Brasil: E agora, “companheiro”?

Scarica PDF Stampa
                 Iniciamos este nosso trabalho rememorando uma frase da grande escritora Clarice Lispector: "Enquanto eu tiver perguntas e não houver respostas, continuarei a escrever”[1]. Os rumos do Brasil hoje, nos parecem infrenes; as informações obtidas são desordenadas, as “verdades” se sustentam dentro de uma suspeita normalidade, embora, sob um olhar um pouco mais observador, seja possível avistar, sem muito esforço, o mais cínico embuste.
                 Tentamos construir um Estado Democrático de Direito, e, talvez, sequer chegamos a sê-lo. Saímos de uma ferrenha ditadura, e o país teve seu viés de esquerda, embora, repouse agora, tranqüilo em zona de conforto, que é a situação. E ao que nos parece, a situação é apolítica, e não sendo de direita, tampouco, de esquerda, sequer centrista, é tão-somente favorável, objeto de fruição, torna-se isenta de ideais verdadeiramente políticos.
                 Nós, o povo, elementos da nação, e o somos no sentido mais substancial e autêntico da palavra, pois, nação não traduz uma idéia cujo sentido tende a ser abstrato, porque os laços que nos unem são comuns, assim como também o são os ideais e aspirações, da mesma forma que se edificam como concretas e reais as necessidades sociais, o interesse no bem comum. E, este conjunto constituído por elementos humanos, ultrapassa os limites da família, do grupo ou da comunidade, e, por isto, forma o Estado. Darcy Azambuja nos coloca esta questão da seguinte forma: “Nação é muita coisa mais do que o povo, é uma comunidade de consciências, unidas por um sentimento complexo, indefinível e poderosíssimo: o patriotismo”.[2]
                 E, é justamente o tal “patriotismo”[3] que nos infere às dores e angústias do Estado, quando este nos descortina o caos. O resultado desta constatação, é a perda da identidade. O povo forma a nação, a nação forma o Estado, e se o Estado não possui seus elementos essenciais, não é Estado, e, conseqüentemente, deixamos de ser cidadãos.
                 Ao silenciarmos diante destas evidências, estaremos anuindo àqueles que nos roubam os princípios da cidadania, e numa mesma proporção deixaremos de ser sujeitos de direito diante do Estado; para assumirmos a posição de súditos de determinado governo, por simplesmente constituir um conjunto de indivíduos sujeitos às mesmas leis.
                 Os estudiosos do direito, ou seja, os jurisconsultos propagam que o exercício do “Direito” é um estado de luta, nunca de paz. Tanto que, as grandes conquistas humanas neste sentido advieram sempre pós-guerra. E, aqui, atribuímos à palavra “guerra” um caráter genérico, donde deriva todas as suas espécies: revoluções, insurreições, levantes e movimentos sócio-políticos, e porque não dizer, literários.
                 E, embora, o Brasil tenha se mantido essencialmente distante dos conflitos armados, outrora, já enfrentamos “politicamente” circunstâncias que descreviam uma legalidade “extraordinária”, onde os direitos individuais foram suspensos, as garantias cassadas, tornaram-se inexercitáveis, inexeqüíveis e a autoridade política do país revelou-se ditatorial. Foi em 13 de dezembro de 1968, que o Marechal e Presidente Artur da Costa e Silva, promulgou o Ato Institucional nº 5 (AI-5).[4]gualizado à Constituição, o AI-5 foi capaz de atribuir poderes questionáveis ao Presidente, tal como: Decretar o fechamento do Congresso Nacional. Todavia, inicia-se a abertura política, é o Presidente Emílio Garrastazu Médici , afeito aos slogans, lança um que retrata um ufanismo necessário e, que seria a face escusa de seu governo:"Brasil, ame-o ou deixe-o", esta era a fachada dos  anos mais duros do governo militar, onde e quando, qualquer manifestação contrária ao governo era considerada perigosa. Tempos depois, Médici é sucedido por Ernesto Geisel, que ciente de que já não havia mais possibilidade de saída sem crise, resolve iniciar uma “abertura política institucional” – “lenta, gradual e segura”, segundo suas próprias palavras, proferidas em seu discurso de posse. Enfim, foram quatro décadas gestando a tão esperada “democracia”, daí porque, não nos parece justo deixá-la falecer por inanição. I
                 Sim, estamos famintos da real democracia, democracia que encerra em si o exercício verdadeiro da cidadania, donde cidadania está além do ‘vago direito’ de eleger quem nos faz promessas, e eqüidistante da faculdade de ser mais um promissor entre os eleitos; deve sim corresponder à contrapartida de desconstituir a autoridade daquele que não se compromete com o ideal comum, que lança mão da “coisa pública” e, que se caracteriza, a posteriori, como mero descumpridor de promessas, sem que haja qualquer sanção, como se o engodo eleitoral estivesse caracterizado tão-só como falta moral, e estando a moral na ordem intrínseca, não sujeita à ordem jurídica, torna seu compromisso facultativo, como se a dignidade política fosse uma opção pessoal, não um requisito necessário e elementar aos cargos ou funções representativas de governo.
                 O povo brasileiro tem sido vítima daquele sentimento indefinível, ouso dizer, inapartável, que Darcy Azambuja define como “patriotismo”, e, desde de há muito tempo tem sido credor de obrigações assumidas, porém, nunca satisfeitas.
                 Já tivemos campanhas homéricas, em que todos participamos incondicionalmente, sem restrições ou questionamentos, tais como: a campanha promovida pelos “Diários Associados”, sob o título de vigília cívica, que foi lançada nos primeiros anos dos governos militares, quando o governo federal lançou-se em uma cruzada pela arrecadação de fundos, referida campanha denominou-se singelamente: “Ouro para o bem do Brasil". Iniciada aos 13 de junho de 1964, assim, há exatamente 42 anos atrás, foram recolhidos e doados ao Brasil, só em São Paulo, cerca de 400 quilos de ouro e meio bilhão de cruzeiros à época. Momento em que a comoção geral angariava fundos; os populares doaram objetos de ouro de uso pessoal, tais como alianças, anéis e outros, e receberam em troca uma aliança de metal, com os dizeres: “Legionários da Democracia”.[5] Os fatos demonstram que talvez, todo este ‘ouro’ não tenha feito bem para o Brasil, posto que, a nossa situação atual permanece precária, mas, com toda certeza, fizemos um bem enorme a alguns brasileiros.
                 Mas, nem tudo foi submissão ou ilusionismo em terras Tupiniquins. Houveram conquistas factuais, “lutamos” bravamente pela Democracia e heroicamente por nossa liberdade; fomos às ruas num movimento cívico de reivindicação por eleições presidenciais diretas no Brasil, em 1984,chamado: “Diretas já!”.
                 Embora desacreditado, e, pela primeira vez partindo do nordeste do país, nasce o movimento que mudaria a “cara”, e, aparentemente, a índole do Brasil. Em 31 de março de 1983, no Município de Abreu Lima, em Pernambuco, surge aquela que seria a ação inaugural deste movimento; que mais tarde, passo a passo e, dia por dia, iria tomando conta e maior fôlego no resto do país. E, um ano mais tarde, se encerraria com uma concentração de aproximadamente 1,5 de pessoas, no Vale do Anhangabaú em São Paulo. Enfim, o povo foi às ruas, foi dizer não à ditadura, “não” ao governo militar de João Batista Figueiredo, foi dizer “sim” à democracia, e mais que tudo, consolidar a soberania da vontade popular.
                 Afinal, éramos nós, agora, conscientes de nossa cidadania. Éramos os mesmos, aqueles que enfrentaram o Estado Novo instituído por Getúlio Vargas em 10 de novembro de 1937, que ao fechar o Congresso Nacional, impôs ao país uma nova Constituição, conhecida como: "Polaca", por ter se inspirada na Constituição da Polônia, de tendência fascista; éramos aqueles que em 1964 sentiu pungir o golpe militar, e agonizou por 20 anos os venenos amargos da ditadura, em um silêncio que vinha do exílio, à vista de uma verdade crivada pela censura.
                 Nossos passos de retomada à democracia foram lentos, não acovardados, porém, temerosos. Contudo, não mais que de repente, surge neste cenário histórico Tancredo de Almeida Neves, que, embora eleito por via indireta, representava o primeiro presidente civil, e isto naquele momento nos bastava, estar à distância das forças e longínquos das armas. Todavia, pouco durou nossa alegria, em linguagem popular: ‘Tancredo deixava a vida, e nem sabemos ao certo, se de morte matada ou de morte morrida’. A comoção geral assolou o Brasil, desta feita, éramos nós enlutados, órfãos pai, sem lenço, documento ou cidadania.
                 Finalmente, em 1990, os “bons” ventos sopraram, e sobe a rampa do Planalto Fernando Collor de Mello, primeiro presidente civil eleito por via direita, desde 1960, nos termos da Constituição de 1988, e que derrotou no segundo turno da eleição, Luiz Inácio "Lula" da Silva. Tendo como bandeira uma tal modernização econômica e a uma entusiasta reforma administrativa, trouxe à baila o neologismo da recessão ao lançar seu programa de estabilização, inaugurando no Brasil o “confisco monetário”[6]. O governo Collor trouxe não só esta, como outras “boas novas”, nos tornamos um povo politizado, pois, antes dele, não conhecíamos ou havíamos experimentado o Impeachment[7].
                 O governo Collor foi um episódio inusitado na historia do Brasil, foi marcado por situações que até então, achávamos que eram escândalos políticos inadmissíveis, quando não, intoleráveis (tráfico de influência, irregularidades financeiras, corrupção).Posto que, não havíamos adentrado à  “Era Lula” de governo.
                 Lula, eleito em 2003, por maioria absoluta dos votos, numa das eleições que decididamente marcaria a história política não só do Brasil e da América Latina, como também, universal. Era finalmente alguém do povo, governando o povo. Sentíamo-nos como se, derradeiramente, conseguíssemos saber qual era o rumo do barco na tempestade, porque conhecíamos o timoneiro, sabíamos quem ele era. A vitória de Lula em 2003; foi a festa cívica mais exuberante do país, o eleitorado em peso nas ruas, em todos os cantos e recantos do Brasil, em qualquer que fosse o “cafundó”, havia lá, um cidadão, um brasileiro, orgulhoso de haver contribuído “democraticamente” para com aquele êxtase de alegria e fé.
                 Mas, porém, as coisas não continuaram ‘tudo como d’antes no quartel de Abrantes’, tampouco, foram melhores, do que se viu no percurso da historia ou nos arredores de escorços governos. E agora, a festa acabou, e advieram os escândalos, e, estes são tantos quantos os de uma dama desvairada. E nada mais nos deixa atônitos, e o sonho político tomou feição de emboscada. Em tempo “Record” tivemos um “mix” de usurpação, seus ingredientes [?]: um punhado de propina; uma farta dose de corrupção; um Dirceu que não é dócil como o de Marília[8], mas, que em contrapartida, conhece bem certas medidas: provisórias, imediatas, urgentes ou definitivas, e com raspas dos cofres público, doou dinheiro todos os dias, sob o título de ‘mensalão’[9]. Tivemos grandes obras, passarela de dinheiro intruso, bolsas, malas, e cuecas, transitavam no Valerioduto[10]. Cartões de crédito corporativos, fundo de pensões que restaram quase sem fundos. E sem contar o “Severino” que não montou uma “butique”, mas, com certeza, viu a vida melhorar[11].
                 Diante de tanta indignação, pouco há o que se falar. Onde está o presidente [?], cujo slogan era: Lula lá![12] E agora, sem medo de ser feliz… parafraseando o grande poeta, Carlos Drummond de Andrade, ouso perguntar: “E agora, José?[13], E agora, Luiz? E agora, Companheiro? Brasil, no que isto vai dar!?
 


[1] LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. Editora Nova Fronteira, RJ, 9a. Edição, 1984. Último romance de Clarice Lispector, em que trabalha com a possibilidade de uma literatura revestida por um fim social, capaz de lidar com o problema da pobreza e da marginalização das classes oprimidas; sendo descritas pelo narrador e, vividas por Macabéa, personagem central, retirante nordestina, que não vive, porém, sobrevive a própria pobreza do mundo, pobreza “feia e promíscua”, conforme escreve a autora (p. 22).
 
[2]AZAMBUJA, Darcy. “Teoria Geral do Estado”, 18ª ed., Porto Alegre: Globo, 1979. p.19
 
[3] O conceito de patriotismo está atrelado a tudo que se refere ao amor pela pátria, embora, tal subjetividade não se aparte da convicção que o indivíduo possui de estar construindo seu país. Patriotismo pode também ser entendido dentro de um sentido mais amplo, notadamente, àquela expressão alcançada pelo filósofo alemão, Jürgen Habernas, em 1989, ano em que teceu a definição de Patriotismo constitucional, que nada mais é, senão um elemento de identificação do indivíduo com a nação, sendo que ambos compõem juntos e unidos aos demais patriotas, um enlace dentro de um projeto comum de sociedade democrática, traçado sobre o molde da real cidadania. O patriotismo descritivo de Habernas, pontua o projeto racional de convivência, uma lealdade para consigo mesmo, que repercute na sociedade; desvela um respeito incondicional pelos direitos humanos, e mais que tudo, ensina que há um sentimento revestido pela subjetividade de cada um de nós, e que ao mesmo passo, nos remete à defesa inconteste dos valores nacionais, mesmo quando a luta a ser enfrentada se faz contra o Estado.
 
[4] Instaura-se no país uma ordem revolucionária, onde os Atos Institucionais aniquilam o texto constitucional brasileiro, e a repressão suprime toda e qualquer liberdade. Nasce a Constituição de 1969, que segundo o Prof. Celso R. Bastos traduzia-se da seguinte forma: “ Na verdade poderíamos dizer que a despeito do texto constitucional afirmar a existência de três Poderes, no fundo existia um só, que era o EXECUTIVO ”…e acrescenta: “Os Decretos-Lei se tornaram uma arma poderosíssima diante das expressões vagas tais como: Urgência e interesse público relevante (hoje requisitos exigíveis às Medidas Provisórias, conf. Art.62, caput, CF), assim como em matéria de segurança nacional. A conjugação desses conceitos permitia que se levasse a extremos insuspeitáveis a competência do Executivo para editar normas, onde todo instante se sente a mão do Estado autoritário que a editou ”.(Curso de Direito Constitucional, 21ª ed., Ed. Saraiva, São Paulo, 2000, p.134/135).
                                              
                                  
[5] Segundo a reportagem: “Ouro para o bem do Brasil – São Paulo repete 32”, de José Pinto e José de Souza, para a Revista “O Cruzeiro” de 13/06/1964, cujo arquivo está disponível através do endereço:
 
[6]A ambição do Plano Collor foi tal, que a economia brasileira não suportou a ditadura do Presidente que queria crescer e desenvolver a todo custo e rapidamente, sem o aval dos industriais, dos banqueiros e latifundiários. […] Nas palavras da Ministra da Economia, Zélia Cardoso de Melo:
 
“A meta é recuperar a eficiência e a dignidade do serviço público, racionalizar e aumentar a produtividade e garantir um planejamento que execute as metas econômicas e sociais do governo”. In “Memórias da Economia – A realidade brasileira” de Luis Gonzaga de Souza.
 
[7] O Impeachment é um processo político, não criminal. "O sentido do juízo político não é o castigo da pessoa delinqüente, senão a proteção dos interesses públicos contra o perigo ou ofensa pelo abuso do poder oficial, negligência no cumprimento do dever ou incompatível com a dignidade do cargo."
GONZALES CALDERÓN, Juan A. “Derecho Constitucional Argentino”, 3º Tomo, Buenos Aires: Lajouane, 1923.
 
[8] Parte I, Lira XXII – […] Que belezas, Marília, floresceram,
De quem nem sequer temos a memória!
Só podem conservar um nome eterno
Os versos, ou a história.
[…]
GONZAGA, Tomás Antonio. Marília de Dirceu. 28ª ed., Rio de Janeiro: Ediouro, 2000. (Coleção Prestígio).p 44.
 
[9] Esquema de compra de votos de parlamentares – Mensalão é o nome dado a maior crise política sofrida pelo governo brasileiro. Sendo utilizado como uma variante da palavra "mensalidade", é usada para se referir a uma suposta "mesada" paga a deputados para votarem a favor de projetos de interesse do Poder Executivo.
 
[10] Esquema pagamento de propinas, financiamento de campanhas eleitorais e movimentações financeiras irregulares, e que tiveram como principal canal as contas do empresário Marcos Valério Fernandes de Souza. O chamado valerioduto – mobilizou, entre 1997 e 2005, R$ 2,6 bilhões, de acordo com o relatório parcial da CPI dos Correios.
 
[11] Ilação feita à música: “Severina Xique-Xique”, de Genival Lacerda e João Gonçalves, faixa do álbum: Raízes Nordestinas, Gravadora EMI.
 
[12] Jingle da campanha presidencial de 1989 –“Lula-lá, brilha nossa estrela, Lula-lá, brilha a esperança, Lula-lá, num Brasil criança, Lula-lá, brilha nossa estrela…”
 
[13] […] a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José ?
 
Considero privilégio meu dispor deste verso, porque me chamo José e muitas vezes na vida me tenho interrogado: "E agora?" Foram aquelas horas em que o mundo escureceu, em que o desânimo se fez muralha, fosso de víboras, em que as mãos ficaram vazias e atônitas […] que esta pergunta simples aja como um tônico, um golpe de espora, e não seja, como poderia ser, tentação, o começo da interminável ladainha que é a piedade por nós próprios […]A esses, que chegaram ao limite das forças, acuados a um canto pela matilha, sem coragem para o último ainda que mortal arranco, é que a pergunta de Carlos Drummond de Andrade deve ser feita, como um derradeiro apelo ao orgulho de ser homem: "E agora, José?”.SARAMAGO, José. A bagagem do viajante – crônicas. 3. Ed. Lisboa: Caminho, 1986. P. 35-7.
 

De Oliveira Carmo Suzana J.

Scrivi un commento

Accedi per poter inserire un commento