A terceira evolução hermenêutica: o caminho da hermenêutica filosófica

Marcio Rezende 18/11/10
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Márcio Rezende1

 

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Modelo hermenêutico tradicional; 3. Modelo hermenêutico constitucional tradicional e pós-positivismo; 4. O Caminho da hermenêutica filosófica; 5. Considerações Finais; 6. Referências Bibliográficas.

RESUMO: A hermenêutica tem evoluído constantemente, sempre na busca de melhor tratamento do texto normativo e de extração do melhor sentido possível. Ao cabo desta noção se tem visto várias evoluções da atividade interpretativa, destacando-se no texto duas delas: a passagem da hermenêutica tradicional para a hermenêutica constitucional e a evolução da hermenêutica constitucional para uma interpretação pós-positivista embasada na teoria da argumentação. Mas o que se vai buscar ao fim da exposição é uma terceira evolução que reconhece a importância do papel do ser na atividade interpretativa.

 

PALAVRAS CHAVE: tipologia, interpretação, hermenêutica, aplicação, estrutura circular, dialética, lógica jurídica, teoria da argumentação.

 

  1. Introdução

Todo estudo, qualquer que seja ele, tem que partir de um ponto de referência. Com o Direito, principalmente no que toca à arte da interpretação, não é diferente.

É comum, quando se fala em hermenêutica, se pensar em técnica da interpretação e se colocar como objeto um texto. No Direito, o texto que acaba ocupando a posição de destaque na atividade interpretativa é a norma jurídica. De modo que a hermenêutica sempre se conduziu no sentido de traçar estratégias de extração de sentido deste objeto: norma jurídica.

Como se verá adiante a hermenêutica evolui e muda, mas está sempre atida a esta conotação de busca de estratégias, de formas, de meios para extrair da norma seu correto sentido. É justamente com esta postura tradicional que se busca o rompimento.

Aliás, não seria, propriamente, um rompimento, mas uma evolução, em que se passa a reconhecer o papel que o ser humano está desempenhando nesse processo de construção do conhecimento.

 

  1. Modelo hermenêutico tradicional

A hermenêutica tradicional, enquanto atividade interpretativa, integrativa e de aplicação do Direito, parte da relação básica entre ser e objeto interpretado para ver, no objeto, um conhecimento pronto e acabado, o qual deve ser desvendado e elucidado pelo intérprete.

Além desta constatação inicial, é também evidente, na hermenêutica tradicional, uma inter-relação com os movimentos jurídicos de maior ou menor apego à lei, fazendo-se, imperioso neste momento, uma retomada destes movimentos com o fim de relacioná-los com esta hermenêutica. Até porque sem essa recorrência jamais se compreenderia o atual estágio desta arte da interpretação.

Assim é que o estudo se principia a partir da tese do positivismo, já que esta corrente apresenta-se extremamente interligada aos métodos hermenêuticos. Neste sentido, o positivismo nasce como concepção legalista ou mecânica de interpretação do Direito nos dizeres de Maria Helena Diniz2. Aliás o referido nascimento desta escola interpretativa, se é que assim pode ser abordada, se justifica ante a necessidade de se garantir o valor segurança, contra as arbitrariedades praticadas pelos Estados Absolutistas, e jamais punidas pelo Direito Natural.

A referida autora3 aborda a escola da exegese sob as perspectivas francesa, alemã e nos países de Comon Law, sendo, aqui, interessante a abordagem mais aproximada, apenas, da primeira e terceira escolas, vez que a segunda apenas reitera a primeira.

Nesse sentido, a escola exegética francesa, de meados do séc. XIX, apresenta os seguintes pontos de interesse:

a) firma o dogma da onipotência das leis, criando-se, com isso, a noção de que a atividade interpretativa deve estar restrita apenas ao que está expressamente escrito na lei.

b) centra a atividade interpretativa apenas em três métodos: o gramatical, extremamente apegado à literalidade do dispositivo legal, o histórico, usado apenas diante da fragilidade explícita do método literal e, ainda, como recurso histórico na investigação da vontade da lei e do legislador, e o sistemático também usado na busca da vontade da lei e do legislador ante a fragilidade dos métodos anteriores.

c) concepção mecânica da atuação judicial, a qual reduz o magistrado a mero prolator da vontade da lei e do legislado, já de muito implícitos em formulas legais criadas por um poder legislativo.

d) emprego da lógica silogística dedutiva: a escola se destacou por reduzir a atividade de aplicação do direito a um silogismo dedutivo aristotélico, no qual a lei figurava como premissa maior, o caso concreto como premissa maior, e a decidibilidade ou aplicação normativa como conclusão. É nesse sentido que se dizia que a atividade do aplicador era de mera subsunção.

Em continuidade, conforme, ilustra Maria Helena Diniz4, a escola exegética nos países de Comon Law trouxeram um ponto de relevância importante conhecido como fetichismo textual. Conhecia-se essa expressão como o apego aos precedentes judiciais já instituídos, donde se entendia que a decisão judicial que destoasse de um precedente específico era tido como novo entendimento e este rompimento significava a criação de novo precedente. O apego reduzia a função do juiz à de mero aplicador de precedentes.

Vê-se que o positivismo, sob um falso argumento de garantia de segurança jurídica, reduziu o Direito à expressão legislativa oriunda do Estado, reduzindo o intérprete a mero aplicador de uma realidade que, aparentemente, já estava dada pelas leis. Todavia, a fragilidade da tese positivista que, ainda, pretendia a completude sistêmica do Direito, a partir das leis estatais, fez com que surgissem várias escolas interpretativas criticistas às escolas exegéticas, sendo algumas mais relevantes e outras menos.

Dentre as escolas criticistas a primeira que é merecedora de análise é a conhecida como livre investigação científica de François Geny, tratada por Maria Helena Diniz5. Esta escola apresenta os seguintes pontos de vantagem:

a) constatação da fragilidade da lei: a lei apresenta-se como manifesto da vontade do legislador que nem sempre é condizente com a realidade que reclama regulação

b) desvio da vontade da norma para focar a interpretação na vontade do legislador: a vontade da norma não é o principal a ser buscado, mas a vontade do legislador ao criar dita norma. Neste sentido, usa-se do recurso histórico para voltar-se ao momento de criação da norma e buscar a vontade e os propósitos do legislador com a sua criação.

c) noção das fontes supletivas: a escola amplia a noção de fonte do Direito para além da simples e única fonte legal, passando a abarcar os costumes, doutrina, jurisprudência e a chamada livre investigação científica, a qual deve ocorrer sempre que as fontes anteriores não sejam capazes de suprir a falha normativa da lei.

d) crítica à lógica dedutiva: colocava em debate a simples atuação mecânica do intérprete diante da postura do silogismo dedutivo preconizada pela escola da exegese.

Outra escola merecedora de análise e, também, abordada por Maria Helena Diniz6, foi a chamada ofensiva sociologista de Eugen Ehrlich. Sociológico que é, este autor pretendia ver o Direito como capítulo da sociologia, entendendo esta como a verdadeira ciência jurídica. Esta escola apresentou, ainda, os seguintes pontos de interesse para o presente ensaio:

a) crítica ao dogma da completude: a escola defendia que o ordenamento legal era incompleto e falho para tratar de todas as situações possíveis e imagináveis que pudessem surgir na vida em sociedade. O legislador não era um mago capaz de, com uma bola de cristal, prever tudo que fosse acontecer e profetizar em normas o que estivesse por vir. Essa disparidade entre a fragilidade do legislador e a alta variabilidade da sociedade tornariam o direito legal incompleto por nascimento.

b) multiplicidade de categorias jurídicas: este movimento partia do suposto da pluralidade normativa. Segundo este suposto as normas eram classificadas em: normas de direito estatal (leis), normas de direito da sociedade extra-estatal (costumes, contratos, direito vivo), regras de decisão judicial (jurisprudência e regras de experiência).

Também relevante se faz a análise da escola do Direito Livre7, cujo defensor foi Hermann Kantorowicz. Esta escola partia do suposto da precedência da sociedade sobre a lei Estatal, entendendo que o Direito nascia na sociedade e apenas era revelado por leis do Estado. Baseando-se nesta nota introdutória a escola desenvolveu-se sobre três diretrizes interpretativas: a) a aplicação de texto de lei unívoco somente se daria caso não ferisse o senso de justiça da comunidade; b) diante de texto de lei que não oferecesse solução pacífica ou conduzisse a solução injusta caberia ao magistrado, em substituição, proferir decisão baseando-se em norma que o legislador teria criado caso tivesse previsto este caso. Neste sentido, destacava-se a atividade criadora do magistrado dentro do espírito social que animava a legislação; c) quando diante do caso prático o magistrado não tivesse condições de criar, casuísticamente, a norma em substituição ao legislador, deverá então decidir com recurso ao direito livre, sendo que na ausência de solução neste âmbito deveria o juiz decidir discricionariamente.

Partindo das escolas da exegese e das escolas criticistas, que vão bem além das que, aqui, foram tomadas em amostragem, a doutrina, de modo gerou, cunhou métodos interpretativos, os quais, na visão de Carlos Maximiliano8, Miguel Reale9, Maria Helena Diniz10 e Rizzatto Nunes11 podem ser divididos em três gêneros: a) quanto à origem; b) quanto aos tipos; e c) quanto aos efeitos.

Quanto à origem, a interpretação classifica-se em:

a) interpretação autêntica: trata-se de interpretação que emana do próprio poder que faz a norma;

b) interpretação doutrinária: é aquela que emana da doutrina;

c) interpretação administrativa: é a que deriva dos órgãos da administração pública através de seus atos ordinatórios tais quais pareceres, decisões, despachos, circulares, portarias etc.;

d) interpretação judicial: é a resultante da atividade judicial, havendo autores que a tratam como interpretação jurisprudencial para fazer menção a um conjunto de decisões reiteradas em certo sentido.

Quanto aos tipos a interpretação pode ser:

a) gramatical ou literal: sendo esta aquela em que se busca o entendimento dos termos de acordo com sua literalidade. Foi o tipo mais defendido pela escola da exegese por vincular o intérprete à redação expressa do dispositivo, falando-se em interpretação ao pé da letra;

b) sistemática: quando se opta por interpretar um determinado dispositivo de acordo com sua integração junto aos demais dispositivos do sistema jurídico. Neste sentido fala-se em interpretação sistêmica de sistema maior quando se esta a combinar dispositivos do sistema civilista, por exemplo, com o sistema constitucional, e em interpretação sistêmica de sistema menor quando a combinação se dá entre dispositivos, por exemplo, do mesmo código, como quando se combina o art. 186 com o art. 927 ambos do CCB para se tomar conhecimento da cláusula geral da responsabilidade civil;

c) lógica: é o método que reclama o uso do instrumentário fornecido pela lógica, a ser aplicado na atividade interpretativa, sendo corrente o uso de adágios ou expressões comuns como “quem pode o mais pode o menos”, bem como o uso dos conceitos de proposição, silogismo, indução, dedução, etc.;

d) teleológica: é a interpretação que se volta para a descoberta da finalidade da lei e para a direção da aplicação normativa ante a evidência de várias interpretações possíveis, obrigando-se, nesse caso, que se adote a interpretação que melhor atende à finalidade legal; e

e) histórica: é a que lança mão de recursos históricos, muitas vezes para que se descubra ou a vontade do legislador ou a vontade da norma momento de sua criação.

Com relação aos efeitos, também é corrente nas doutrinas supra mencionadas a sua divisão em:

a) interpretação declaratória: entendida como aquela, cujo objetivo, único e exclusivo, é o de aclarar o sentido de um determinado termo normativo. Aqui se entende que o legislador disse exatamente o que pretendia. Segundo Carlos Maximiliano a exegese aqui é “estrita, porém não restritiva; deve dar precisamente o que o texto exprime, porém tudo o que no mesmo se compreende; nada de mais, nem de menos”12;

b) interpretação extensiva: trata-se de situação em que a atividade do intérprete seja de ampliação do conteúdo normativo para abranger situações, aparentemente não previstas. Nestes casos diz-se que o legislador disse menos do que deveria. Cumpre, entretanto não confundir a interpretação extensiva com analogia. Norberto Bobbio13 estabelece precisa distinção entre ambos. Segundo o autor a analogia importa em criação de uma nova norma, ao passo que a interpretação extensiva não gera a criação de nova norma. Um simplório exemplo é capaz de demonstrar esta lição. Imagine-se que haja uma norma que proíba fumar cigarro dentro da sala de aula. Se alguém questiona sobre o fumo no anfiteatro, é sabido que anfiteatro e sala de aula são coisas diferentes, de modo que dada a semelhança que anima, tanto a sala de aula, quanto o anfiteatro, caso se venha a decidir pela aplicação da norma da sala de aula no anfiteatro se está a criar nova norma não existente, anteriormente, no âmbito dos anfiteatros. Por outro lado, quando se questiona se é possível fumar cachimbo e charuto na sala de aula, já que a proibição recaiu sobre o cigarro, caso se opte por manter a proibição anterior com base na semelhança entre cigarro, cachimbo e charuto, dado todos virem do fumo, não se estará a criar nova norma para a sala de aula, mas apenas estender a aplicação de norma já existente.

c) interpretação restritiva: neste caso a decisão do intérprete é no sentido de abrandar a extensão da norma, de restringir sua aplicação. Aqui parte-se do suposto de que o legislador disse mais do que deveria. E, neste caso, um último exemplo será capaz de ilustrar estes três tipos de interpretação quanto aos efeitos. Imagine-se a norma da relação de locação que diz que “o proprietário pode pedir a retomada do bem para uso próprio”. Ao se lançar mão da interpretação declaratória vai se interpretar o termo “proprietário” para se auferir o exato sentido de proprietário contido no Direito Civil Brasileiro. Todavia, quando se imagina que o imóvel locado possa ser objeto de usufruto duas outras questões suscitam dúvidas de aplicação deste dispositivo. O nu-proprietário poderá pedir a retomada do bem para uso próprio? E o usufrutuário poderá? Ao se analisar a primeira indagação faz-se mister o uso da interpretação restritiva, visto que o proprietário, embora não deixe de sê-lo, apresenta-se despido dos poderes de dono, razão pela qual não se lhe deve ser conferida a prerrogativa da norma citada. Por outro lado, ao se analisar a questão do usufrutário, muito embora este não seja proprietário, apresenta-se com poderes de dono, razão pela qual vai caber interpretação extensiva para ampliar o conceito de proprietário e incluir nele que não seja proprietário mas possua os poderes de dono, permitindo, destarte, ao usufrutuário a retomada do bem para uso próprio.

Dentro da noção de hermenêutica tradicional ainda se fala em métodos integrativos como analogia, costumes, princípios gerais do Direito e jurisprudência, os quais, contudo, não serão objeto de estudo mais aprofundado, dada a necessidade de brevidade do presente ensaio.

Vê-se que a hermenêutica tradicional, seja através da evolução das escolas de interpretação, seja através do uso mesmo dos métodos, se centra em torno do mesmo objeto: a norma. Desde a escola positivista o objeto da hermenêutica definiu-se em torno da norma, de modo que o que diferenciou, de uma escola para a outra, foram os métodos e a forma com que se analisou o mesmo método. Além disso, as escolas criticistas evoluíam no sentido de ampliar o conceito de normativo para além da norma legal. Mas, de qualquer forma, a discussão hermenêutica esteve atada, sempre, à norma e as formas e meios de encará-la, de modo que os métodos apresentados estiveram sempre relacionados com a interpretação da norma. Neste mister, a interpretação desenrolou-se a partir de uma perspectiva relacional entre ser que interpreta (ser humano) e objeto interpretado (norma).

  1. Modelo hermenêutico constitucional tradicional e pós-positivismo

Cogita-se, doutrinariamente, segundo conta Georg Jellinek14, que o Estado, tal qual se afigura nos dias atuais, teria nascido, ou da lenta evolução organizacional dos seres humanos, ou das teses contratualistas preconizadas por Hobbes e Rousseau.

Com o perdão da audácia, no passo que vai a atuação Estatal, pouco importa a forma de seu surgimento, já que é fato que o Estado atual já foi, em dado momento histórico, absolutista a ponto de massacrar o indivíduo, de modo que a beleza dos dias atuais centra-se no fato de que se possa falar de um Estado Constitucional de Direito.

O movimento constitucionalista foi capaz de por termo aos desvarios que eram cometidos em nome do Estado. E se não pôs termo a esses descalabros, pelo menos foi capaz de normatizar tais absurdos requerendo conseqüências jurídicas específicas. Assim é que se pode dizer que a Constitucionalização colocou em xeque a hermenêutica tradicional, fazendo surgir uma chamada hermenêutica constitucional, hoje entendida como tradicional, a qual será, em breves linhas, apresentada a seguir.

A matéria é bem sistematizada por Marcelo Novelino15, para quem a hermenêutica constitucional pode ser divida em duas etapas: a) os métodos de interpretação constitucional; e b) os postulados interpretativos.

Assim, seguindo a linha apresentada pelo renomado doutrinador apresentam-se os seguintes métodos de interpretação constitucional:

a) Método jurídico: também conhecido como método hermenêutico clássico foi capitaneado por Forsthoff, o qual entendia que a Constituição era uma lei como outra qualquer, devendo, exatamente por isso, se submeter aos métodos hermenêuticos clássicos, acima examinados.

b) Método científico-espiritual: trata-se de um método que busca o “espírito da Constituição”, entendendo-se este como os valores que informam o texto constitucional. Defendido por Rudolf Smend, este método emprega maior relevo à dimensão valorativa do texto constitucional.

c) Método tópico-problemático: trata-se de uma técnica interpretativa que parte do problema já solvido em diversas decisões judiciais e opiniões jurídicas como pareceres, por exemplo, para encontrar a melhor interpretação possível. Seu defensor foi Theodor Viehweg.

d) Método hermenêutico-concretizador: defendido por Konrad Hesse, este método partia do suposto de que a interpretação constitucional somente se dá, adequadamente, através de problemas concretos, jungindo a interpretação e aplicação no mesmo processo de concretização do direito.

e) Método normativo-estruturante: capitaneado por Friedrich Muller este método preconiza que não se deve falar em interpretação, mas em concretização da constituição. A aplicação da norma e sua interpretação se apresentam unidas, já que o autor entende a interpretação se faz através do texto normativo partindo-se, também, da realidade normativa que o texto pretende conformar.

Entre os postulados interpretativos, tem-se, entre os de mais destaque, os seguintes:

a) princípio da supremacia da constituição: determina que a Constituição Federal seja norma superior a todas as demais, devendo este fato ser tomado em consideração no momento de se interpretar as demais normas em face da Constituição Federal.

b) princípio da presunção de constitucionalidade das leis: em que pese a possibilidade dos chefes do executivo federal, estadual e municipal, em descumprirem normas que considerem inconstitucionais, a presunção relativa é no sentido de entender que todas as normas são constitucionais até pronunciamento contrário do judiciário via controle difuso ou concentrado de constitucionalidade.

c) princípio da interpretação conforme a constituição: determina que dentre a variabilidade interpretativa que cada norma possa suscitar deve-se optar pela interpretação que esteja em maior conformidade com o texto constitucional.

d) princípio da simetria constitucional: determina a simetria normativa entre Constituição Federal, Estadual e leis orgânicas municipais e do Distrito Federal. É neste sentido que se fala em normas da Constituição Federal que são tidas como de repetição obrigatória.

e) princípio da unidade da constituição: determina que a interpretação da constituição deve ocorrer no sentido de lhe preservar a unidade de sentido, repelindo-se, com isso contradições.

Claro que ainda há muitos outros princípios de hermenêutica constitucional que poderiam ser aqui citados, todavia, a abordagem que, até o momento se fez foi para mostrar que mesmo a nova hermenêutica surgida, voltada para o tratamento das normas constitucionais e das demais normas em face da Constituição, nada inovou. Optou-se, novamente, por um tratamento tradicionalista da atividade hermenêutica voltada para procedimentos de análise normativa. Todavia, neste momento optou-se por partir de uma noção base de Constituição no ápice do triângulo hierárquico-normativo.

Entretanto, a hermenêutica constitucional não parou por aqui. A partir do momento em que afirmou a normatividade dos princípios e uma vez criada a noção de eficácia de Direitos Fundamentais a atividade de interpretação da Constituição teve de ser revista de modo que a hermenêutica constitucional tradicional, fortemente embasada nas noções de lógica jurídica, cedeu espaço a uma “moderna” hermenêutica constitucional, cuja base de ação é a teoria da argumentação.

Claro que, mais uma vez se perdeu a oportunidade de inovação verdadeira na atividade interpretativa, já que, conforme se verá, a nova hermenêutica constitucional não foi capaz de romper com a barreira do tratamento procedimental interpretativo das normas e suas inter-relações. Perdeu-se a chance de mudar o foco interpretativo, mantendo-se a atividade hermenêutica como um conjunto de procedimentos a ser aplicados para o descobrimento de um conhecimento aprisionado em uma norma jurídica.

Esta nova hermenêutica constitucional foi bem sistematizada por Luis Roberto Barroso16. A nova interpretação constitucional apresenta traços específicos. Em primeiro lugar, a noção de norma fechada mostra-se superada pela técnica legislativa da chamada cláusula geral, caracterizando-se esta como um tipo normativo aberto que demanda atividade criativa do magistrado perante a situação fática, responsável por completar o tipo normativo previsto.

Conforme leciona o autor

A norma em abstrato não contém integralmente os elementos de sua aplicação. Ao lidar com locuções como ordem pública, interesse social e boa fé, dentre outras, o intérprete precisa fazer a valoração de fatores objetivos e subjetivos presentes na realidade fática, de modo a definir o sentido e o alcance da norma. 17

 

Outro fator característico da nova hermenêutica foi o reconhecimento da normatividade dos princípios, destacando-se, esse caráter de normatividade, como um dos símbolos específicos do pós-positivismo ou neoconstitucionalismo18.

Também importante, foi o reconhecimento da colisão de normas constitucionais, inclusive normas principiológicas, exigindo o uso da chamada técnica da ponderação. Reconhece-se, neste momento, a falência das técnicas tradicionais para solução de conflitos normativos (critérios da cronologia, hierarquia e especialidade), quando o conflito ocorre entre normas constitucionais originárias.

É nesse sentido que se fala em ponderação de normas, bens ou valores. Segundo Barroso

[…]a ponderação de normas, bens ou valores é a técnica a ser utilizada pelo intérprete, por via da qual ele (i) fará concessões recíprocas, procurando preservar o máximo possível de cada um dos interesses em disputa ou, no limite, (ii) procederá à escolha do direito que irá prevalecer, em concreto, por realizar mais adequadamente a vontade constitucional. Conceito-chave na matéria é o princípio instrumental da razoabilidade. 19

Por fim, fala-se na técnica da argumentação como mecanismo usado pelos magistrados a fim de legitimar a sua atividade criativa dentro do sistema jurídico. Como sistematiza Barroso20 o intérprete deve agir em três vias para legitimar sua atividade criadora ante a abertura das cláusulas gerais: a) usar de recondução ao sistema jurídico como um todo valendo-se de norma constitucional ou legal que fundamente sua atividade criadora; b) decidir com pretensão de universalidade, evitando-se casuísmo que põe em risco a segurança jurídica; c) atentar para as conseqüências que sua decisão acarretará no mundo físico.

 

  1. O caminho da hermenêutica filosófica

O presente ensaio partiu do suposto da afirmação de uma primeira hermenêutica, cujas bases mais sólidas teriam nascido no positivismo jurídico para, após, com as escolas criticistas, sofrer mutações. Pode-se dizer, de modo geral, que todas as mudanças e criações hermenêuticas do período positivista foram aqui concebidas como hermenêutica tradicional.

Todavia, o movimento da constitucionalização dos Estados fez com que se evoluísse da hermenêutica tradicional para uma hermenêutica constitucional, o que acarretou aquilo que aqui se cunho tratar como primeira evolução hermenêutica.

Viu-se, entretanto, que mesmo a hermenêutica constitucional não foi capaz de dar o devido tratamento a tantas outras questões que, em seguida, foram surgindo com o pós-positivismo, forçando, então, uma segunda evolução da hermenêutica. Partiu-se, portanto, da hermenêutica constitucional, que agora se cunhara como hermenêutica constitucional tradicional, para se chegar à nova hermenêutica constitucional embasada na teoria da argumentação. A esta segunda mutação vai se chamar segunda evolução hermenêutica.

Contudo, o que se percebeu é que já se passou por três hermenêuticas (tradicional, constitucional tradicional, constitucional pós-positivista) e o foco ainda tem se mantido em como retirar o conhecimento contido em uma norma jurídica. Mudaram-se, por vezes, as estratégias de ação. Mudou-se o conceito de norma jurídica, ampliando-o para bem além da simples Lei Estatal. Mas, ainda se manteve uma certa forma tradicionalista de tratamento.

Esqueceu-se de observar o agente que interpreta. Esqueceu-se que o conhecimento não se forma no texto, mas na mente de quem o acessa. É por isso que, através dos ensinamentos de Gadamer21 vai se propor uma terceira evolução hermenêutica, a qual vá superar a forma tradicional de interpretação para incluir o agente que interpreta como parte do processo hermenêutico.

As idéias que serão, a seguir, apresentadas foram todas elas retiradas de trechos da obra de Hans Georg Gadamer22.

Para o autor, a atividade hermenêutica e seu sucesso estão inteiramente ligados com a compreensão historicamente determinada do intérprete. O indivíduo efetua a leitura e formula sua compreensão envolvido pelo contexto histórico de sua concepção e criação. Valendo-se do circulo hermenêutico de Heidegger, preconiza uma certa estrutura da compreensão dizendo que a atividade interpretativa começa pela forma com que o intérprete encara o texto.

Segundo ele, o intérprete precisa adotar uma forma de interpretar que se apresente despida de pré-conceitos, de “felizes idéias” que o impedem de compreender a coisa pelo todo. O intérprete deve conceder ao texto todo o crédito que ele realmente merece, evitando conclusões precipitadas.

Para isso deve estabelecer uma diferença entre preconceitos que são válidos e os que são inválidos. Sendo que é nesse sentido que se estabelece os dois tipos de preconceitos inválidos para os quais o autor chama a atenção. Há, pois, dois tipos de preconceito: a) preconceito de autoridade; b) preconceito por precipitação.

O preconceito da autoridade consiste na total submissão do intérprete a qualquer texto que se poste diante de sua análise em razão de derivar de uma autoridade. É bastante recorrente as pessoas se curvarem completamente ao texto da bíblia, por exemplo, pelo simples fato de sua interpretação derivar de uma autoridade religiosa. Ninguém ousa questionar o que o padre, pastor, bispo, etc., diz do texto. Tudo que dizem é lei e não merece discussão. Este seria o primeiro preconceito inválido, consistindo em não submeter o texto ao olhar crítico do intérprete.

O segundo preconceito seria o da precipitação, que consistiria na escolha instantânea de tudo que é novo, em total desprezo ao que é antigo sem, contudo, submeter o novo ao mesmo olhar crítico que o intérprete deve possuir. Além do mais, a escolha pelo novo, de forma tão precipitada, faz crer que tudo o que é antigo não vale ou não tem qualquer traço de verdade. E precisamente, nesta negação absoluta do antigo e atribuição de toda a verdade ao novo que conduz ao erro interpretativo.

O autor fala ainda em manter certa eqüidistância do texto para que não se pretenda impor ao texto a verdade do intérprete, mas pra que se permita ao texto dizer sua verdade. É então que o autor chama a atenção para a dificuldade ante a qual se encontra o intérprete: conseguir discernir quais preconceitos devem ser considerados válidos na atividade hermenêutica e quais não o devem.

Entende, ainda, que a distância temporal é algo salutar na atividade hermenêutica. Considera-se distância temporal o período de tempo que ocorre entre a concepção de um texto e a atividade interpretativa. Quanto mais o tempo passa e quanto mais se interpreta um texto, mais se descortinam situações ali previstas. Enganos vão cedendo espaço para a revelação da verdade. A distância é, pois, salutar, na medida em que permite uma evolução da compreensão de um texto.

O princípio da história efeitual é tido como a necessidade de consciência que os efeitos a história produzem no intérprete em sua atividade diuturna de compreensão daquilo que passa a conhecer. Para tanto fala em horizontes. Cada ser humano possui seu horizonte que, quando colocado em contato com outros deve abrir-se e permitir a interpenetração de conhecimentos, para que ao fim deste procedimento possa se ter aprendido mais do que se sabia antes. Esta mesma relação de horizontes pode se dar entre o horizonte histórico e presente, visto que o horizonte do presente sempre tem mais do passado do que se pode perceber.

Quando uma pessoa se coloca na posição da outra passa a compreendê-la mais fielmente. Basta imaginar a pessoa que tem a possibilidade de ocupar duas posições contrárias simultaneamente. Imagine-se, portanto, o professor que é aluno ou o aluno que também é professor. Cada vez que se coloca em uma dessas posições passa a entender melhor os demais agentes que ocupam tais postos.

Esta comunicação de compeensão por substituição é que Gadamer chamou de interpenetração de horizontes. E isto ocorre com muito mais freqüência do que se pode crer com relação ao horizonte do passado.

Para ele, a atividade hermenêutica é concretizante, de modo que para se falar em compreensão há de se estar diante de uma situação prática. É por isso que a aplicação e interpretação incorporam-se num todo maior que é a compreensão. Não se compreende adequadamente nada sem que se esteja a aplicar aquilo que se está a tentar compreender. A compreensão somente se faz por completo quando se conjuga a busca do sentido com a aplicação. Somente assim é que o sentido verdadeiramente se revela. Isto gera uma noção de que o conhecimento está em constante construção.

É nesse sentido que situa a atualidade hermenêutica de Aristóteles, pois o saber que envolve a compreensão perpassando-se por outro ser humano, e não pelo objeto (norma) como a hermenêutica de até então tem procedido, equipara-se ao saber ético de Aristóteles, ao saber-se. Até se poderia dizer que a hermenêutica tradicional se comporta de forma parecida com a Tekne de Aristóteles, enquanto a hermenêutica filosófica estaria no campo do saber ético.

Para Gadamer, a hermenêutica enquanto arte da compreensão é uma só e serve a todos os textos igualmente e indistintamente. Não se haveria que falar em hermenêutica jurídica, bíblica, etc. Pois a atividade hermenêutica é compreensão, qualquer que seja o texto compulsado.

É, pois, partindo desta concepção que fala em hermenêutica enquanto dialética platônica, para significar uma construção da compreensão onde a teoria da argumentação na visa conceder a um dos interlocutores do discurso a vitória na discussão. Muito ao contrário, a teoria da argumentação deve propiciar aos interlocutores o aproveitamento do acerto do argumento de cada qual para que ao fim a compreensão tenha se construído da melhor forma possível. E essa necessidade de dar crédito à posição do outro, permitindo sua argumentação contrária, muitas vezes, pela simples abertura, principalmente quando não haja a obrigação de abertura ao outro, que vai criar a noção de humildade no conhecimento.

Ao fim o que importará é a compreensão, e não a forma com que isso foi alcançado. A arte do discurso e da dialética não foi cunhada para criar vencedores na argumentação, mas para propiciar a compreensão.

 

 

  1. Considerações finais

Viu-se que a atividade hermenêutica esteve sempre centrada nas formas com que se encara um objeto: a norma. Muito se evoluiu neste sentido, de modo que vários mecanismos de abordagem do contexto normativo foram criados. Fala-se em interpretação quanto a origem, quanto aos efeitos e quanto aos tipos.

Fala-se, ainda, em colisão de normas constitucionais superável pela técnica da ponderação. Mas, por mais que se tenha caminhado se está a trabalhar a mesma coisa: como se vai extrair o sentido da norma.

Até então pouco se atenta para a influência que aquele que se dedica à extração de sentido da norma exerce nessa tão importante atividade de compreensão. Há de se perceber que, mesmo antes, de se encarar a norma como objeto da hermenêutica, há de se observar o ser que interpreta, também, como objeto da atividade hermenêutica. Não se quer com isso romper com a hermenêutica tradicional num sentido amplo (formas de abordagem da norma).

O que se pretende é ampliar a noção hermenêutica para que a atividade inicie, primeiro, no intérprete e dep;ois passe ao texto. Todos os métodos da hermenêutica tradicional são válidos, mas de pouca utilidade serão se o próprio intérprete não tomar uma conduta consciente daquilo que está fazendo para, verdadeiramente, chegar à compreensão de um texto.

Não se quer, pois, com isso romper a dialética tradicional de ser que interpreta x objeto interpretado (norma), mas ampliar esta noção para se perceber que em primeiro lugar há uma interação ser que interpreta x ser interpretado, para tão somente, em segundo plano, se falar em objeto interpretado enquanto norma.

 

  1. Referências bibliográficas

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JELLINEK, Georg. Teoria General Del Estado. México: FCE, 2000

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2003

NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. São Paulo: Método, 2008

NUNES, Rizzatto. Manual de Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Saraiva, 2002

REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 2003

1 Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, Advogado civilista, professor universitário na Faculdade Pitágoras e no Centro Universitário do Triângulo – Unitri, em ambas na cadeira de Direito Civil e Direito do Trabalho, Especialista em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, Membro do Conselho Editorial da Revista Jurídica da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia e da Universidade de Patos de Minas (UNIPAM) e Mestrando em Direito Público, cuja linha de pesquisa é Direitos Fundamentais, também pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia.

2 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. São Paulo: Saraiva, 2005, passim.

3 Ibid., passim

4 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. São Paulo: Saraiva, 2005, passim

5 Ibid., passim

6 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. São Paulo: Saraiva, 2005, passim

7 Ibid., passim

8 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2003, passim

9 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 2003, passim

10 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. São Paulo: Saraiva, 2005, passim

11 NUNES, Rizzatto. Manual de Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Saraiva, 2002, passim

12 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 145

13 BOBBIO, Norberto. Teoria Geral do Ordenamento Jurídico. São Paulo: Ícone, 1995, p. 97

14 JELLINEK, Georg. Teoria General Del Estado. México: FCE, 2000, p. 197-263

15 NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. São Paulo: Método, 2008, p. 69-79

16 BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 268-341

17 Ibid.

18 Ibid.

19 BARROSO…

20

21 GADAMER, Hans Georg. Verdade e Método. Petrópolis: Vozes, 1999.

22 Ibid., p. 400-550

Marcio Rezende

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