O fenômeno da constitucionalização do direito civil

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Juliana Florindo Carvalho1

Raphael Siqueira Neves2

Jorge Luiz Morales Albernaz3

 

 

Resumo

 

O Direito Civil, em especial o Direito das Obrigações, surgiu com o intuito primordial de regulamentar as relações privadas entre os indivíduos, disciplinando, precipuamente, o exercício da vontade particular no que se refere às questões patrimoniais. Nesta senda, no que tange às relações obrigacionais, a tradição sempre ditou que apenas o credor era titular de direitos, sendo o devedor, portanto, um subordinado, titular de todos os deveres oriundos desta relação, sob o qual recaia, unicamente, a função de contribuir para a satisfação da pretensão creditícia. A partir de uma nova concepção, que busca evoluir na análise das nuances desta relação jurídica, a relação obrigacional passa a ser encarada sob um aspecto dinâmico. Desta feita, o negócio jurídico passa a ser considerado enquanto processo, o que, neste sentido, justifica a exigência de que os agentes exerçam suas posições pautados numa série de condutas voltadas, muito mais que ao adimplemento da pretensão creditícia, à satisfação dos interesses harmonizados pelo instrumento contratual. Essa virada conceitual ocorre, essencialmente, a partir da implementação de uma ordem pública pautada pelo princípio da boa fé objetiva e da função social do contrato, superando a clássica visão liberal-individualista do ordenamento jurídico civil, a partir da instituição de uma ordem jurídica fundada na harmonização dos mais diversos interesses individuais e coletivos, principalmente o respeito e proteção à dignidade da pessoa humana, de um lado, e a garantia da livre iniciativa e do trabalho, de outro. A este fenômeno a boa doutrina dá a denominação de Constitucionalização do Direito Privado. Nesta perspectiva, os princípios constitucionais superam a senda pública e passam a nortear, também, as normas instituídas a fim de regular as relações até então encaradas como estritamente privadas, pois que, a partir deste novo paradigma, a boa execução e o respeito às obrigações voluntariamente contraídas ultrapassam o interesse dos contratantes para atingir, ainda que por via reflexa, o interesse coletivo. Este trabalho pretende, a partir desta constatação, debater a chamada teoria da onerosidade excessiva, construída com base nos fundamentos até aqui apresentados e a partir da constatação de que essa relação particular, pela ocorrência de eventos externos não considerados no momento da celebração, pode sofrer alterações tais em seu status que dificulte ou impossibilite seu adimplemento por qualquer das partes. No ordenamento jurídico pátrio, tal teorização recebeu guarida pelo disposto nos artigos 317 e 478 do Código Civil. Segundo interpretação literal dos dispositivos supracitados, a resolução ou revisão contratual é possível sempre que houver uma desproporção manifesta da prestação, advinda de eventos imprevisíveis e extraordinários que possam surgir no decorrer da execução do contrato. Porém, a partir de uma hermenêutica sistemática do mesmo texto legal, faz-se necessário uma releitura conceitual a fim de minorar um possível descompasso entre a necessidade de harmonização da relação contratual e o comando do próprio art. 317, CC, uma vez que o requisito da imprevisibilidade pode, na prática, demonstrar-se de difícil análise e comprovação, perpetrando verdadeiro obstáculo à proteção do equilíbrio contratual pretendido. Se advogarmos por sua supressão, bastando, para a convocação da teoria, apenas a demonstração de que na relação houve desequilíbrio nas obrigações recíprocas pela ocorrência de evento extraordinário, a aplicação da teoria demonstrar-se-á mais eficaz. Apoiaremos nossa argumentação na constatação de que preceitos gerais do próprio Código Civil, como os comando de ordem pública da função social do contrato (art. 421) e boa-fé objetiva (art. 422), permitem, por si só, a revisão e resolução de contratos que se demonstrem desajustados, sem, contudo, ser necessário verificar, absolutamente, a presença do requisito da imprevisibilidade. A partir do que foi apresentado, constatar-se-á que o principio da igualdade, juntamente com as cláusulas gerais do Código Civil, objetiva, fundamentalmente, promover o equilíbrio contratual, sendo suficiente para tanto. O presente trabalho, por meio de uma revisão literária, tem por objetivo promover uma abordagem axiológica sobre as relações obrigacionais, principalmente com relação à aplicação da teoria da imprevisão, perquirindo seu exato teor e os requisitos realmente essenciais à sua aplicação.

 

Palavras chaves: Teoria da Onerosidade Excessiva. Teoria da Imprevisão. Boa-fé Objetiva. Nova hermenêutica art. 317 e 478. Isonomia contratual. Imprevisibilidade. Requisitos da revisão contratual.

 

 

Abstract

 

The Civil Law, in special the Law of Obligations, emerged with the main purpose of regulate the private relations between individuals, especially disciplining the exercise of private will in patrimonial issues. In this matter, regarding the obligational relationships, tradition always dictated that the creditor was the only rightholder, the debtor being, therefore, a subordinated, bearer of all the duties originated by this same relationship, on whom lies, solely, the function of helping to meet the credit claim. From a new concept, which seeks to evolve in the analysis of the nuances of this legal relationship, the obligational relationship becomes to be seen from a dynamic aspect. This time, the legal transaction is regarded as a process, which, in this sense, justifies the requirement that agents exert their positions in a number of behaviors focused, much more than to meet the credit claim, on satisfing the interests harmonized by the contractual instrument. This conceptual turn is essentially based on the implementation of a public order guided by the principles of good faith and social function of contracts, overcoming the classic liberal-individualistic view of the civilian law, from the establishment of a legal system founded on the harmonization of the multiple individual and collective interests, especially the respect and protection of human dignity on the one hand, and the guarantee of free enterprise and work, of another. To this phenomenon the good doctrine gives the name of Constitucionalization of Private Law. By this perspective, the constitutional principles overcome the public field and begin to also orient the norms established to regulate the relationship until then viewed as strictly private, since, by this new paradigm, the good execution and the respect to the obligations voluntarily acquired surpass the contractors interest to reach, though by a reflex via, the collective interest. This paper intends, from this statement, to discuss the so-called theory of excess burden, built on the foundations presented so far and on the fact that this particular relationship, by the occurrence of external events not considered by the time of the contract conclusion, can suffer such alterations in its status that hinders or precludes its satisfaction by either of the parties. In the domestic legal system, such theorization received shelter by the provisions of articles 317 and 478 of the Brazilian Civil Code. According to the literal interpretation of the above devices, the contract resolution or review is possible whenever there is a manifest disproportion of the installment, originated from unforeseen and extraordinary events that may arise during its implementation. However, from a systematic hermeneutic of the same legal text, it is necessary a conceptual rereading in order to mitigate a possible mismatch between the need for harmonization of the contractual relationship and the command of the art. 317 of the Brazilian Civil Code, since the requirement of unpredictability may, in practice, demonstrate itself as difficult to prove and analyze, perpetrating real obstacle to the protection of the desired contractual balance. If we advocate for its abolition, being sufficient, for the convening of the theory, just to demonstrate that there was imbalance in the relationship reciprocal obligations by the occurrence of an extraordinary event, the application of the theory will prove to be more effective. We shall support our argumentation on the fact that general principles of Civil Code itself, as the public order dispositives of social function of contracts (art. 421) and good faith (art. 422), allow, by themselves, the revision or resolution of contracts that prove to be misfits, without, however, having to verify, absolutely, the presence of the requisite of unpredictability. From what was presented, it will be seen that the equality principle, together with the general clauses of the Brazilian Civil Code, objectify, fundamentally, to promote the contractual balance, been sufficient for that. This work, through a literary review, aims to promote an axiological approach on obligational relationships, particularly with respect to the application of the theory of unpredictability, inquiring its exact content and the requirements actually essential to its application.

 

Keywords: Theory of excessive burden. Theory of unpredictability. Objective good faith. New hermeneutic of articles 317 and 478 of the Brazillian Civil Code.OuvirLer foneticament Dicionário – Ver dicionário detalhado

 

 

  1. Considerações Iniciais

 

O Direito Civil, em especial o Direito das Obrigações, surgiu com o intuito primordial de regulamentar as relações privadas entre os indivíduos, disciplinando, precipuamente, o exercício da vontade particular no que se refere às questões patrimoniais.

Para atingir as finalidades desejadas, o contrato surge como instituto jurídico válido e eficaz para este fim, materializando a obrigação avençada entre duas ou mais partes, com fito de regular a exigibilidade da prestação nele contida. Formaliza (e não cria, pois este momento é anterior ao contrato4) a chamada relação obrigacional, vinculando as partes ao estabelecer prestações recíprocas que, quando cumpridas, denotarão o adimplemento da obrigação.

Uma das mais importantes conclusões a que o estudioso pode chegar, nesta análise, é que o contrato é um mecanismo de harmonização de interesses diametralmente opostos5. O escopo último do adimplemento obrigacional é, de um lado, a maior satisfação dos interesses do credor (pólo ativo), e, de outro, a menor onerosidade para o devedor (pólo passivo). É, pois, verdadeiro instrumento de cooperação, através do qual as partes de comprometem, por meio da assunção de obrigações recíprocas, a comportarem-se com fulcro no atingimento do seu fim maior.

O verbete adimplere, em latim, significa cumprir, executar. Caso as prestações assumidas não sejam devidamente cumpridas, portanto, ocorre o que a doutrina denomina de inadimplemento. Segundo o dicionário Houaiss, a palavra inadimplente entrou na língua portuguesa em 1958 e significa “aquele que falta ao cumprimento de suas obrigações jurídicas no prazo estipulado”(HOUAISS:2001). Nesta ocorrência, o intuito do negócio jurídico não foi alcançado, e o Direito Civil dá tratamento especial para essas situações.

O indivíduo, garantido em sua liberdade de manifestação, é livre para contratar sobre o que quiser e com quem quiser, quando e sob a forma que bem entender (obviamente que nos exatos limites da legalidade). Em decorrência desta autonomia, aquele que adere a um pacto, manifestando a sua vontade livre e conscientemente, cria, entre si e o outro aderente, um vínculo tal que dele não se pode afastar. É daí portanto que se conclui: pacta sunt servanda6.

No entanto, para que se possa exigir do devedor o adimplemento de suas específicas obrigações, necessário é a averiguação da possibilidade do cumprimento da prestação assumida. Isto porque, em se tratando de negócio de trato sucessivo e de prestação continuada, certo que a dilação da relação obrigacional no tempo faz com que a mesma esteja a mercê de influências externas não presentes ou não consideradas no momento da celebração.

Desta maneira, é conveniente destacar que para a ocorrência do perfeito e exato adimplemento esperado, é importante que as circunstâncias presentes durante a celebração do contrato permaneçam as mesmas do momento de sua execução, sob pena de se tornar juridicamente impossível ou, ao menos, difícil a sua efetivação. Isto porque, em virtude da alteração das circunstâncias que gravitam a relação contratual, pode a avença sofrer, ainda que indiretamente, uma afetação tal que a necessária paridade presente nas justas convenções se perca.

Esta constatação não é recente, muito menos inovadora. Os canonistas, glossadores de textos do Direito Romano, já na Idade Média, afirmavam que contractus qui habent tractum sucessivum et dependentiam de futuro, rebus sic stantibus intelliguntur7. É, de toda a sorte, um abrandamento do comando exarado pela máxima pacta sunt servanda; um condicionamento da sua força imperativa, pois que a efetivação da obrigação contratual só pode se dar se o status quo das “coisas” permaneça o mesmo.

Passa-se a pressupor, portanto, que em toda convenção, seja qual for seu objeto ou sua forma de celebração, está presente uma cláusula, ainda que tácita, que reproduz o comando retrocitado. Daí, portanto, falar-se em cláusula rebus sic stantibus.

Contudo, a pretensão de uma das partes em reavaliar as condições contratuais raramente é voluntariamente aceita pela outra. A fim de que esta condição se implemente, ou seja, afim de que os contratos sejam interpretados sempre considerando-se as condições sob as quais foram implementados, o convenentes necessitam de instrumento jurídico capaz propiciar esta hermenêutica, quando esta pretensão demonstrar-se resistida. Surge, outrossim, a chamada teoria da imprevisão.

É exatamente neste ponto, com vênia a todo o respeito que mereçam, que renomados doutrinadores se equivocam, ao tratarem como sinônimos institutos que são distintos. Não é verdade, pois, que teoria da imprevisão e a cláusula rebus sic stantibus sejam conceitos ou institutos sinônimos. É, muito antes, uma relação de meio e fim, um instrumento voltado a um objetivo. É através da aplicação da teoria da imprevisão que se persegue uma inteligência proporcional das relações contratuais.

Feita a breve consideração acima, passemos a análise do referido instrumento. Com a intenção de garantir que prestação e contraprestação estejam em justa proporção, e, mais, que credor e devedor relacionem se sobre um mesmo patamar, o Código Civil Brasileiro abarcou a possibilidade de revisão ou resolução contratual, quando o desequilíbrio for visível em virtude de situações específicas.

O novo diploma, em seus artigos 3178 e 4789, disciplinam, respectivamente, as possibilidades de revisão e resolução contratual quando circunstâncias supervenientes à vontade das partes incidam sobre as prestações de forma a torná-las excessivamente onerosas. Trazem, portanto, em seu bojo, o teor da teoria da imprevisão ou teoria da onerosidade excessiva10 no Direito Brasileiro, dependendo, a nomenclatura, do caso em que o instituto for aplicado.

Entretanto, convém salientar que a possibilidade de intervenção judicial nos contratos, para que seu equilíbrio seja restabelecido, funda-se na constatação, pelo próprio ordenamento, que a relação obrigacional é uma relação dinâmica, encarada como um processo11, regida por uma série de princípios e cláusulas gerais que formam verdadeiro supedâneo à sua validade e eficácia.

Aliado à mudança paradigmática sobre a natureza da relação obrigacional, ocorre também uma alteração do método hermenêutico do próprio Direito Civil. Antes encarado como seara distinta e dissociada dos regramentos publicistas, com regras e princípios próprios que com estes não se confundiam, os intérpretes passam a fundar suas leituras do diploma civilista numa interpretação conforme o texto da Carta Política. Num processo que ficou conhecido como Constitucionalização do Direito Civil, a hermenêutica civil realiza-se, agora, harmonizada com os preceitos garantistas do próprio texto constitucional, devendo extrair-se a axiologia de suas normas a partir dos valores fundamentais difundidos pela própria Magna Carta.

Através desta nova proposta, as regras privadas, para sua verdadeira validade, devem pautar-se nos pressupostos jurídicos ditados pela própria Constituição. Nossa Carta Política, logo de pronto e adrede, no seu mais completo, técnico e importante comando, estabelece como fundamento de nosso próprio Estado e, por derradeiro, de todos os atos e fatos jurídicos que neste se perpetrem, o respeito a dignidade da pessoa humana, de um lado, e, também, e sob a mesma égide, a valorização do trabalho e da livre iniciativa; valores estes que, no cotidiano das relações humanas, por vezes se demonstram contraditórios.

Nosso próprio Texto Maior reconhece essa relação antagônica, e, por inúmeras vezes12, repisa a necessidade de harmonização. Nesta vereda, o ordenamento civil recebe os raios inspiradores destes preceitos, e passa a realizar que, ao lado da liberdade de contratar e de administrar o próprio patrimônio, deve estar, sempre, para sua própria validade, o resguardo da dignidade da pessoa humana. Desta amálgama é que exsurge, como corolário, a constatação da função social de toda relação contratual.

Tendo em vista o que foi até então discutido, o presente trabalho objetiva realizar uma análise crítica acerca dos mecanismos de revisão e resolução do negócio jurídico, sempre que circunstâncias supervenientes influenciarem a normal execução da avença, de modo a onerar excessivamente a prestação de uma das partes. Nesta proposta, o exame será feito a partir da constatação da eficácia horizontal13 das normas constitucionais, a fim de que as mesmas possam indicar o conteúdo axiológico das cláusulas gerais exaradas no Código Civil de 2002. Como resultado, almeja-se propor uma nova leitura dos institutos ora tratados, sob uma perspectiva consoante com os preceitos fundamentais do Estado brasileiro.

Para a concretização de tal estudo, primeiramente, analisar-se-á a relação obrigacional em sua totalidade, desde sua perspectiva clássica até sua perspectiva moderna da obrigação como processo. Posteriormente, discorreremos sobre a constitucionalização do Direito Civil, através dos princípios do chamado Direito Civil-Constitucional. Em seguida, tratar-se-á no núcleo do estudo, abordando-se, especificamente, a revisão e a resolução como mecanismos de intervenção jurisdicional voltados ao restabelecimento da paridade contratual. Por fim, apresentaremos a proposta de releitura dos respectivos institutos para que eles ordenem-se de acordo com os ditames de ordem constitucional democrática.

  1. Constitucionalização do Direito Civil

Com base na argumentação trazida a baila até este momento, fica nítida a significativa alteração hermenêutica no âmbito do Direito Civil a partir da inserção de cláusulas gerais no novo Códice. As principais delas relacionam-se com o direito obrigacional, quais sejam a boa-fé objetiva e a função social dos contratos, que possibilitaram uma maior aproximação da legislação aos anseios sociais. Insta agora fazer uma análise do fenômeno conhecido como constitucionalização do Direito Civil, e que alguns autores denominam Direito Civil-Constitucional14.

A expressão “constitucionalização do Direito” traduz a ideia de um texto normativo supremo, do qual derivam e no qual encontram supedâneo todas as demais normas. Esse texto é a Constituição de um Estado, considerada o alicerce de validade de todas as normas que compõem o ordenamento jurídico.

Elucidativos são os ensinamentos de Luis Roberto Barroso:

A idéia de constitucionalização do Direito aqui explorada está associada a um efeito expansivo das normas constitucionais, cujo conteúdo material e axiológico se irradia, com força normativa, por todo o sistema jurídico. Os valores, os fins públicos e os comportamentos contemplados nos princípios e regras da Constituição passam a condicionar a validade e o sentido de todas as normas do direito infraconstitucional. Como intuitivo, a constitucionalização repercute sobre a atuação dos três Poderes, inclusive e notadamente nas suas relações com os particulares. Porém, mais original ainda: repercute, também, nas relações entre particulares. (BARROSO, 2007. p. 12)

Dessa maneira, este fenônemo é responsável por condicionar a atuação do Estado em todas as suas Funções, bem como nas suas relações com os particulares, e, mais ainda, influenciar as relações travadas entre os próprios particulares. Estabelecendo um status necessário da conduta estatal, garante a segurança jurídica uma vez que impõe deveres negativos ao próprio ente político.

Todos os ramos do ordenamento jurídico forma iluminados por este fenômeno. A título de exemplo, ao Direito Administrativo reservou-se todo um capítulo referente à Administração Pública, a fim de regular suas pedras fundamentais; já na senda do Direito Tributário, o legislador constituinte originário criou um título referente à tributação e orçamento; e ainda, no que se refere ao Direito Laboral, a sistematização analítica das garantias e direitos sociais do trabalhador é um marco do Estado Brasileiro.

Não podia ser diferente, portanto, no que tange ao Direito Civil. A instituição dos Direitos e Garantias Individuais, como alicerce de nosso Estado, é fundamento axiológico máximo para a interpretação e aplicação dos ditâmes do Direito Comum.

Neste seara, a qual o presente trabalho se refere, a constitucionalização foi responsável por extirpar do centro do ordenamento jurídico o Código Civil. A partir de então, a Constituição tornou-se o elemento normativo central15, que necessariamente influencia e dirige todos os outros campos. Segundo Carlos Alberto Bittar e Carlos Alberto Bittar Filho (2003. p. 23), “(…) a interpretação deve perfazer-se não pela letra do texto, mas pelo espírito da Carta, ou seja, em consonância com a sua índole e a natureza de seus comandos (…)”.

Antes deste movimento, o pensamento originário da Europa, que alcance o interprete brasileiro de outrora, indicava que o Direito Constitucional e o Direito Civil eram dois ramos do ordenamento jurídico totalmente afastados. A Constituição, considerada uma apanhado de normas meramente programáticas e políticas, tinha o intuito original de regulamentar as relações travadas entre o Estado e os particulares. Enquanto que o Código Civil era o texto legal utilizado quando os particulares estabeleciam relações jurídicas entre si16. No ramo privado, o Direito protegia, indistintamente, seus quatro protagonistas: o contratante, o proprietário, o marido e o testador.

Esse contorno civilista antigo era marcado pelo princípio do individualismo17, herança do liberalismo jurídico, cujo maior ditame regulador era o da autonomia da vontade ou, simplesmente, autonomia privada. Por esse preceito, era permitido às partes complementar a tarefa do legislador, cuja única função era simplesmente a repressão de ilícitos. Mal se preocupava com as condições materiais das partes que celebravam determinado negócio jurídico. Tal modelo foi representado pelo Código Civil de 1916, que em nada abarcava ideais como a solidariedade social.

O declínio do paradigma individualista, que posteriormente culminou na constitucionalização do Direito Civil, ocorreu a partir de meados dos anos 1930, quando houve uma alteração no perfil do Estado. A partir daquele momento, a ordem estatal largava sua faceta liberal e adquiria um contorno social, de interventor na economia e nas relações sociais, que procurou “com êxito evitar que a exasperação da ideologia individualista continuasse a acirrar as desigualdades, com a formação de novos bolsões de miseráveis (…), tornando inviável até mesmo o regime de mercado, essencial ao capitalismo” (TEPEDINO, 2003. p. 117).

Com o advento de um Estado eminentemente social, o Direito Civil, inevitavelmente, passaria também por uma revolução interpretativa. Já que o tal modelo estatal pretendia, em partes, amenizar as desigualdades materiais existentes entre os indivíduos, outros aspectos, como a proteção da parte hipossuficiente da relação jurídica e a própria solidariedade social, apesar de não estarem contidas no texto do Código, nasciam como mecanismos próprios e prontos a flexibilizar o intangível princípio da autonomia das vontades, harmonizando o Códex dos Comuns com as mais altas aspirações da sociedade.

Outro processo que levou à constitucionalização das relações privadas foi a descodificação do próprio Direito Civil. Decorre este processo da constatação de que os códigos tornaram-se obsoletos em face das grandes mudanças sociais, constituindo, assim, em óbice para o desenvolvimento da dogmática civil. A partir da adoção do Estado Social, a técnica legislativa vigente até então se alterou. O Poder Legislativo, que anteriormente editava leis negativas, de abstenção estatal, passava a produzir textos legais determinando finalidades às quais o Estado deveria atingir, traçando metas mediante programas e políticas públicos. Nesse sentido, intervém também, através da atuação legislativa, nos microssistemas civis, como as relações locatícias, familiares, contratuais, consumeristas, da infância e da juventude, dentre outras.

Dessa arte, este fenômeno se demonstra na medida em que as atenções deixam de se voltar ao Código Civil e a as legislações especiais, dos mais diversos méritos, passam a ganhar o principal enfoque. Exemplo preciso encontramos nas relações de consumo: o diploma civil deixa de ser o parâmetro de aplicabilidade, passando o Código de Defesa do Consumidor a suprir tal condição. Ainda, nas relações locatícias, a Lei de Locações faz o papel cumpre o papel Código e, na mesma linha, nas situações em que estão envolvidos interesses de menores, o Estatuto da Criança e do Adolescente se torna o grande responsável pela regulamentação.

Ademais, a própria Constituição influencia nesse processo de descodificação, já que possui normas regulamentadoras das relações privadas e que necessariamente devem ser observadas. Verifica-se, então, a formação de uma nova ordem jurídica pública, que além daquelas questões eminentemente de ordem publicista, como o Direito Administrativo e o Tributário, abarcam também aspectos de ordem privada, por exemplo, o Direito Civil e o Empresarial.

O processo de constitucionalização do Direito Civil, que ainda se encontra em pleno desenvolvimento, foi marcado, como já foi dito, pelo reposicionamento da Carta Magna, agora localizada no epicentro de todo o ordenamento jurídico. A partir de então, princípios da ordem democrática, como a igualdade, a dignidade humana, a solidariedade, a função social, dentre outros, influenciam de forma bastante incisiva o modo de interpretação do Direito Privado. Muitos institutos arraigados por uma cultura extremamente conservadora, rígida e machista alteraram sua essência18 e passaram a ser vistos de maneira oposta.

Sobre a inserção desses novos valores na esfera do Direito Civil, principalmente aquele concernente à dignidade da pessoa humana, Gustavo Tepedino (2003. p. 127) nos apresenta a seguinte observação:

Constitucionalização do direito civil, em uma palavra, não é apenas um adjetivo a colorir a dogmática forjada pela Escola da Exegese, que pode ser a cada momento purificada ou atualizada, mas uma alteração profunda na ordem pública, a partir da substituição dos valores que permeiam o direito civil, no âmbito do qual a pessoa humana passa a ter prioridade absoluta (destaques no original).

A incidência do princípio da dignidade humana dentro das relações civis foi de extrema valia. A partir da incidência desse preceito ocorreu o que a doutrina denominou despatrimonialização das relações privadas19, e a consequente instituição da repersonalização20 do Direito Civil, que a partir do conceito de ser humano, enxerga os chamados direitos da personalidade (tutela da personalidade ou direitos personalíssimos). Em suma, “sai de cena o indivíduo proprietário, para revelar, em todas as suas vicissitudes, a pessoa humana” (LÔBO, 2003. p. 216).

A despatrimonialização do Direito Civil significou uma relativização das relações jurídicas patrimoniais, baseando-as em valores extrapatrimoniais. A partir de então, três conquistas para a cultura jurídica brasileira podem ser elencadas. A primeira delas é a funcionalização dos institutos jurídicos, que agora, passam a ter valores históricos e sociais. Segundamente cita-se a superação da dicotomia do público versus privado, a partir do surgimento de novos ramos21 que não cabem em nenhuma das duas classificações. Por fim, apresenta-se a absorção pela Constituição de valores tipicamente pertencentes ao Direito Civil.

As alterações interpretativas sofridas pelo Direito Civil, que resultou na sua constitucionalização, surgiram, segundo Gustavo Tepedino, da “necessidade absoluta e urgente de compreensão do Direito não mais como um instrumento de mera racionalização de movimentos históricos que lhe são externos e anteriores, mas como um fenômeno dialético e eminentemente social (TEPEDINO, 2003. p.119).

Finalmente, o fenômeno de constitucionalização do Direito Privado foi responsável por criar o que muitos teóricos chamam eficácia horizontal dos direitos fundamentais22, que consiste na aplicação dos direitos fundamentais às relações celebradas entre particulares. A teoria da eficácia horizontal é fruto direto da superação da dicotomia interesse público versus interesse privado.

Nesse contexto, sobre o fenômeno da constitucionalização23, que resultou da publicização24 do Direito Privado, novamente são importantes as palavras de Luis Roberto Barroso (2007. p. 27):

O processo de constitucionalização do Direito Civil, no Brasil, avançou de maneira progressiva, tendo sido amplamente absorvido pela jurisprudência e pela doutrina, inclusive civilista. Aliás, coube a esta, em grande medida, o próprio fomento da aproximação inevitável. Ainda se levantam, aqui e ali, objeções de naturezas diversas, mas o fato é que as resistências, fundadas em uma visão mais tradicionalista do Direito Civil, dissiparam-se em sua maior parte. Já não há quem negue abertamente o impacto da Constituição sobre o Direito Privado. A sinergia com o Direito Constitucional potencializa e eleva os dois ramos do Direito, em nada diminuindo a tradição secular da doutrina civilista (destaque nosso).

Destaque-se, outrossim, a importância do fenômeno da constitucionalização do Direito Civil. Nesse contexto, a alteração hermenêutica é de tal valia que condiciona a interpretação da legislação civil de acordo com a Constituição. Deve-se levar em consideração que o texto constitucional é o cume que ilumina e determina a interpretação de qualquer norma hierarquicamente inferior.

  1. Conclusão

A partir do que foi até então apresentado, percebe-se uma mudança interpretativa acerca dos institutos de Direito Civil. No âmbito obrigacional há um afastamento do arraigado princípio pacta sunt servanda, em detrimento da solidariedade contratual, cuja origem remonta a Constituição Federal de 1988. Aliado a isso, incidem também no Direito das Obrigações princípios como a boa-fé objetiva, equidade contratual e função social dos contratos. Todos esses fatores reunidos foram de suma importância para a promoção da personalização do Direito Privado, com sua consequente despatrimonialização.

Sobre a interferência de eventos supervenientes na economia contratual, o Código Civil de 2002 adotou a Teoria da Imprevisão como norte hermenêutico. Dessa forma, essa doutrina materializou-se nos artigos 317 e 478 do diploma civil. Segundo tais dispositivos, é permitida revisão e resolução do contrato apenas quando os eventos causadores do desequilíbrio forem comprovadamente caracterizados como imprevisíveis. Nesse sentido, a imprevisibilidade é requisito sine qua non para a intervenção judicial na relação privada.

Recentemente, surgiu uma nova teoria, adotada no Brasil por doutrinadores como Gustavo Tepedino e Renan Lotufo, que promove uma releitura dos institutos ora tratados. Segundo eles, o requisito da imprevisibilidade pode ser descartado, uma vez que comprovado o desequilíbrio das prestações. Dessa maneira, basta provar que a obrigação de uma das partes tornou-se excessivamente onerosa para que o Estado, através da figura do magistrado, atue na relação particular, readquirindo o equilíbrio do sinalagma.

Visivelmente, a adoção dessa nova exegese garante uma maior concretização do princípio da igualdade, além de reforçar o real significado do contrato, qual seja efetivar os verdadeiros interesses das partes contratantes, bem como da sociedade. A negação da imprevisibilidade realça o princípio da boa-fé objetiva e efetiva os preceitos de ordem pública, garantindo, pois, a justiça contratual.

Ademais, considerar os critérios subjetivos das partes para os casos de intervenção judicial amplia a possibilidade do exercício dos direitos pelas pessoas. É incontestavelmente retrógrado e incoerente utilizar-se de interpretações que impeçam os indivíduos de concretizarem seus direitos constitucional e legalmente tutelados. Portanto, se defende aqui uma geral e irrestrita extinção da palavra “imprevisibilidade” do texto legal, no tocante aos artigos 317 e 478 do Código Civil de 2002.

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1 Acadêmica de Direito da Universidade Federal de Uberlândia. Atualmente cursando o terceiro ano do curso. E-mail para contato: julianafcdir@yahoo.com.br;

2 Acadêmico de Direito da Universidade Federal de Uberlândia. Atualmente cursando o terceiro ano do curso. E-mail para contato: raphael_siqueira@hotmail.com;

3 Professor Substituto da Universidade Federal de Uberlândia. Professor da Faculdade Pitágoras de Uberlândia. Especialista em Direito Público pela Universidade Federal de Uberlândia. E-mail para contato: professorjorgealbernaz@gmail.com.

4 De acordo com a contundente lição de Karl Larenz, “Um contrato, como qualquer jurista sabe, aperfeiçoa-se quando duas pessoas declaram uma à outra sua vontade direcionada à ocorrência de efeitos jurídicos. A declaração, logicamente, não precisa ser “expressa”, ela pode acontecer por meio do dito “comportamento concludente”. Ou seja, um comportamento que, segundo o entendimento geral ou do “destinatário da declaração”, permite concluir a respectiva vontade do agente com relação aos efeitos jurídicos ou a sua vontade negocial.” (LARENZ, 1956, p. 1897-1900)

5 Nas sábias palavras de Orlando Gomes: “Nos contratos há sempre interesses opostos das partes contratantes, mas sua harmonização constitui o objetivo mesmo da relação jurídica contratual. Assim, há uma imposição ética que domina toda matéria contratual, vedando o emprego da astúcia e da deslealdade e impondo a observância da boa-fé e lealdade, tanto na manifestação de vontade (criação do negócio jurídico) como, principalmente, na interpretação e execução do contrato.” (GOMES, 1999, p.42.)

6Numa tradução livre “os pactos devem ser cumpridos

7Numa tradução livre “nos contratos em que há trato sucessivo e que dependam do futuro, a inteligência deve se dar mantido o mesmo estado das coisas”.

8 O artigo 317, do Código Civil de 2002 (Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002) possui a seguinte redação: “Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que se assegure, quanto possível, o valor real da prestação”.

9 O artigo 478 do Código Civil é redigido da seguinte forma: O artigo 478 do Código Civil é redigido da seguinte forma: “Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação”.

10 Segundo o pensamento clássico, será denominada teoria da imprevisão (que possui origem francesa) sempre que no caso concreto estiver envolvida a possibilidade de revisão contratual. Da mesma forma, será doutrina da onerosidade excessiva (cuja procedência é italiana) quando se estiver diante da hipótese de resolução do contrato.

11 Ver: COUTO E SILVA, Clóvis Veríssimo do. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: FGV, 2007.

12Neste sentido, percebamos a localização topográfica nos incisos II e III do art. 3º, bem como dos incisos XXII e XXIII do art. 5º e, ainda, dos incisos II e III ou IV e V do art. 170, todos da Constituição da República de 1988. Além disso, anote-se a redação do caput do art. 170 que pondera que a valorização do trabalho e a livre iniciativa só podem efetivar-se quando tenham por fim assegurar a todos existência digna.

13Usa-se aqui a referida expressão nos exatos ditames das lições de Ingo Wolfgang Sarlet em sua obra A Eficácia dos Direitos Fundamentais, mormente no que nos ensina sobre o aspecto axiológico da dimensão objetiva das normas definidoras de direitos fundamentais.

14 BITTAR, Carlos Alberto. BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Direito Civil Constitucional. 3ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

15 É o que a doutrina denomina filtragem constitucional. Segundo Luis Roberto Barroso, “consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida e apreendida sob a lente da Constituição, de modo a realizar dos valores nela consagrados”. (BARROSO, 2007. p. 20)

16 Essa forma de pensamento vigente valorizava e defendia plenamente uma dicotomia que teoricamente existia entre o público e o privado. O Direito Público era o grande responsável pela garantia dos direitos dos cidadãos perante o Estado, enquanto que o Direito Privado era o ramo que garantia liberdade de contratação e apropriação aos indivíduos.

17 Sobre o individualismo, Gustavo Tepedino tece as seguintes ideias: “(…) O Código Civil, como se sabe, quando entrou em vigor, em 1917, refletia o pensamento dominante das elites européias do século XIX, consubstanciado no individualismo e no liberalismo jurídicos. O indivíduo, considerado sujeito de direito por sua capacidade de ser titular de relações patrimoniais, deveria ter plena liberdade para a apropriação, de tal sorte que o direito civil se estruturava a partir de dois grande alicerces, o contrato e a propriedade, instrumentos que asseguravam o tráfego jurídico com vistas à aquisição e à manutenção do patrimônio”. (TEPEDINO, 2003. p. 116)

18 Sobre a mudança interpretativa em alguns institutos de Direito Civil, pode-se citar: necessidade de que a propriedade cumpra função social; fim da superioridade do marido dentro da relação matrimonial; igualdade material e formal dos filhos; necessidade de igualdade dentro das relações contratuais, dentre outros.

19Socialização, despatrimonialização, repersonalização, constitucionalização do direito civil, em seus diversos matizes, tendem a significar que as relações patrimoniais deixam de ter justificativa e legitimidade em si mesmas, devendo ser funcionalizadas a interesses existenciais e sociais, previstos pela própria Constituição no ápice da hierarquia normativa, integrantes, portanto, da nova ordem pública que tem na dignidade da pessoa humana o seu maior valor” (destaques no original). (TEPEDINO, 2003. p. 119).

20 O intuito da repersonalização é conceber a pessoa humana como o centro motivador das relações sociais, e em consequência, colocar o patrimônio como coadjuvante, nem sempre sendo necessário, cujo significado é a adequação do Direito Civil aos preceitos do Estado Democrático de Direito, dentre os quais se destaca a dignidade da pessoa humana. É uma visão oposta àquela tradicionalista, que afirma ser o objetivo do Direito Civil a valorização e a tutela do patrimônio, no qual ocorre a reificação, a coisificação dos sujeitos de direitos; sendo que se observa, primeiramente, o ter, e posteriormente, o ser.

21 Alguns ramos que surgiram no âmbito do Direito contemporâneo não podem ser perfeitamente classificados no grupo do Direito Público e nem do Direito Privado. Alguns exemplos, citados por Gustavo Tepedino são: Direito Bancário, Biodireito e Bioética. A doutrina contemporânea prega a tese de que esses dois ramos de interesses fundiram entre si, não sendo mais possível tal distinção. Sobre isso, Maria Celina Bodin de Moraes afirma: “Defronte de tantas alterações, direito privado e direito público tiveram modificados seus significados originários: o direito privado deixou de ser o âmbito da vontade individual e o direito público não mais se inspira na subordinação do cidadão. A divisão do direito, então, não pode permanecer ancorada àqueles antigos conceitos e, de substancial–isto é, expressão de duas realidades herméticas e opostas traduzidas pelo binômio autoridadeliberdade – se transforma em distinção meramente ‘quantitativa’: há institutos onde é prevalente o interesse dos indivíduos, estando presente. contudo, o interesse da coletividade; e institutos em que prevalece, em termos quantitativos, o interesse da sociedade, embora sempre funcionalizado, em sua essência, à realização dos interesses individuais e existenciais dos cidadãos”. (MORAES, 1991. p. 6)

22 Sobre eficácia horizontal dos direitos fundamentais, ver: SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2ª Ed. 3ª Tir. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

23 “Pode-se afirmar que a constitucionalização é o processo de elevação ao plano constitucional dos princípios fundamentais do direito civil, que passam a condicionar a observância pelos cidadãos, e a aplicação pelos tribunais, da legislação infraconstitucional”. (LÔBO, 2003. p. 199)

24 Importante é destacar a diferença entre publicizaçao e constitucionalização. Para isso, Paulo Luiz Netto Lôbo nos ensina: “A denominada publicização compreende o processo de crescente intervenção estatal, especialmente no âmbito legislativo, característica do Estado Social do século XX. Tem-se a redução do espaço de autonomia privada, para a garantia da tutela jurídica dos mais fracos”. E conclui: “Em suma, para fazer sentido, a publicização deve ser entendida como o processo de intervenção legislativa infraconstitucional, ao passo que a constitucionalização tem por fito submeter o direito positivo aos fundamentos de validade constitucionalmente estabelecidos. Enquanto o primeiro fenômeno é de discutível pertinência, o segundo é imprescindível para a compreensão do moderno direito civil”. (LÔBO, 2003. p. 199 – 200)

Jorge Luiz Morales Albernaz

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