A implantação do positivismo jurídico no brasil

Scarica PDF Stampa

Resumo: Este estudo consiste na análise do contexto histórico e sócio-político que propiciou a implantação do positivismo jurídico europeu, de tipo liberal, no Brasil. Além disso, estuda-se as consequências ideológicas da importação de uma teoria de direito tipicamente europeia em um terreno cultural diversificado, como o brasileiro, o que gerou o desvirtuamento dos postulados básicos e da principiologia atinente ao positivismo jurídico europeu. Este transporte acrítico gerou anomalias em solo brasileiro, mormente o surgimento de institutos jurídicos anômalos, teoricamente idênticos aos europeus, mas diversificados na sua aplicação no mundo da vida.

Palavras-chave: Positivismo. Normativismo. Transplante acrítico. Kelsen.

Riassunto: Questo studio è una analisi del patrimonio storico e socio-politico che ha portato al dispiegamento di tipo legale liberale positivismo europeo, in Brasile. Inoltre, studiare le conseguenze dell’importazione ideologico di una teoria del diritto in un terreno tipicamente europea culturali diversi come il Brasile, che ha portato alla distorsione dei postulati fondamentali e dei principi, per quanto riguarda il positivismo giuridico europeo. Questo anomalie trasporto acritica generata sul suolo brasiliano, in particolare l’emergere di istituzioni giuridiche anomale teoricamente identiche agli europei, ma diversa nella sua applicazione nel mondo della vita.

Parole chiave: Positivismo. Normativismo. Acritica trapianto. Kelsen.

Sumário: Introdução. 1. O Direito brasileiro à europeia. 2. O transplante acrítico do direito liberal burguês europeu para o Brasil. 3. Um outro Direito. Considerações finais

 

INTRODUÇÃO

Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos. (Fernando Pessoa).

Uma das dificuldades enfrentadas por parte dos juristas brasileiros que se debruçam sobre o estudo da formação histórica e política de nossas instituições – e de qual forma o direito fora utilizado neste processo – é analisar o fenômeno jurídico brasileiro com suas peculiaridades, suas características intrínsecas e com as vicissitudes que lhe são próprias e que subjazem ao seu surgimento, tornando-o diferente de outras organizações sócio-políticas.

A identidade do direito tipicamente brasileiro, o seu “ser”, é geralmente buscada segundo metodologias estrangeiras. Estas metodologias não são nossas porque partiram de pressupostos históricos e materiais diferentes daqueles que cercam a nossa realidade latino-americana e, mais precisamente, brasileira. Ora, para que estudemos o Direito tipicamente brasileiro com originalidade é necessário que nos resguardemos de aplicar as teorias e os modelos jurídicos europeus à nossa realidade de maneira acrítica.

Primeiro, para que não corramos o risco de pensar e analisar a peculiaridade do direito brasileiro como a comprovação de que, na realidade, nosso Estado de Direito1 é simplesmente uma farsa2. Segundo, para que não tiremos de foco que as teorias e os modelos jurídicos europeus não foram transplantados acriticamente para nosso território por conta de um acidente. Ao contrário, estes modelos foram trazidos para a nossa realidade pelas classes dominantes, com o intuito de realizarem a manutenção de sua própria rede de relações e seu sistema de privilégios. Só assim poderemos pensar os problemas que a aplicação negligente de determinados modelos jurídicos – mais precisamente, aqueles sustentados pela teoria política do liberalismo – causou em terras nacionais.

 

1. O Direito brasileiro à europeia

Não podemos falar de Direito do mesmo jeito em todos os momentos históricos e em todas as formações humanas. Buscar uma teoria que explique toda essa diversidade de formações é bastar-se em pretensões românticas, idealistas ou exclusivamente metafísicas, sem apego à realidade concreta dos fatos. O conceito de Direito vai se formando historicamente, e no processo histórico buscamos sua identidade, que vai se modificando e se reajustando à realidade da vida social.

Seguindo essa linha, o jurista José R. Rodriguez lembra que Caio Prado Júnior “[…] introduz um problema fundamental para o estudo do Direito no Brasil: a discussão da especificidade da formação nacional relacionada com a incorporação das instituições jurídicas liberal-burguesas oriundas da Europa.”3 Segundo Prado Júnior, não seria possível interpretar a administração colonialista com base nestas “noções”. Afinal, elas ainda eram incipientes nos ordenamentos jurídicos europeus; seu conceito ainda não estava bem definido.4

Seria necessário, então,

[…] descobrir em que momento essas “noções” se formam efetivamente em solo europeu, como elas migram para o território nacional, como é seu processo de enraizamento (ou não) e, finalmente, em que momento elas passam a ser pertinentes para interpretar a realidade nacional.5

Mais que isso, seria imprescindível que questionássemos se estas mesmas “noções” realmente poderiam ser aplicadas e utilizadas no Brasil sem mediações, sem posturas críticas que a adaptassem à realidade do nosso tecido social. Deveríamos, então, mover o foco para a identificação da especificidade do Direito brasileiro, não para suas falhas em relação ao padrão europeu. Qual seria, então, a configuração que o Direito teria no Brasil?

O Direito liberal chegou ao Brasil para que servisse de mediação social específica, isto é, compreendido como um conjunto de representações e práticas aptas à resolução de conflitos. A necessidade de uma forma mediadora de conflitos e divergências se deu pelo embate, no interior das elites que compunham a Colônia, entre a ala progressista dos Abolicionistas e a ala mais conservadora composta pela cúpula dos grandes senhores de engenho.6

Mas esta incorporação não foi de todo benéfica. Um dos efeitos negativos surgidos pela incorporação do direito liberal-burguês em solo nacional7 foi o “duplo grau de alienação” ao qual fora submetida nossa realidade brasileira. A expressão “duplo grau de alienação”, cunhada por Roberto Schwars, é fundamental para que se entenda qual a motivação da importação do direito liberal-burguês vigente na Europa. Segundo Paulo Arantes, trata-se do seguinte: estas teorias e modelos jurídicos, à época de sua criação, funcionavam na Europa como ideologia, servindo assim à reprodução do capitalismo e escamoteando a dominação de uma classe pela outra, ao informar que o capitalismo seria a única forma de sociabilidade possível.8

Estas teorias estavam passando por um intenso processo de crítica em solo europeu, principalmente pelo advento do método marxista. Apesar disso, o direito liberal-burguês chegara em nossas terras sem sua crítica européia, desencadeando a ausência de um debate tipicamente nacional para a sua implementação. Essas idéias chegaram aqui afirmadas positivamente pelo seus próprios valores de face, criados a partir de um contexto europeu, sem a utilização de sua crítica, também européia, para que fossem readaptadas à nossa realidade brasileira. Este seria o primeiro grau de alienação.

Além disso, ao serem importadas dessa forma, acriticamente, estas idéias passaram a exercer, em solo nacional, funções diversas daquela que exerciam em solo europeu. Os limites e pressupostos das categorias que fundamentam esse direito liberal-burguês europeu e suas inúmeras teorias foram simplesmente desconsiderados. Aqui estaria o segundo grau de alienação, na medida em que estaríamos, nestas condições, impossibilitados de aplicar às idéias em funcionamento no Brasil a sua crítica original, européia. Afinal, passaram a exercer, aqui, função diferente da que exerciam em seu ambiente nativo.

A solução para evitar este duplo grau de alienação seria o exercício de dois caminhos de volta: o primeiro seria compreender o funcionamento destas teorias em seu local de origem, ao mesmo tempo que analisando seu enraizamento em solo nacional, para que assim fosse identificada a originalidade que essa aplicação estaria assumindo gradualmente no Brasil; este seria um passo prévio para o desmonte da ideologia. Em seguida, seria necessário tomar estas idéias como elas realmente se manifestam aqui, a partir dos potenciais emancipatórios que elas propiciassem uma vez inscritas na nossa realidade e, aí sim, proceder com a crítica, depois deste ajuste de foco.9

 

2. O transplante acrítico do direito liberal burguês europeu para o Brasil

Seguindo esta lógica alienante e ideológica, resultado do transplante acrítico dos modelos europeus para nossas terras, e na tentativa de manterem seu posto opressor, as classes dominantes concederam o “privilégio” da cidadania para as classes subalternas. Esta cidadania não era encarada como um direito de todos, mas ao contrário, como um favor concedido pelos principais atores políticos da época. Surgia então a dificuldade em se constituir uma esfera efetivamente pública, regulada por normas impessoais. Rodriguez resume esta conjuntura:

O Estado é encarado como uma agência promotora de lucros privados, compartilhada por um pequeno grupo de brasileiros, que estabelecem entre si uma complexa rede de relações, organizada para a manutenção de sua posição dominante. Nosso liberalismo não nasceu de forças liberais igualitárias oriundas da sociedade civil, mas foi implementado pelo Estado, ocupado pelas oligarquias. Por esta razão, sua lógica sempre foi excludente sem a criação de um Estado instituidor de direitos.10

Fica explícito como algumas mudanças na sociedade brasileira, desde à época do Colonialismo, foram sendo orientadas de cima para baixo e com o escopo de preservar posições de privilégio das classes dominantes. Neste processo, o direito exerceu função mediadora, servindo de palco para a disputa política. Para nosso povo, o progresso ocorreria no marco da ordem:11 foi o herdeiro da Coroa portuguesa o responsável pela proclamação da República, assim como foram os senhores de escravos que decidiram pelo fim da escravidão12. Dessa forma, não podemos explicar a sociedade brasileira com a utilização direta dos modelos de pensamento europeus. Inscrita na história de nossas instituições políticas estaria uma peculiaridade que nos é própria e que passava, gradualmente, por um processo de revelação.

Feitas estas duas ressalvas iniciais,13 cabe agora identificar qual seria a teoria de direito tipicamente européia que expressou (e talvez ainda expresse) com maior intensidade a síntese do direito liberal-burguês. Diante da ampla diversidade de teorias, é cientificamente inviável e talvez humanamente impossível tratá-las em sua totalidade. Uma destas teorias ganhou repercussão pela sua pretensão de servir de panacéia ao entendimento estrutural do direito, qualquer que fosse sua configuração, seu momento histórico e o território no qual se manifestasse – a Teoria Pura do Direito, cujo maior expoente fora o jusfilósofo austríaco Hans Kelsen.

A Teoria Pura do Direito, na visão de Nelson Saldanha, emerge de uma sequência de “[…] tentativas germânicas no sentido de dar ao direito público um embasamento mais formal que político.”14 Para tanto, Kelsen defendia uma postura isenta e neutra – porque não ideológica – visando instaurar o purismo metodológico como ferramenta para análise do Direito encarado como sistema de normas hierarquicamente organizadas. Segundo alguns autores, a Teoria Pura constituiria a mais coerente formulação de uma análise formal da problemática jurídica até hoje elaborada, uma vez que o procedimento apresentado por Kelsen consistiria em retirar do seio do fenômeno jurídico todas as suas interferências não-jurídicas, ou seja, psicológicas, sociológicas, políticas.15

Diversos fatores16 teriam direcionado o pensamento de Kelsen e seus discípulos na tentativa de tornar o rigor metodológico de sua Teoria sua principal característica funcional, sinalizando a sobrepujação do conteúdo pela forma – tratava-se, assim, de uma “teoria do direito positivo”, segundo as palavras do próprio Kelsen. Tal cuidado metodológico, aliado à postura científica de um juspositivista, fizeram com que Kelsen não se propusesse a dar uma definição do “ser” do direito,17 evidenciando uma despreocupação com a identidade situacional do direito enquanto fenômeno autônomo.

 

3. Um outro Direito

Ao contrariar a visão normativo-positivista, o grande jurista brasileiro Lyra Filho18 defendia a busca de um “Direito” que adquiriria seu significado de acordo com a temporalidade da história. Não haveria, assim, um surgimento cabal do Direito como sendo a panacéia de uma dada sociedade. Ao contrário, o Direito manifestar-se-ia em constância processual, sempre submetido às pressões desencadeadas pela luta daqueles que disputam o poder, qualquer que seja a organização sócio-política na qual tentem conviver.

Por conta disso, talvez seja impossível definir-se uma essência una para o Direito. Sua própria identidade é o resultado das sucessivas transformações políticas que uma sociedade vai sofrendo ao longo de seu momento histórico. Ao interpretar a ontologia dialética proposta pelo filósofo húngaro Lukács, Lyra Filho afirmava que é com base nos fenômenos que se procura identificar e deduzir o “ser” do direito, buscando-o, assim, no interior da própria cadeia de suas transformações. Desta forma, não se busca o que é o direito, mas o que o direito vem a ser.19

O Direito se define ao se revelar. Funciona, assim, como o resultado da ação humana. Neste sentido, o Direito é o espelho dos empreendimentos humanos. Sua produção, sua execução, sua observância, sua aplicação, sua organização refletem as características mais peculiares daqueles que compõem uma sociedade, assim como os elementos que a circundam: seu espaço, seu momento histórico, sua cultura. Quando buscamos um sentido único para o Direito acabamos por nos distanciar de sua própria natureza. Seu “ser” reside naquilo que constantemente se altera, se transmuta, se renova.

Considerar a Teoria Pura do Direito inserida neste contexto de luta e disputa pela definição do “ser” do direito é importante para que não negligenciemos os interesses subjacentes à admissão de um ou outro conceito20. Situarmos a Teoria Pura em seu contexto social e histórico, analisando os elementos que propiciaram a sua construção; estudar as críticas que recebeu em seu próprio território; tomar nota das consequências que sua aplicação possa ter gerado em uma determinada sociedade – esta postura científica prévia é necessária para que não cometamos o erro de analisar a inserção da Teoria Pura do Direito em solo nacional de maneira acrítica.

Considerações finais

Para que evitemos o duplo grau de alienação gerado pela importação desnuda de uma teoria estrangeira, inserida em nosso território acriticamente, é necessário que entendamos qual função a Teoria Pura exercia em solo europeu – consequentemente, a peculiaridade de seu funcionamento quando inserida naquela realidade – para só então investigarmos qual a função e o funcionamento que adquiriu ao ser aplicada na conjuntura sócio-política brasileira. Assim é que encontraremos um “ser” do direito tipicamente brasileiro, sua identidade. Analisar qual realidade jurídica foi propiciada pela específica função que a Teoria Pura teria exercido em nossas terras, bem como o funcionamento que teria adquirido aqui, seria o segundo passo na busca desta identidade.

Para explorarmos as possibilidades e as barreiras da epistemologia kelseniana, adotaremos, estrategicamente, um momento específico da história jurídico-política brasileira: o ano de 1964, marcado pelo golpe de Estado confabulado entre civis e militares para a derrubada do então Presidente João Goulart. A legitimação das medidas tomadas pelos militares recaiu sobre um instrumento jurídico muito peculiar, sui generis, próprio da mente de nossos juristas – o Ato Institucional. Vigendo acima da própria Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 1946, o AI representou uma anomalia sem precedentes na história brasileira. Qual a motivação para adotarmos este momento em específico?

A justificativa é muito simples: este momento peculiar colocaria em cheque algumas concepções kelsenianas sobre o Direito e o ordenamento jurídico normativo. Visando obter respostas paras alguns questionamentos21 é que necessitamos, primeiramente, retornar à conjuntura européia do século XX e extrair dali os fundamentos do pensamento kelseniano e de sua teoria. Em seguida, aplicá-los, pelo seu valor de face, na análise do ordenamento jurídico brasileiro de 1964, para só então procedermos com sua crítica.

 

REFERÊNCIAS

ARANTES, Paulo. O positivismo no Brasil: breve apresentação do problema para um leitor europeu. Revista Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 21, p. 185-194, jul. 1988.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003.

FACIOLI, Valentim. Um defunto estrambótico: análise e interpretação de Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Nankin, 2002.

FAORO, Raymundo. Existe um pensamento político brasileiro? São Paulo: Ática, 1994.

LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. 17. ed. São Paulo: Brasiliense, 2006. (Primeiros passos, 62).

Nova escola jurídica brasileira. Disponível em: <http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/04700620800247739754480/cuaderno1/numero1_31.pdf>. Acesso em: 4 out. 10.

PLÍNIO de Arruda Sampaio. In: DINES, Alberto; FERNANDES JÚNIOR, Florestan; SALOMÃO, Nelma. (Org.). Histórias do poder: 100 anos de política no Brasil: ecos do Parlamento. São Paulo: Ed. 34, 2000. v. 2.

PRADO JÚNIOR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. 19. ed. São Paulo: Brasiliense, 1996.

RODRIGUEZ, José Rodrigo. A cabrocha e o magistrado: apontamentos sobre o drama do Direito no Brasil. In: MARCONDES, Marleide Paula; TOLEDO, Ferreira de. (Org.). Cultura Brasileira: o jeito de ser e de viver de um povo. São Paulo: Nankin, 2004.

SECRETO, María Verónica. E. P. Thompson. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Ed. Unicamp, 2001.

SALDANHA, Nelson. Teoria do direito e crítica histórica. São Paulo: Saraiva, 1975.

VILLEY, Michel. Leçons d’histoire de la philosophie du droit. Paris: Dalloz, 1957.

WOLKMER, Antonio Carlos. História do direito no Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

1 De acordo com o constitucionalista português José Joaquim G. Canotilho, atualmente, a idéia que fazemos de Estado só pode ser concebida como “Estado constitucional”. Para o constitucionalismo moderno, a constituição é o ponto de convergência no qual se manifesta um “Estado com qualidades” (segundo o conceito de D. Alland), sendo o Estado democrático de direito a sua grande caracterização. A personalização jurídica do Estado moderno, que Canotilho chama de “’domesticação do domínio político’ pelo direito”, realizou-se diferentemente em cada cultura, havendo certas peculiaridades próprias aos conceitos de Rechtstaat, Rule of Law, The Reign of Law, État legal. O Rule of Law inglês significou as dimensões concretizadas do devido processo legal, acesso igualitário à justiça, supremacia do costume da nação perante a discricionariedade do poder monárquico e a sujeição dos atos executivos à soberania parlamentar. Já o The Reign of Law estadunidense realizou a idéia do povo erigir uma lei maior que estruturasse e limitasse o poder soberano, estando governo sempre submetido a leis dotadas de unidade, publicidade, durabilidade e antecedência. Por sua vez, o État Legal francês funda-se na concepção hierárquica da ordem jurídica, reinando acima da própria Constituição a declaração de 1789 sobre os direitos e liberdades fundamentais do humano. Mas a idéia de Estado de Direito que define a organização sócio-política brasileira mais se aproxima do Rechtstaat alemão, surgido no século XIX e concebido como Estado liberal de direito, através de uma sequência de pensadores (como Gerber, Jellinek e Kelsen). Nesta doutrina, caberia ao Estado tão somente a manutenção da ordem e da segurança públicas, ficando os domínios econômico e social respaldados pelos mecanismos de liberdade individual e de concorrência, derivando daí seus direitos fundamentais, e não de uma Carta Política específica. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 92-97.

2 Alguns autores advogam a inexistência de um sistema de Direito no Brasil argumentando que nosso país, historicamente, teve suas instituições políticas marcadas pela prevalência das relações familiares e pessoais, em detrimento das relações travadas com impessoalidade, postura que deveria caracterizar as relações públicas no âmbito do Estado e do ordenamento jurídico estatal. Segundo essa corrente, assim se deram as relações desde a época do Colonialismo, passando pelo Império e chegando à República. Dizer que não existe Direito no Brasil, portanto, não explica nem justifica a configuração que ele assumiu em nossa nação.

3 RODRIGUEZ, José Rodrigo. A cabrocha e o magistrado: apontamentos sobre o drama do Direito no Brasil. In: MARCONDES, Marleide Paula; TOLEDO, Ferreira de. (Org.). Cultura Brasileira: o jeito de ser e de viver de um povo. São Paulo: Nankin, 2004. p. 72.

4 De acordo com Caio Prado, o fato da Coroa Portuguesa estar na Administração do Brasil justificaria esta conduta por parte das elites brasileiras e dos próprios agentes estatais investidos na função de administradores. Cf. PRADO JÚNIOR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. 19. ed. São Paulo: Brasiliense, 1996. p. 298-299. A este mesmo respeito, Antonio Carlos Wolkmer enfatiza a necessidade de buscarmos “Que aspectos desta legalidade [a legalidade da sociedade liberal-individualista ocidental] (em suas idéias jusfilosóficas e em seus principais institutos) são transpostos e adequados para o contexto evolutivo das nossas instituições e, de outro, que particularidades histórico-políticas (patrimonialismo, burocracia, tradição conservadora e herança liberal) são herdadas, incorporadas e assimiladas a partir do processo de colonização lusitana. Decorrendo dessa dinâmica histórica, a formação de uma cultura singular, sintetizadora de idéias e práticas paradoxais, com especificidade própria, deixando de ser, ora um mero produto de mimetismo cultural, ora a expressão de uma natureza que prima por uma originalidade ímpar.” WOLKMER, Antonio Carlos. História do direito no Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 35-36.

5 RODRIGUEZ, José Rodrigo. A cabrocha e o magistrado: apontamentos sobre o drama do Direito no Brasil. In: MARCONDES, Marleide Paula; TOLEDO, Ferreira de. (Org.). Cultura Brasileira: o jeito de ser e de viver de um povo. São Paulo: Nankin, 2004. p. 72.

6 Ibid., p. 75-76. O Direito começou a funcionar como ambiente e palco de disputas políticas. Os grupos divergentes argumentavam a favor ou contra a escravidão sempre se apoiando em argumentos jurídicos, principalmente no direito de propriedade. A implementação de um Direito liberal que exercesse função mediadora deveu-se à militância legalista dos Abolicionistas, que na visão de Rodriguez teve efeitos revolucionários no Brasil. A revolução, ao tempo do Colonialismo, seria justamente a instauração do Direito, e não a sua negação. Assim se foi formando um ambiente de disputa política mediado por formas jurídicas, sendo instaurado um conflito social real e concreto no seio da sociedade brasileira. Cf. ainda, sobre o assunto, FACIOLI, Valentim. Um defunto estrambótico: análise e interpretação de Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Nankin, 2002. p. 15-18.

7 A incorporação desse Direito liberal no Brasil trouxe, segundo um sentido mais global da visão de E. P. Thompson, uma importante constatação para a teoria e método marxistas. Uma vez que sua implementação adquiriu conotação revolucionária, o Direito liberal no Brasil acabou por funcionar como “[…] uma mediação específica e um terreno de oposição de classes e não um simples instrumento ideológico a serviço da dominação da classe dominante.” SECRETO, María Verónica. E. P. Thompson. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Ed. Unicamp, 2001. p. 209-210.

8 ARANTES, Paulo. O positivismo no Brasil: breve apresentação do problema para um leitor europeu. Revista Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 21, p. 185-194, jul. 1988.

9 Ibid.

10 RODRIGUEZ, José Rodrigo. A cabrocha e o magistrado: apontamentos sobre o drama do Direito no Brasil. In: MARCONDES, Marleide Paula; TOLEDO, Ferreira de. (Org.). Cultura Brasileira: o jeito de ser e de viver de um povo. São Paulo: Nankin, 2004. p. 78. Raymundo Faoro vasculha a história da formação de nossas instituições políticas e suas peculiaridades, cf. FAORO, Raymundo. Existe um pensamento político brasileiro? São Paulo: Ática, 1994.

11 Neste sentido, disse Plínio de Arruda Sampaio que “A constante da política brasileira é a conciliação das elites. Quando a tensão da situação social exige rupturas, você tem uma ruptura na elite. Mas em seguida ela busca a conciliação, e a conciliação consiste sempre em afastar o povo. O processo brasileiro, em qualquer episódio que você queira – a Independência, a República, a Revolução de 30 –, é sempre assim. Há uma ruptura na elite dominante e um setor busca o apoio popular. Com o apoio popular, uma facção consegue forças para vencer a outra”, mas logo se conciliam e o povo é excluído, afinal, segundo o economista, “ele [o povo] tira a elite do poder, pura e simplesmente.” PLÍNIO de Arruda Sampaio. In: DINES, Alberto; FERNANDES JÚNIOR, Florestan; SALOMÃO, Nelma. (Org.). Histórias do poder: 100 anos de política no Brasil: ecos do Parlamento. São Paulo: Ed. 34, 2000. v. 2. p. 168.

12 RODRIGUEZ, op. cit., p. 78.

13 A exclusão da hipótese da inexistência de um Direito ou de um Estado de Direito tipicamente brasileiros, bem como a evidenciação de que as teorias e os modelos europeus de direito não foram importados para o nosso solo de maneira acrítica acidentalmente, mas por interesses das classes dominantes – não obstante, que essa aplicação, por ter sido feita sem as adaptações necessárias, gerou consequências peculiares à realidade do solo nacional.

14 SALDANHA, Nelson. Teoria do direito e crítica histórica. São Paulo: Saraiva, 1975. p. 56.

15Ibid. p. 55-57. A herança teórica germânica que deu respaldo e ambiência à Teoria Pura do Direito inicia-se em 1865 com a obra do jurista Gerber, que se propunha a expor o Direito Público de uma óptica exclusivamente jurídica, excluindo da análise os pontos de vista políticos ou filosóficos. Em seguida, temos Max Seydel, que, embora negando a personalidade jurídica do Estado, preocupou-se com a conceituação na teoria do Estado, pautando-se por terminologias de direito civil, passando pelo jurista Van Krieken, que criticou a concepção organicista de Estado defendida, entre outros, por Gierke. Ao final do século XIX, surge a vasta obra de G. Jellinek, momento em que a teoria geral do direito ainda se preocupava com o tema das relações entre direito, ética e Estado. Importante ressaltar, porém, que Jellinek, diferentemente de Kelsen, ressaltava a importância da diferenciação entre Direito e Estado, denunciando como falta grave de alguns pensadores de seu tempo “[…] a identificação da doutrina de Estado com a doutrina jurídica do Estado, esta tão-só uma parte daquela.”

16 Ibid., p, 58-60. Saldanha lembra ainda que alguns elementos tornaram-se importante influência para o surgimento da Teoria Pura do Direito. Primeiramente, o legado do liberalismo, como já dito acima, “[…] não propriamente como vigência política mas como ambiência amplamente político-cultural, um tanto residual já desde o fim do século XIX mas ainda intelectualmente sugestionador”, contrastando-se com um clima de “crise espiritual” que se tornaria mais denso ao longo do século XX e que traria implicações ao estudos sociais. Outro componente seria o predomínio da lei como expressão do jurídico, crença propiciada pela teoria liberal contratualista do francês J. J. Rousseau, conferindo caráter legal a toda juridicidade existente, inclusive a Estatal. Somente a experiência de sistemas legislativistas, adquirida no continente europeu, permitiria pensar no fenômeno jurídico como uma “estrutura escalonada” (idéia surgida inicialmente com a obra do jurista alemão Merkel, mas absorvida e reformulada por H. Kelsen), segundo a qual “cada norma recebe sentido (formal) pelo fato de provir de uma competência estabelecida pela norma que logicamente lhe antecede” . Joseph Kunz, vienense e discípulo de Kelsen, enfatizava como a Teoria Pura do Direito devia suas características principais ao ambiente histórico sob o qual conviviam seus autores, ou seja, o clima liberal e individualista que marcava a Áustria desde o período do Império Austro-Húngaro, conjuntura que formulava a própria psicologia do austríaco: universalista, cosmopolita e tolerante.

17 SALDANHA, Nelson. Teoria do direito e crítica histórica. São Paulo: Saraiva, 1975, p. 61. Ou seja, o momento ontológico do Direito teria importância secundária, em detrimento da relevância primordial de seu momento epistemológico: a capacidade do método kelseniano em construir, ele próprio, seu objeto científico.

18 Roberto Lyra Filho foi o fundador da Nova Escola Jurídica Brasileira (NAIR), que parte de uma concepção dialética do Direito, em reação ao normativismo postivista de Kelsen. Diz Lyra filho que a NAIR combate cinco inversões do positivismo, não tomando a norma pelo Direito; não definindo norma pela sanção; não reconhecendo apenas ao Estado o poder de normar e sancionar; não se curvando ante o fetichismo do chamado direito positivo, seja ele costumeiro ou legal; e “não fazemos do Direito um elenco de restrições à liberdade, como se esta fosse algo a deduzir a contrario sensu do que sobra,m depois de sancionado o furor criativo de ilicitudes, quer pelo Estado, quer pelos micro-organismos concorrentes, que estabelecem o poder social dividido (o chamado poder dual).” LYRA FILHO, Roberto. Nova escola jurídica brasileira. Disponível em: <http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/04700620800247739754480/cuaderno1/numero1_31.pdf>. Acesso em: 4 out. 10. p. 151.

19 LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. 17. ed. São Paulo: Brasiliense, 2006. (Primeiros passos, 62). p. 12.

20 Saldanha recorda que no prefácio à primeira edição da Teoria Pura do Direito, Kelsen teria dito que travava uma batalha por uma separação rigorosa entre a ciência jurídica e a política, visando a erradicação de todo e qualquer postulado político de dentro de sua teoria. O apoliticismo metodológico, segundo este autor, daria lugar a um apoliticismo doutrinário, por mais que Kelsen sustentasse seu incômodo com o dogmatismo jurídico, por não considerá-lo ciência. Como consequência, partindo-se da idéia de que método reflete concepção de mundo, ou seja, a forma pela qual decidimos, por um ato de escolha, analisar a realidade, Saldanha conclui que o apoliticismo kelseniano não está inteiramente isento. Ao contrário, a Teoria Pura estaria comprometida, no fundo, com uma posição liberal. SALDANHA, Nelson. Teoria do direito e crítica histórica. São Paulo: Saraiva, 1975. p. 67. Neste sentido foi o posicionamento de Michel Villey, jurista de Estrasburgo, ao dizer que seria ilusório esperar neutralidade na ciência do direito ou considerá-la desvinculada das condições nas quais é elaborada. E sentencia que a doutrina kelseniana nos coloca à serviço da ordem estabelecida, sendo apenas aparente a sua isenção. VILLEY, Michel. Leçons d’histoire de la philosophie du droit. Paris: Dalloz, 1957. p. 345-346.

21 A Teoria Pura do Direito, inserida na realidade brasileira, perpassando pela história de nossas instituições políticas, teria nos colocado a serviço da ordem estabelecida, tal qual ocorrera na conjuntura européia? Estaríamos aptos a realizar os dois caminhos de volta propostos por Paulo Arantes para desmontarmos a função ideológica assumida pela Teoria Pura em solo europeu e, assim, situá-la no nosso contexto sócio-político-cultural, evitando o duplo grau de alienação que seu transplante acrítico gerou em solo nacional? Após este trabalho prévio, poderíamos identificar qual seria a função exercida pela Teoria Pura em solo nacional e concluir se seu estudo seria suficiente para entendermos as vicissitudes e peculiaridades que cercam o “ser” do Direito tipicamente brasileiro? E, por fim, apenas para que adiantemos uma das hipóteses do presente trabalho: haveria relação entre o período de exceção ao qual fomos submetidos pelo golpe militar-burguês de março/abril de 1964 e a implementação das instituições jurídicas liberal-burguesas oriundas da Europa, feita de forma acrítica, sem um debate nacional para a sua incorporação à nossa realidade? Quais seriam os interesses subjacentes a essa incorporação? Qual o funcionamento e a função que estes modelos teriam assumido em solo nacional? Como a Teoria Pura do Direito recepcionaria esta medida de exceção, que, em realidade, suspendeu a vigência das leis que lhe eram contrárias, visando instaurar mecanismos jurídicos para a consecução dos interesses políticos e ditatoriais dos militares golpistas? A Teoria Pura teria previsto estas conjunturas? Seria suficiente para explicá-las?

Athanis Molas Rodrigues

Scrivi un commento

Accedi per poter inserire un commento