciais que ensejam ou influenciam outros problemas político-sociais. Alexandre Cesar observa que:

Sendo o Brasil um dos primeiros países no ranking mundial de pior distribuição de renda (assustadores índices atestam que os 10% mais ricos “abocanham” quase 50% da renda nacional), não existe nenhuma dificuldade em visualizar o quão limitador ao efetivo acesso à justiça é a desigualdade econômica (2002, p. 92).

Como consequência da desigualdade social, entre tantas, está a não concessão do direito ao exercício da cidadania, sendo que se tem visto que para aquelas pessoas que possuem mais condições econômicas, a justiça tem operado com maior eficácia. Por outro lado, A Justiça está distante daqueles que não possuem condições financeiras de custeá-la; ou ainda pior, de nem ao menos ter conhecimento de tal injustiça.

O obstáculo econômico restringe o exercício da cidadania quando não propicia saídas aos menos favorecidos.

É por uma análise do obstáculo econômico que se pode entender o distanciamento de classes sociais mais baixas da Justiça, englobando nesse sentido o Poder Judiciário, bem como os demais órgãos da administração pública, os quais se encontram obrigados a promover a cidadania e a organização da sociedade, buscando sempre a igualdade, preceito descrito no artigo 5º da Constituição Federal.

Dentro de um processo judicial, por exemplo, há um desequilíbrio entre os litigantes, pois aqueles que possuem mais condições financeiras terão como suportar uma demanda, e os menos favorecidos muitas vezes não buscarão pelo Judiciário por terem ciência de que não possuem condições de arcar com os encargos de uma demanda.

Conforme observa Silvana Cristina Bonifácio Souza:

Como é óbvio, aquela parte que possui abastados recursos financeiros, tem em seu favor, a facilidade de propor demandas, arcar com provas mais caras e eficientes e com uma defesa também mais eficaz, o que acaba influenciando enormemente no sucesso da demanda. (2003, p. 49)

Destacamos ainda que:

O que se conclui daí é que embora todos os cidadãos estejam obrigados a votar, nem todos podem estar em juízo, de fato. Em outras palavras, pode-se afirmar que a atual organização da justiça discrimina, porque impede o exercício dos direitos de cidadania. Há uma não-democracia no que se diz respeito ao acesso aos tribunais. Seria bom deixar claro, desde já, que esta falta de acesso por razões de desaparelhamento e alto custo é apenas uma das formas de discriminação à qual estão sujeitos os cidadãos. Há outras mais sutis e talvez até mais importantes. De qualquer maneira, os números levantados por Piquet Carneiro dão bem a idéia da distância que separa o Judiciário das classes populares no Brasil. Assim é que a própria função mediadora dos juízes, reconhecida por Henkenhoff e Falcão, precisa ser recolocada, uma vez que, em média, nestes dois Estados da União, Rio e São Paulo, 70% da população não tem qualquer acesso à justiça civil (certamente tem um acesso muito maior à justiça criminal, na qualidade de réus) (FARIA; LOPES, 1994, p. 134).

Quando se estende essa mesma linha de pensamento ao acesso a Justiça de forma mais ampla, não se prendendo apenas ao “acesso aos tribunais”, fica clara a crítica, ou seja, há o afastamento da sociedade mais carente dos demais órgãos que cuidam dos direitos dos cidadãos, porque os mais pobres não possuem condições de pagar as despesas, como por exemplo, para solicitar o registro de um imóvel, ou mesmo pagar um advogado que o instrua na forma de proceder.

Assim, o Estado afasta os cidadãos que possuem menores condições financeiras de ter acesso aos seus direitos, no tocante ao processo judicial, bem como no direito analisado de forma ampla, ou seja, no que diz respeito aos direitos da pessoa humana.

José Renato Nalini observa que:

A barreira da pobreza impede a submissão de todos os conflitos à apreciação de um juiz imparcial. Mas é verdadeiramente trágica se considerada a dimensão do acesso do pobre aos direitos. Os despossuídos são privados até dos direitos fundamentais de primeira geração, para eles meras declarações retóricas, sem repercussão em sua vida prática (1997).

Quando o Estado não assegura que os hipossuficientes tenham acesso à justiça e aos seus direitos, está afrontando normas constitucionais por ele mesmo previstas, bem como não garante a efetividade dos direitos fundamentais da pessoa humana.

Como grande parte da população concentra-se em classes sociais baixas, percebe-se que grande parte dos cidadãos não busca seus direitos, por falta de recursos financeiros, e assim o Estado não vem concretizando direitos previstos na Constituição da Republica.

Diante da análise do obstáculo econômico, observa-se a necessidade de buscar soluções para se promover a igualdade, que é um dos princípios basilares do ordenamento jurídico brasileiro.

 

Obstáculo Sociocultural

A pobreza constitui uma causa de exclusão social, o que influi no plano cultural e implica em um sério obstáculo para o acesso à justiça. Temos ainda os obstáculos regionais, e o abandono da presença eficaz do Estado em determinadas regiões mais afastadas.

Em geral, o obstáculo sociocultural influirá em outras causas de exclusão do acesso à justiça, pois nas regiões mais abandonadas pelo Poder Público é exatamente onde se encontram os maiores índices de pobreza e de desconhecimento. Donaldo Armelin já observou que:

outras barreiras existem quanto ao acesso à justiça. Não apenas econômicas e sociais, mas também culturais. É verdadeiro truísmo afirmar que este país apresenta diferentes estágios de desenvolvimento, conforme as suas variadas regiões. O subdesenvolvimento com as suas seqüelas, como o analfabetismo e ignorância e outras, campeia com maior ou menor intensidade nos variados quadrantes do Brasil. Isso implica reconhecer que em certas regiões o acesso à justiça não chega sequer a ser reclamado por desconhecimento de direitos individuais e coletivos (1989, p. 181).

O obstáculo sociocultural deve ser analisado em evidência, porque é o fator, de maior ênfase, que distancia os mais carentes da Justiça.

Torna-se importante salientar que o Poder Judiciário ainda mantém, em diversas situações, um formalismo totalmente incompatível com os anseios e compreensão da sociedade em geral. A grande incidência de analfabetos ainda é notória no Brasil, e isso dificulta o acesso dessas pessoas à justiça.

As técnicas e termos utilizados pelo Judiciário têm sido os mesmos desde os primórdios. O Direito pouco evoluiu no sentido de ser mais acessível à população leiga, inclusive quanto à linguagem.

As pessoas que possuem um grau mais avançado de estudo ou de colocação social, tanto no sentido econômico como cultural, tendem a compreender seus direitos e as técnicas formais utilizadas pelo Estado para defendê-los.

Não é o caso dos hipossuficientes, que são pessoas muitas vezes isoladas, e analfabetas. E quanto mais baixo é o estrato socioeconômico do cidadão, maior é a distância geográfica entre o lugar onde ele vive ou trabalha e a zona da cidade onde se encontram os escritórios de advocacia e os Tribunais (FARIA, 1994, p. 49).

Outro método utilizado pelo Judiciário, não condizente com os aspectos culturais da sociedade, é o formalismo e linguagem rebuscada. Nosso interesse pela pesquisa de alguns aspectos entre o Direito e a Linguagem foi objeto de estudos anteriores (BENTO, Naspolini Sanches, 2009). Já destacamos que a expressão “juridiquês”, muito utilizada nos meios de comunicação, representa “o uso desnecessário e excessivo do jargão jurídico e de termos técnicos de Direito”, e “denota floreio excessivo da língua e subterfúgio desnecessário a termos [jurídicos] pouco conhecidos do grande público” (WIKIPÉDIA, 2011). Muitos termos utilizados em nosso ordenamento jurídico soam como obstáculos para grande parte da população.

Desse modo, é possível perceber que cidadãos mais humildes, analfabetos e que vivem em realidades muito distantes, sem compreensão de seus direitos e das formas de exercício de sua cidadania, não conseguirão entender a linguagem rebuscada das Leis e as técnicas utilizadas pelo Poder Judiciário, e isso dificulta sobremaneira a inserção dessas pessoas no sistema de proteção jurisdicional.

José Eduardo Faria apontou que:

Estudos revelam que a distância dos cidadãos em relação à administração da Justiça é tanto maior quanto mais baixo é o estado social a que pertencem e que essa distância tem como causas próximas não apenas fatores econômicos, mas também fatores sociais e culturais, ainda que uns e outros possam estar mais ou menos remotamente relacionados com as desigualdades econômicas. Em primeiro lugar cidadãos de menores recursos, tendem a conhecer pior os seus direitos e, portanto, a ter mais dificuldades em reconhecer um problema que os afeta como sendo problema jurídico. Podem ignorar os direitos em jogo ou ignorar as possibilidades de reparação jurídica (1994, p. 48).

Observa-se que o fato dos hipossuficientes se encontrarem distantes do acesso à justiça causa-lhes prejuízos imensuráveis, além de configurar uma forma inaceitável de abandono estatal. Distantes do sistema de proteção jurisdicional, essas pessoas estão submetidas às injustiças cometidas pelo próprio Poder Público.

Isso se revela ainda mais forte nas comunidades onde há baixa escolaridade e distanciamento total de informações necessárias para a defesa dos direitos dos cidadãos. Nesse sentido:

Em geral, em países como o Brasil, com o nível de informalidade existente e a histórica ausência do Poder Público nas áreas de baixa renda, a capacidade de entendimento e solução pelas próprias pessoas torna-se imprescindível para garantir a resposta às demandas colocadas (BRASIL, 2006, p. 92).

Vemos que nessas comunidades os cidadãos estão amplamente desamparados pelo Poder Público, não tendo sequer os direitos dignos e essenciais ao ser humano, como, por exemplo, o direito ao saneamento básico.

Quanto maior a qualidade de vida da população, maior também será a possibilidade do cidadão buscar a defesa de seus interesses junto ao Poder Judiciário:

Sabe-se, contudo, que o país apresenta enormes variações regionais. Teriam estas variações reflexos na procura pelo Judiciário e no desempenho desse Poder? Uma das hipóteses que necessita ser testada diz respeito exatamente ao significado dessas variações no que se refere à demanda por soluções judiciais. Supõe-se que quanto mais desenvolvida for uma região maior será a proporção de cidadãos que procurará no Judiciário respostas para os conflitos em que esteja envolvido ou, ainda, que maior será a percepção de direitos e, conseqüentemente, a busca dos tribunais para garanti-los. Ou seja, a relação entre processos entrados por habitante será menor nos estados com qualidade de vida mais alta (SADEK; LIMA, 2001, p.16).

Nas populações mais pobres, o acesso à Justiça é menor. Isso só ocorre porque esse cidadão hipossuficiente, e de escassa cultura, não tem ciência de que pode “impor” o respeito aos seus direitos, buscando defendê-los na Justiça.

Pessoas que sofrem com o obstáculo econômico, por não possuírem instrução, não têm como buscar a defesa seus direitos, nem como garantir sua cidadania.

De tal modo, conforme demonstrado pela doutrina:

A “capacidade jurídica” pessoal se relaciona com as vantagens de recursos financeiros e diferenças de educação, meio e status social, é um conceito muito mais rico, e de crucial importância na determinação da acessibilidade da justiça. Ele enfoca as inúmeras barreiras que precisam ser pessoalmente superadas, antes que um direito possa ser efetivamente reivindicado através de nosso aparelho judiciário. (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 22)

Esse obstáculo socioeconômico decorre do abandono do Estado e do não investimento em soluções para sanar tal problema, resultando em uma situação de discriminação e exclusão social, porque a Justiça deve ser o único meio legal de amparo desses cidadãos.

O conjunto destes estudos revelaram que a discriminação social no acesso à justiça é um fenômeno muito mais complexo do que à primeira vista pode parecer, já que para além das condicionantes econômicas, sempre mais óbvias, envolve condicionantes sociais e culturais resultantes de processo de socialização e de interiorização de valores dominantes muito difíceis de transformar (FARIA, 1994, p. 49).

Partindo da premissa de que o Estado tem o objetivo de proporcionar a todos a prestação jurisdicional como assim se incumbiu, e o anseio de realizar o princípio da igualdade e os direitos fundamentais do ser humano, instituído em todos os Estados de Direito, deve, pois, abolir o distanciamento cultural de grande parte da população, passando a demonstrar algum interesse em dar efetividade ao acesso à Justiça de forma universal.

Para se obter a efetivação do acesso aos direitos e garantias a pessoa humana, é preciso que o cidadão conheça esses direitos. Assim, é necessário que o Estado possibilite meios para que todo indivíduo tenha como entender seus direitos, bem como as formas de defendê-los, ou de usufruí-los.

 

Obstáculo Psicológico

O aspecto psicológico é também relevante, pois expressa uma real dificuldade de grande parte da sociedade em face ao Poder do Estado.

A sociedade de forma geral não compreende a exata função do Estado, e esse fator se produz pela própria forma de desempenho do Estado diante das necessidades da sociedade.

Partindo da conjectura notória de que pessoas bem instruídas não acreditam na eficácia da Justiça no Brasil, podemos completar a ideia de que aos hipossuficientes o termo “Justiça” soa como um entendimento de sentido antagônico, e apenas causa “temor”, e não a segurança que deveria de fato acontecer, tendo em vista o real compromisso do Estado para com os cidadãos.

A maior parte das pessoas enfrenta um “trauma” quanto à Justiça, porque temem estar em juízo. E o que influencia esse pensamento é a postura do Poder Judiciário diante de uma prestação jurisdicional muitas vezes falha, devido a reflexos negativos de toda a estrutura, como, por exemplo, a morosidade, que torna a resposta à sociedade tardia, soando como iniquidade.

Assim esclarece Mauro Cappelletti acerca do distanciamento do povo dos órgãos estatais, demonstrando o distanciamento, em especial, em relação aos órgãos responsáveis pela promoção da justiça:

Procedimentos complicados, formalismo, ambientes que intimidam, como o dos tribunais, juízes e advogados, figuras tidas como opressoras, fazem com que o litigante se sinta perdido, um prisioneiro num mundo estranho. (CAPPELLETTI, GARTH, 1988, p.24)

Percebe-se que as pessoas sem recursos estão ainda mais distantes dos órgãos públicos, e sofrem bem mais com a barreira psicológica, pois muitas vezes vêem o Estado como um ente repressor.

Essa linha de pensamento que se produz constantemente em nossa sociedade advém da imagem que o próprio Estado produziu ao longo do tempo, por força de sua ineficácia. Exista a ideia de que o Estado apenas irá cobrar os deveres dos cidadãos, ignorando os direito da população. A dificuldade de acesso à justiça proporciona a ideia de que o Estado nada tem feito para que as pessoas possam proteger os seus direitos de forma concreta e com eficácia.

Os métodos repressivos do Estado criam imagens negativas que afastam a população do Poder Judiciário, em especial para aqueles que não compreenderem seus direitos, o que gera uma exclusão social evidente.

A barreira psicológica que se encontra na visão da sociedade e no distanciamento do acesso da população aos seus direitos está na forma como as pessoas, em especial as de baixa renda, vêem as autoridades. Há um notável temor e por vezes impossibilidade dos mais carentes de alcançar e até mesmo compreender o papel das autoridades públicas.

O pobre tem dificuldade em procurar um advogado, pois presume o advogado, e até mesmo o seu escritório, como relíquias distantes. As pessoas de renda mais baixa relutam em procurar até mesmo os PROCONS. Para não se falar que alguns não confiam na figura do advogado, desconfiança esta que é comum nas camadas de baixa renda. Anteriores experiências negativas com a justiça, onde ficaram evidenciadas discriminações, também influem negativamente. Não pode ser esquecido, ainda, que os mais humildes temem represálias quando pensam em recorrer à justiça. Temes sanções até mesmo da parte adversária. (MARINONI, 1993, p. 37)

É importante compreender que quanto mais distantes as autoridades estiverem do povo, esse fato certamente implicará no distanciamento da população de seus direitos.

O acesso às autoridades e a todos os serviços da administração pública em geral, proporciona a efetiva promoção dos direitos aos cidadãos.

As autoridades precisam ter um desempenho que ultrapasse os limites da análise apenas normativa, sendo necessário que estejam em contato com a realidade dos casos que lhes são apresentados, para buscarem a mais legítima justiça.

A todos os problemas que já foram anteriormente indicados soma-se o obstáculo psicológico da sociedade, evidenciando especialmente na população de baixa renda. Nesse sentido:

A hesitação em procurar por serviços de natureza jurídica tem algumas explicações. Em primeiro lugar, existe uma declarada desconfiança nos advogados pela sociedade em geral, e, especialmente, pelas classes menos favorecidas. É uma barreira social e psicológica, visto que em alguns casos há verdadeiro temor em relação aos advogados e aos tribunais. Existem outras motivações para os litígios serem considerados pouco atraentes para a população de baixa renda, como uma linguagem inacessível para a maior parte das pessoas, procedimentos complexos, excesso de formalismo, ambientes tido como repressores, como os tribunais e pessoas distantes do círculo de convívio das comunidades carentes, como advogados e juízes. Pode-se concluir, portanto, que as barreiras no acesso à justiça atingem de forma distintas as classes sociais e os estratos menos favorecidos, os mais pobres, são os que sofrem mais gravosamente as conseqüências desses obstáculos. (Hagino, 2008, p. 6655–6656)

Os hipossuficientes são os que mais sofrem com a indiferença do Estado diante de seus conflitos e necessidades, pois a prevalecer essa ideia negativa da atuação estatal, dificilmente o Estado efetivará sua grande missão de garantir a cidadania a todos.

A saída encontra-se em uma reforma imprescindível quanto à atuação do Estado, de modo a prover a efetividade dos direitos e garantias constitucionais, buscando atuar como Estado de Direito Democrático que é.

Assim, identificados os problemas faz-se necessário que o Estado visualize meios para suprir todas as necessidades, a fim de se construir um verdadeiro Estado de Direito.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Brasil apresenta diversas situações que ainda limitam significativamente o acesso à Justiça pelas pessoas mais carentes.

Além dos problemas sociais visíveis [pobreza; falta de instrução e de educação adequada; precariedade das estruturas do Poder Judiciário, especialmente no interior do país; falta de juízes e de serventuários etc.], temos também diversas questões jurídicas que necessitam ser revistas, o que exige ações conjuntas dos três Poderes [Executivo, Legislativo e Judiciário] e das entidades civis organizadas.

Uma das ações que necessita ser estimulada é a lembrança e a reflexão sobre os principais obstáculos que ainda interferem no acesso das pessoas hipossuficientes ao Poder Judiciário.

O diálogo e o estudo constantes dessa problemática é um dos caminhos para a busca da superação desse problema, e é o que visamos com o estudo ora apresentado.

As diversas mudanças que ocorreram nas últimas décadas [criação dos juizados especiais; ampliação do Poder Judiciário; alterações legislativas pontuais, visando a celeridade processual etc.] indicam um compromisso do país com a busca da superação desses obstáculos. Devemos reconhecer, entretanto, que muito há ainda a fazer para que o acesso à justiça, como garantia constitucional, seja proporcionado de forma eficaz a todos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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2011.

Flavio Bento

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