A responsabilidade objetiva do empregador nos acidentes do trabalho a partir da constitucionalização do direito civil

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RESUMO: A evolução do conceito de Estado (do Liberal ao Bem Estar Social) trouxe profundas reformulações no papel desempenhado pelas Constituições e, principalmente, por alguns institutos de Direito Civil. A constitucionalização do Direito Civil é um fenômeno jurídico que marca um novo modelo ao intérprete e aplicador do Direito. O ser humano passa a ser o centro de todo o ordenamento jurídico. Toda a norma infraconstitucional deve ser interpretada à luz dos valores fundamentais da República. O tema atinente à responsabilidade civil em casos de acidente não foge a esta temática. A doutrina da responsabilidade objetiva é a que melhor se aproxima deste modelo atual. É o que será demonstrado neste trabalho.

Palavras chave: constitucionalização; direito civil; responsabilidade objetiva; acidente do trabalho.

O movimento jurídico que marca o período pós-Revolução Francesa é a chamada era da codificação, como forma de reação à postura adotada pelos Estados Absolutistas, cujo poder, diga-se, ilimitado sobre os súditos, estava concentrado nas mãos dos reis, uma vez que a sua concessão possuía origem divida (os reis eram considerados sucessores naturais de Deus, motivo pelo qual o poder dos reis também era considerado divido).

No entanto, como observa Maurice Hariou2, já nesta época surgia o entendimento de que era necessário limitar o Poder de atuação do Estado através das regras de direito. Havia, como exposto por Jellinek3, um dilema na relação envolvendo o Direito e o Estado que consistia, basicamente, na obrigação deste último em respeitar as normas por ele próprio criadas, já quem, em última análise, a vontade do Estado é, no fundo, a vontade humana daqueles que dirigiam o Estado. Discutia-se, inclusive, se a limitação do Estado ao Direito não afrontaria a soberania daquele ente que, neste momento, era considerada absoluta.

A solução encontrada para este dilema repousaria na concepção de que Poder e Direito não podem ser considerados de forma absolutamente separados, como até então era feito. O Poder é o criador do Direito, uma vez que as regras de direito positivo emanavam do Poder. Além disso, estas regras, para que fossem aplicadas na sociedade deveriam ser sancionadas pelo Poder. Portanto, o Poder estaria, apenas, criando normas, por ele mesmo editadas, limitando o seu próprio campo de atuação, o que não implica em violação à soberania. Surge, com isso, o chamado Estado de Direito, ou melhor, a submissão do Estado ao Direito.

O Estado, portanto, não podia apenas criar as leis; deveria, também, a elas se submeter. As nações, então, resolvem reagir, procurando restaurar no Estado uma ordem jurídica e política baseada nas crenças morais, que não poderia, em hipótese alguma, ser derrogada pelos atos praticados por aqueles que detinham o poder. Os Estados começam a experimentar a necessidade de limitar o poder político não somente por regras gerais, mas também por regras especiais. Este movimento pressupõe a ideia da noção fundamental da constituição de um Estado, concebida, assim, como um estatuto permanente. Surgem, com isso, as primeiras constituições escritas, que se revelam como a expressão da crença de uma ordem do Estado, distinto da atividade governamental, superior a esta e que, em regra, não se deveria modificar.

A finalidade principal do Estado Liberal de Direito era impedir a arbitrariedade (abusos de poder) do Estado contra os indivíduos e a sociedade civil. Os direitos fundamentais e a separação dos poderes se apresentavam como mecanismos constitucionais adequados para a limitação ao poder estatal. Neste diapasão, Karl Larenz4 afirma que os direitos de liberdade foram inicialmente concebidos como simples meios de defesa do indivíduo frente ao poder excessivo do Estado, na luta contra o absolutismo dos príncipes. As pessoas, enquanto membros de uma comunidade política, encontravam-se sujeitas a um poder limitado, razão pela qual o Estado não poderia intervir na relação entre eles; a atuação do Estado, no particular, teria uma conotação meramente negativa. Como expõe Daniel Sarmento5,

na lógica do Estado Liberal, a separação entre Estado e sociedade traduzia-se em garantia de liberdade individual. O Estado deveria reduzir ao mínimo a sua ação, para que a sociedade pudesse se desenvolver de forma harmoniosa. Entendia-se, então, que a sociedade e Estado eram dois universos distintos, regidos por lógicas próprias e incomunicáveis, aos quais corresponderiam, reciprocamente, os domínios do Direito Público e do Direito Privado. No âmbito do Direito Público, vigoravam os direitos fundamentais, erigindo rígidos limites à atuação estatal, com o fito de proteção do indivíduo, enquanto no plano do Direito Privado, que disciplinava relações entre sujeitos formalmente iguais, o princípio fundamental era o da autonomia da vontade.

Como se vê, a importância do direito de liberdade, inclusive, encontrava sua inspiração dentro das primeiras codificações e declarações de direitos6. Por isso, pode-se dizer que, a par do nascimento das primeiras constituições escritas, que tratavam, basicamente, dos limites de atuação do Estado frente aos seres humanos, surgem, também, os códigos (entre os quais merece destaque o Código Civil). Segundo Paulo Luiz Lôbo Netto7,

O constitucionalismo e a codificação (especialmente os códigos civis) são contemporâneos do advento do Estado Liberal e da afirmação do individualismo jurídico. Cada um cumpriu seu papel: um, o de limitar profundamente o Estado e o poder político (Constituição), a outra, o de assegurar o mais amplo espaço de autonomia aos indivíduos, nomeadamente no campo econômico (codificação).

A dicotomia entre direito privado e direito público8 era a marca deste período. O Código Civil regulamentava o direito privado; o poder público não detinha a possibilidade de interferir nas relações entre os particulares; a liberdade do homem era a viga mestre que reinava na relação entre os seres humanos em sociedade; todos eram livres, portanto, para entabular qualquer tipo de pacto, por força do princípio da autonomia da vontade, sem qualquer espécie de interferência do Estado. E, como afirma Orlando Gomes, “até o desencadeamento da primeira guerra mundial, em 1914, o Código Civil era um texto único no qual estavam reunidas e sistematizadas as regras gerais do direito comum na órbita privada9”.

Veja, portanto, que o direito civil (e, como consequência, o Código Civil), no período da história iniciado logo após a Revolução Francesa, era considerado o centro de todo o ordenamento jurídico, uma vez que regulamentava, de forma geral, as condutas que deveriam ser respeitadas pelos indivíduos em sociedade. Assim, em conjunto com o paradigma da liberdade, o pensamento dominante era no sentido de que os homens, por natureza, eram todos iguais e esta igualdade trazia o equilíbrio necessário na celebração de um contrato, razão pela qual prevalecia o princípio da ampla autonomia da vontade dos contrantes. O sistema da codificação era concentrado na pessoa do indivíduo. O Direito Privado era o regime que garantia o poder da vontade do sujeito. O indivíduo era tido como centro do sistema privado, podendo, se assim fosse a sua vontade, restringir sua própria liberdade através de um pacto.

A codificação do Direito Privado representava, portanto, a constituição da vida privada, e o Direito Civil, identificado com o Código, regulava todas as questões afetas aos indivíduos, desde seu nascimento até sua morte. É de se frisar, por oportuno, que os códigos que surgiram na Europa, a partir do final do século XVIII, possuíam, conforme ensina Menezes10, as seguintes características gerais:

(i) sob o ponto de vista formal, eram sistemáticos, ou seja, ordenados de modo irrepreensivelmente organizado; (ii) partiam da existência de uma ordem jurídica que deveria ser cientificamente reformada, representando um sistema fechado, logicamente concatenado e completo, cujas normas pretendiam viger eternamente; (iii) universalidade, de sorte que os Códigos não mais deveriam conhecer fronteiras, podendo ser aplicados livremente como Direito subsidiário de um ou vários países, daí se explicando a exportação dos Códigos franceses e, mais tarde, do Código Civil alemão.

A postura não intervencionista do Estado, segundo Habermans11, protegia os espaços de ação individual, na medida em que fundamentavam pretensões, reclamáveis judicialmente, apenas em face de eventuais intervenções do Estado (que eram, então, consideradas ilícitas) na liberdade, na vida e na sociedade. A autonomia privada era garantida nessa esfera e colocada sob a proteção do direito. A igualdade formal entre as pessoas, nas relações privadas, era toda a base do ordenamento jurídico existente. Ocorre que

o princípio da igualdade perante a lei consistiria na simples criação de um espaço neutro, onde as virtudes e as capacidades dos indivíduos livremente se poderiam desenvolver; os privilégios, em sentido inverso, representavam nesta perspectiva a criação pelo homem de espaços e de zonas delimitadas, susceptíveis de criarem desigualdades artificiais e nessa medida intoleráveis. Em suma, segundo esse conceito de igualdade que veio a dar sustentação jurídica ao Estado liberal burguês, a lei deve ser igual para todos, sem distinções de qualquer espécie12.

Como expõe Segadas Vianna13, se o liberalismo, por si só, não era gerador de desigualdade, é certo que graças à sua sombra haviam sido cometidos os maiores abusos dos fortes contra os fracos, com a anulação da liberdade e o Estado passara, sob o domínio capitalista, a ser um instrumento de opressão contra os seres menos favorecidos. Com o avanço da sociedade, a industrialização e o início do movimento capitalista, a exploração do homem passou-se a se tornar uma realidade absolutamente marcante. A visão preponderante desta época, em relação ao Estado, colaborava com a desigualdade existente no seio da sociedade, já que “em nome da liberdade, que não podia sofrer restrições sob o pretexto da autonomia contratual, abstinha-se, entretanto, o legislador de tomar medidas para garantir uma igualdade jurídica que desaparecia diante da desigualdade econômica14”. E, como acentua Othon Azevedo Lopes15

Não é exagero afirmar que, a partir de então, consolidou-se uma nova concepção de Direito e de Estado, com a introdução de novos institutos e conceitos, tais como Constituição e divisão de poderes, e com a revisão das antigas formulações jurídicas e políticas para que estas se adaptassem à nova ideia de dignidade da pessoa humana. A sociedade e os institutos jurídicos anteriores estavam impregnados por uma concepção estamental de sociedade e por privilégio de origem divina. Em função da consolidação da ideia de dignidade da pessoa humana e seus desdobramentos, formou-se uma nova ordem para possibilitar a implantação da liberdade e da igualdade.

Neste momento, a figura do ser humano deixa de ser analisada de forma isolada no mundo, para ser vista como membro de uma sociedade que deveria ser mais justa, igualitária e, acima de tudo, fraterna. O Estado, nas palavras de Segadas Vianna16, deveria tornar-se instrumento da justiça – da justiça e da sociedade –, intervindo como representante dos interesses coletivos para conter e reprimir os interesses individuais privados e manter o equilíbrio entre os diversos fatores da produção, e, portanto, uma melhor repartição das riquezas, base do bem-estar social.

Os primeiros passos para a desconstrução do Estado Liberal e surgimento do Estado Social são percorridos pela Igreja Católica. Como observa, com propriedade, José Augusto Rodrigues Pinto17:

A Igreja Católica Romana jamais deixou a sua vocação de nascença para ser um poder de ordem universal, ora paralelo, ora dissociado e, às vezes, amalgamado com o Estado. Observadas as variações de intensidade de influência, no tempo e no espaço, o fato é que nunca deixou de existir e repercutir, até sobre grupos participantes de outras crenças ou religiões. Logicamente, fiel à sua vocação e estrutura do poder, a Igreja, do mesmo modo que o Estado, não conseguiria manter-se impermeável aos impactos das transformações econômicas e sociais forçadas pela nova realidade da Revolução Industrial. A participação eclesiástica nesse processo assemelhou-se à estatal aos novos fatos, isto é, não foi imediata. Compreende-se mesmo que tenha guardado a dilação necessária para absorver e analisar os efeitos do fenômeno socioeconômico em marcha à sua volta. Embora não se possa dizer que os eclesiásticos tivessem ficado, antes disso, inteiramente alheios a outras modificações processadas com notável intensidade no começo do Século XIX, somente em 1891, como instituição, pela voz de seu chefe universal, a Igreja iniciou uma participação efetiva e, daí por diante, continuada, no acompanhamento das alterações forçadas pela irreversível sociedade industrial. Sua entrada em cena foi tão vigorosa que, hoje, é indicada como um dos marcos da evolução universal do Direito do Trabalho. Seu veículo foi a encíclica Rerum Novarum do Papa Leão XIII, centrada na questão social, em seu todo, e nos grandes problemas despertados pela necessidade de dignificar a condição humana do trabalhador, em particular.

Começa a surgir, então, a concepção do conceito de igualdade substancial ou material18, em contraposição à mera igualdade formal. No Estado do Bem Estar Social, é realizada a substituição da igualdade formal pela igualdade jurídica, como regra de direito, impondo o interesse geral sobre o particular sem que, no entanto, seja anulada a pessoa do indivíduo.

O princípio da autonomia da vontade, no campo dos contratos, passa a sofrer restrições, diretamente ligados à pessoa do ser humano. É dentro de todo este contexto, que surge a chamada constitucionalização do direito civil que, em linhas gerais, pode ser entendida como sendo o processo de elevação, ao plano constitucional, dos princípios fundamentais que regiam o direito civil, observando, no entanto, o respeito inconteste à pessoa humana, centro de todo o sistema jurídico.

É a partir da constitucionalização do direito civil que surge uma nova tábua axiológica, alterando o fundamento de validade dos tradicionais institutos de Direito Civil, passando a adentrar em assuntos que, inicialmente, eram relegados a outros códigos. No Brasil, como assinala Paulo Luiz Lôbo Netto,

na atualidade, não se cuida de buscar a demarcação dos espaços distintos e até contrapostos. Antes, havia a disjunção; hoje, a unidade hermenêutica, tendo a Constituição Federal como ápice conformador da elaboração e aplicação. A mudança de atitude é substancial: deve o jurista interpretar o Código Civil segundo a Constituição Federal e não a Constituição Federal segundo o Código Civil, como ocorria com frequência (e ainda ocorre)19.

A dignidade da pessoa humana tornou-se, juntamente com a cidadania e a igualdade substancial, o fundamento da República, fazendo com que os valores inerentes à pessoa humana sejam elevados ao vértice do ordenamento jurídico. Estes princípios, diga-se de passagem, estão expressamente abarcados pela nossa Constituição Federal de 1988, conforme disposição contida no artigo 1º. E, como ressalta Gustavo Binenbojm20, a grande inovação das Constituições da modernidade (e a brasileira, portanto, é uma delas) consiste no fato de que, permeadas pelos ideias humanistas, posicionam o homem no epicentro do ordenamento jurídico, verdadeiro fim em si mesmo, a partir do qual se irradia um farto elenco de direitos fundamentais. Tais direitos tem assento, sobretudo, nas ideias de dignidade da pessoa humana e de Estado democrático de direito, servindo, concomitantemente, à legitimação e limitação do poder estatal.

Com a constitucionalização do direito civil, as relações entre particulares, que, antigamente, ficavam restritas ao âmbito da chamada esfera privada (diretamente ligada à concepção da ampla liberdade de contratar como decorrência do princípio da autonomia da vontade), passam, obrigatoriamente, a ser revisitadas e funcionalizadas de acordo com a Constituição Federal. Como afirma, com propriedade, Pietro Perlingieri, “a concepção exclusivamente patrimonialista das relações privadas, fundada sobre a distinção entre interesses de natureza patrimonial e de natureza existencial, não responde aos valores inspiradores do ordenamento jurídico vigente21”.

É possível dizer, portanto, que nos dias atuais, demanda-se do intérprete e aplicador do direito e, em especial, dos denominados civilistas, uma profunda reformulação dogmática que implique no abandono da ideia de que o texto constitucional não passaria de uma carta de boas intenções ou, ainda, de um documento com conotação meramente política.

O Direito Civil, hoje, sujeita-se aos valores, princípios e normas presentes no texto constitucional (produto dos avanços políticos-sociais bem mais recentes que a experiência secular do civilismo), exigindo dos operadores do direito o manejo das categorias fundamentais da Constituição, sem as quais o próprio o Direito Civil perde sentido e aplicabilidade. Como afirma Menezes22, atualmente,

as Cartas Constitucionais cumprem o relevante papel de apresentar a nova ordem de valores que refletem as aspirações sociais e que, portanto, devem nortear a interpretação dos institutos jurídicos, mesmo os mais tradicionais. O Direito Civil passa a ser entendido como sistema regulador dos interesses do homem enquanto ser social e não mais do indivíduo egocêntrico tutelado nas codificações liberais. O foco deixa de ser o patrimônio, que passa a ser visto como meio do desenvolvimento da pessoa humana e não mais como fim a ser tutelado.

E, não há dúvidas que a constitucionalização do direito civil traz profundas reflexões no campo do direito do trabalho, ou, mais precisamente, no âmbito dos contratos de emprego. O Direito do Trabalho sempre foi considerado eminentemente privado, uma vez que a base da relação envolvendo o empregado e o empregador é o contrato. Porém, existe uma vasta gama de normas que são consideradas de ordem pública, cujo principal escopo é proteger a figura do trabalhador.

A autonomia da vontade, nos contratos de emprego, cede espaço para o respeito à pessoa humana do trabalhador. No Direito do Trabalho, a igualidade material possui um campo concreto de atuação. Em virtude da desigualdade de fato existente na relação entre trabalhador e empregador, cria-se, através das normas que regulamentam este pacto, uma desigualdade jurídica, como forma de trazer o equilíbrio necessário a esta relação.

No Direito do Trabalho, a contraposição entre normas de direito público e normas de direito privado não deve possuir relevante significado, na esteira dos ensinamentos de Perlingieri23, já que a proteção à figura do trabalhador é apresentada, em relação ao ordenamento jurídico, como algo a ser globalmente considerada, diante da proteção constitucional conferida ao ser humano (artigo 1º, incisos III e IV da CF/88).

A tutela da pessoa humana, seja no Direito Civil, seja no Direito do Trabalho, não pode ser apresentada de forma fracionada, ou seja, sem correlação com outras situações, de fato ou de direito, porque deve ser encarada, nas palavras de Perlingieri24, como sendo “um problema unitário, dado seu fundamento representado pela unidade do valor da pessoa”, já que a personalidade “não é um direito, mas sim um valor (o valor fundamental do ordenamento) e está na base de uma séria aberta de situações existenciais, nas quais se traduz a sua incessantemente exigência mutável de tutela25

Nesta esteira de raciocínio, a constitucionalização do Direito Civil traz alguns importantes reflexos no campo do Direito do Trabalho, que, diante dos limites propostos no presente estudo, merece especial destaque a proteção conferida à saúde do trabalhador, notadamente o tema afeto à responsabilidade civil do empregador nos casos de acidente do trabalhou (quando o objeto social, por si, implique no reconhecimento de riscos à terceiros) e/ou doença ocupacional. E, sobre o assunto convém recordar, nas precisas palavras de Perlingieri26 que:

A saúde não pode ser protegida através da utilização de normas inspiradas por uma exclusiva lógica patrimonial, nem sua tutela pode se exaurir em um critério ou em um corretivo do juízo de harmonização entre exigências proprietárias e aquelas de produção. Não há dúvidas de que a função social da propriedade e a utilidade social da empresa no ordenamento vigente assumiram conteúdos solidaristas e personalistas. Propriedade e empresa não são certamente institutos nos quais a pessoa assume o papel de interesse diretamente protegido; são apenas meios indiretos de realização de tal interesse.

A visão tradicionalista a respeito do tema em comento (reparação civil) sempre pautou-se no sentido de que considerar, como sendo de natureza subjetiva, a responsabilidade civil da empregadora nos casos de acidente do trabalho. Sempre entendeu-se, neste contexto, que aquele que sofreu o dano possuía o encargo de comprovar a existência de 03 (três) elementos para que pudesse fazer jus à eventual reparação pretendida: a culpa do agente agressor; o nexo de causalidade entre o dano e as atividades desempenhadas; o dano.

Esta foi, durante muitos anos, a linha mestre que imperou nos julgados dos mais diversos Tribunais, notadamente os Cíveis, a quem, antigamente, competia a apreciação jurisdicional das ações que giravam em torno desta temática, por força do entendimento predominante, que vigeu até a entrada em vigor da EC 45/04. Hoje, inclusive, no âmbito da Justiça do Trabalho, este é o entendimento jurisprudencial que ainda predomina, por força de uma leitura, literal e isolada, da previsão contida no artigo 7º, inciso XXVIII, da CF.

Porém, é de se reconhecer que, nos dias atuais, vem ganhando espaço uma nova postura hermenêutica, calcada em uma interpretação que atente aos primados do valor social do trabalho e da dignidade da pessoa humana do trabalhador. É a chamada teoria da responsabilidade civil objetiva, que propõe, em linhas gerais, o reconhecimento da obrigação de reparar o prejuízo causado, pela simples presença de 02 (dois) elementos, quais sejam, o dano e seu nexo de causalidade, sem que se torne necessária a comprovação da culpa, por parte do trabalhador. Isso decorre do fato de que “a saúde tutelada no texto constitucional adquire relevância também nas relações entre os particulares27”. A responsabilidade civil da empregadora, de matriz objetiva, inclusive, já foi abarcada pelo atual Código Civil de 2002, em seu artigo 927, parágrafo único do CC, in verbis:

Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

Com efeito, a norma inscrita no inciso XXVIII do artigo 7º da CF, não pode ser interpretada de forma isolada das demais disposições que regem a matéria. Deve-se o intérprete atentar-se, também, para o disposto no caput da mesma regra constitucional, que autoriza, expressamente, a aplicação de outras regras que visem assegurar a melhoria das condições sociais do trabalhador. Isso porque, a “proteção do ambiente refere-se à tutela da qualidade da vida como direito que se relacionada diretamente com o status personae28”. Seguindo esta mesma linha de raciocínio, as lições de José Affonso Dallegrave Neto, citadas por Sebastião Geraldo de Oliveira29:

A melhor exegese sistêmica da ordem constitucional não deixa pairar dúvidas acerca da legitimidade do mencionado artigo do novo Código Civil, vez que o caput do artigo 7º da CF assegura um rol de direitos mínimos sem prejuízo de outros que visem a melhor condição social ao trabalhador.

O intérprete e aplicador do direito também deve estar atento ao fato de que a responsabilidade objetiva encontra respaldo no próprio ordenamento jurídico constitucional, consoante a previsão existente no artigo 225, parágrafo 3º da Magna Carta que estabelece o direito a todo e qualquer cidadão (e, portanto, ao trabalhador) ao ambiente ecologicamente equilibrado, além de que “as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”. Há de se ressaltar, ainda, que o conceito de meio ambiente do trabalho é, tão somente, espécie do gênero meio ambiente, sendo, portanto, plenamente aplicável à hipótese este comando constitucional.

A responsabilidade objetiva perante o Direito Ambiental está assegurada, também, na legislação infraconstitucional, conforme previsão existente no artigo 14, parágrafo 1º da Lei 6.938/81 (Lei de Proteção ao Meio Ambiente). E, conforme lecionada Cláudio Brandão30:

Se o acidente guarda um nexo de causalidade com uma lesão ao meio ambiente do trabalho na sua concepção ampla e se a responsabilidade pelo dano ambiental é de natureza objetiva, não cabe atribuição da culpa como fundamento, vindo o empregador a responder segundo aquele modelo, pois essa, repita-se, é a regra que fundamenta a reparação pelo dano ambiental, registrando-se a referência feita por Raimundo Simão de Melo no sentido de que, em regra, as lesões sofridas pelos trabalhadores em decorrência dos danos ambientes laborais normalmente são mais graves do que os prejuízos sofridos por terceiros pelos danos ao meio ambiente natural, por exemplo.

O que se verifica, portanto, é a existência de uma série de normas, constitucionais e infraconstitucionais, que asseguram ao trabalhador a reparação do dano a ele causado, nos casos de acidente do trabalho e/ou doença ocupacional, sem que seja necessária a ampla (e dificultosa) comprovação da alegada culpa. A interpretação isolada da disposição contida no artigo 7º, inciso XXVIII da CF, não se amolda ao conceito atual de sistema, como um conjunto de normas e valores expressamente reconhecidos pelo legislador constitucional.

Esta é uma ideia que deve começar a prevalecer, quando o Poder Judiciário se deparar com trabalhadores vítimas de infortúnios ocorridos durante os períodos em que estavam trabalhando. A progressiva e geral afirmação de uma tutela preventiva do interesse fundamental à saúde, na devida coerência com a centralidade da tutela da pessoa humana, induz a mais uma moderna e ampla leitura da função estatal de garantia e de segurança dos cidadãos trabalhadores31. E, a responsabilidade objetiva, tal como preconizada no artigo 927, parágrafo único, do CC abarca, exatamente, este compromisso ético e social.

Com isso, concluímos que a antiga teoria da responsabilidade civil subjetiva nos casos de acidente do trabalho e/ou doença ocupacional, tal como, à primeira vista, parece estar expressa no artigo 7º, inciso XXVIII da CF/88, na realidade, está em descompasso com a interpretação sistemática das normas constitucionais e infraconstitucionais que tratam deste assunto, alicerçadas no princípio da dignidade da pessoa humana, assegurando ao trabalhador o direito de ser indenizado pelo dano sofrido, quando correlacionado com as atividades exercidas junto à sua empregadora, sem necessidade de comprovação de culpa. Este é, em nossa visão, o pensamento que melhor se adequa à constitucionalização do Direito Civil e, principalmente, ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Competirá ao empregador, neste diapasão, comprovar que todas as regras de medicina e segurança do trabalhador foram efetivamente respeitadas, ou, ainda, demonstrar as hipóteses que excluem a responsabilidade civil (tais como, caso fortuito, força maior, culpa exclusiva da vítima ou fato praticado por terceiro) para que possa, se for o caso, isentar-se de qualquer ônus em relação ao dano sofrido pela vítima do infortúnio.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

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PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. São Paulo: Renovar, 2008.

2 HARIOU, Maurice. Principios de Derecho Público y Constitucional. Granada: Comares. 2003, p. 28/50.

3 JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado. México: FCE, 2000, p. 197/233.

4 LARENZ, Karl. Derecho justo: Fundamentos da etica juridica. Madri: Civitas. 1991, p. 61.

5 SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2008, p. 13.

6 Segundo CARL SCHMITT, a primeira declaração de direitos foi emitida pelo Estado da Virgínia, nos EUA, em 1776, dispondo que os principais direitos fundamentais eram a liberdade, propriedade privada, seguridade, direito de resistência e liberdades de consciência e religião; a Declaração Francesa de 1789, proclamava como direitos fundamentais a liberdade, a propriedade, a seguridade e o direito de resistência, porém, não consagrava a liberdade de religião nem a liberdade de associação; na Alemanha, em Dezembro de 1848, a Assembleia Nacional de Frankfurt proclamou uma série de direitos fundamentais do povo alemão, entre elas a liberdade de residência, igualidade perante a lei, liberdade da pessoa, da crença e da consciência. (SCMHITT, Carl. Teoría de la Constitución. Madri: Alianza Editorial, 2001, p. 164/185).

7 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do Direito Civil. Disponível em <http://jus.uol.com.br/revista/texto/507/constitucionalizacao-do-direito-civil>. Acessado em 11.01.2011.

8 Por Direito Público entende-se o conjunto de normas editadas pelo Estado para a proteção de interesses gerais, podendo, ainda, apenas impor limitações aos indivíduos, quando o escopo da norma estava relacionada à proteção destes próprios indivíduos frente ao Estado.

9 GOMES, Orlando. A agonia do Direito Civil. In Revista de Direito Comparado Luso-Brasileiro, São Paulo: Forense, ano IV, 1985, p. 1.

10 MENEZES, Maurício Moreira Mendonça de. Constitucionalização do Direito Civil. Disponível em <http://www.bocater.com.br/artigos/mmm_const_dir_civ.pdf.>. Acessado em 11.01.2011.

11 HABERMANS, Jürgen. Direito e Democracia: entre a facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 116/117.

12 GOMES. Joaquim B. Barbosa. O debate constitucional sobre as ações afirmativas. Disponível em: http://www.lpp-uerj.net/olped/documentos/ppcor/0049.pdf. Acessado em 29.06.2010.

13 SUSSEKIND, Arnaldo; MARANHÃO, Délio; VIANNA, Segadas; LIMA TEIXEIRA, João de. Instituições de Direito do Trabalho. São Paulo: LTR, 2000, p. 36.

14 SUSSEKIND, Arnaldo; MARANHÃO, Délio; VIANNA, Segadas; LIMA TEIXEIRA, João de. Instituições de Direito do Trabalho. São Paulo: LTR, 2000, p. 37.

15 LOPES, Othon de Azevedo. A dignidade da pessoa humana como princípio jurídico fundamental. In: Estudos de Direito Público: Direitos Fundamentais e Estado Democrático de Direito. Porto Alegre: Síntese, 2003, p. 197/198.

16 SUSSEKIND, Arnaldo; MARANHÃO, Délio; VIANNA, Segadas; LIMA TEIXEIRA, João de. Instituições de Direito do Trabalho. São Paulo: LTR, 2000, p. 37.

17 PINTO, José Augusto Rodrigues. Tratado de direito material do trabalho. São Paulo: LTR, 2007, p. 40.

18 Segundo Fernando Basto Ferraz, “o conceito de igualdade material ou substancial recomenda que se levem na devida conta as desigualdades concretas existentes na sociedade, devendo as situações ser tratadas de maneira dessemelhante, evitando-se assim o aprofundamento e a perpetuação de desigualdades engendradas pela própria sociedade” (FERRAZ. Fernando Basto. Princípio constitucional da igualdade. São Paulo, Revista LTR 69-10, 2005, p. 1199).

19 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do Direito Civil. Disponível em <http://jus.uol.com.br/revista/texto/507/constitucionalizacao-do-direito-civil>. Acessado em 11.01.2011.

20 BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 103.

21 PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. São Paulo: Renovar, 2008, p. 760.

22 MENEZES, Maurício Moreira Mendonça de. Constitucionalização do Direito Civil. Disponível em <http://www.bocater.com.br/artigos/mmm_const_dir_civ.pdf.>. Acessado em 11.01.2011.

23 PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. São Paulo: Renovar, 2008, p. 762.

24 PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. São Paulo: Renovar, 2008, p. 764.

25 PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. São Paulo: Renovar, 2008, p. 764.

26 PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. São Paulo: Renovar, 2008, p. 794.

27 PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. São Paulo: Renovar, 2008, p. 809.

28 PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. São Paulo: Renovar, 2008, p. 800.

29 DALLEGRAVE NETO, José Affonso “apud” OLIVEIRA, Sebastião Geraldo. Indenizações por Acidente do Trabalho ou Doença Ocupacional. São Paulo: LTR, 2006, p. 103.

30 BRANDÃO, Cláudio. Acidente do Trabalho e Responsabilidade Civil do Empregador. São Paulo: LTR, 2006, p. 345.

31 PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. São Paulo: Renovar, 2008, p. 803/804.

 

 

Marco Aurelio Marsiglia Treviso

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