Considerações pontuais acerca da função social da propriedade

Redazione 09/10/08
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RESUMO: A presente pesquisa tem, aprioristicamente, o intuito de abordar sobre o instituto da propriedade utilizando, para tal, a sua base histórica, a sua origem constitucional e a sua evolução através dos tempos. Discorre-se sobre o conceito de propriedade aventado pela doutrina, além de demonstrar o início de sua função social no ordenamento jurídico. A importância do tema sub examine surgiu a partir do momento que a Carta Magna brasileira passou a preconizar, em seu artigo 5º, inciso XII, a garantia do direito de propriedade, desde que o mesmo seja exercido atendendo a sua função social. Além do dispositivo supracitado, o texto constitucional dispõe, ainda, em seu artigo 170, inciso III, sobre a função social da propriedade voltada a frear a atividade empresarial. Essa relativização do direito de propriedade é decorrência natural da necessidade de atender novas situações sociais, emergindo naturalmente a função social.
 
PALAVRAS CHAVE: Propriedade. Função Social.Ordenamento Jurídico.
 
SUMÁRIO: 1 BREVE INTRÓITO; 2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA PROPRIEDADE; 3 ORIGEM DO DIREITO DE PROPRIEDADE; 4 A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E SUA INCLUSÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO; 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS.
 
1 BREVE INTRÓITO
O presente artigo traz a baila tema relativamente antigo, mas sob ótica diversa, buscando demonstrar a relevância da propriedade acima de qualquer outro direito, baseando-se no atendimento de sua função social, que deu origem a inúmeras restrições e limitações oriundas da própria natureza do direito de propriedade ou de imposição legal com a finalidade de coibir abusos e impedir que o exercício do aludido direito acarrete prejuízo ao bem-estar social, permitindo, desse modo, que ocorra o desempenho da função social preconizada na Carta Magna vigente.
Para que haja melhor entendimento sobre o assunto em questão, torna-se salutar abordagem histórica acerca da origem do direito de propriedade, que remonta de épocas passadas até convergir para o conceito hodierno. A importância do instituto da propriedade para os direitos reais proporciona inúmeros debates e divergências de opiniões, ressaltando-se haver sustentação inclusive de que “nem o trabalho, nem a ocupação, nem a lei podem criar a propriedade” e que ela seria efeito sem causa” (PROUDHON, 1988, p.15). Através de vários vértices doutrinários resta evidente a preocupação do legislador constitucional confirmada pelo codificador civilista sobre a função social da propriedade como direito fundamental, cláusula pétrea, sem deixar interferir no anterior e secular direito de propriedade.
O tema em questão sempre foi objeto de estudo de inúmeros doutrinadores e sob óticas diversas, face à grandiosidade do jus proprietatis desde o seu surgimento. Hodiernamente, houve modificação do enfoque adotado, diante de o referido direito constar do diploma constitucional, com o intuito de coibir o uso abusivo da propriedade, além do dever de ser utilizado para o bem comum, voltado à função social.
 
2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA PROPRIEDADE
 
As sociedades primitivas exerciam a propriedade apenas sobre coisas móveis, já que a terra pertencia à coletividade. A base histórica da propriedade é resultante do direito romano. Tanto em Roma como nas cidades gregas da Antigüidade a idéia de propriedade privada era vinculada aos bens próprios de uma família, sendo que cada pessoa possuía uma pequena porção de terra. Naquela época, a propriedade privada, o organismo familiar e a religião doméstica integravam uma organização institucional da sociedade. Condições econômicas e políticas determinaram a origem e o desenvolvimento da propriedade.
Assim, no período da Antiguidade Clássica, estava a propriedade intimamente ligada à religião e à família. Na concepção romana, o lar familiar tinha estreita relação com a propriedade do solo onde a habitação era construída e havia a concepção de que os deuses também ali habitavam.
Durante a Idade Média, o caráter exclusivista e unitário da propriedade foi modificado. O transcurso do tempo deu origem a período marcado pela incessante luta voltada a conquista de novos territórios, responsável pela demonstração de riqueza e poder atribuídos à porção de terra. A soberania de um povo relacionava-se, de forma direta, à segurança do território. À medida que mais terras eram adquiridas, a nação passava a ser mais respeitada e influente. Surgiram, então, os feudos, que nada mais eram que porções de terras pertencentes a poucos, considerando o status e a nobreza que proporcionavam. Tais porções terrenas foram entregues sob usufruto condicional a determinados beneficiários que se comprometiam a prestar, em contrapartida, certos serviços. Com o passar do tempo, a propriedade sobre os aludidos feudos transformava-se em perpétua e transmissível apenas pela linha masculina.
O regime feudalista findou-se com a Revolução Francesa no ano de 1789, sendo que esta pode ser tida como o primeiro marco importante para a construção de argumentos atinentes ao direito de propriedade, definindo-se o referido direito como natural, ilimitado e individualista. Nesse período consagra-se a marca absolutista do direito de propriedade: droit absolu et sacré.
            Como segundo marco tem-se a flexibilização do Estado capitalista durante o século XX, necessária para sua sobrevivência em razão da evolução do socialismo. Tal fato deu origem a modificação no direito de propriedade, baseando-se no atendimento da função social (COELHO, 2006).
Em virtude de inúmeros movimentos filosóficos e políticos de orientação socialista, novo prisma eclode, pautado na busca de sentido social na propriedade. 
 
3 ORIGEM DO DIREITO DE PROPRIEDADE
 

            A propriedade consiste em fato anterior ao direito. O homem organiza-se em propriedade antes mesmo de criar o seu regramento (BERSONE apud RIZZARDO, 2004, p.179).

            Como fato decorrente de um contexto social, a propriedade tem extensão e compreensão próprias de cada período histórico, sendo que sua densidade conceitual mínima irá variar conforme a organização política e religiosa de dado contexto, local e momento (VENOSA, 2003, p.151).

A configuração da propriedade depende, na atualidade, do regime político vigente (DINIZ, 2007). Os Estados tratam o direito de propriedade de tal modo que constitui a pedra de seu regime político (MONTEIRO, 2007).

            A propriedade é o princípio criador e conservador da sociedade civil. A questão é saber se aquela é o princípio ou o resultado da ordem social; se se deve considerá-la causa ou efeito (HENNEQUIN apud PROUDHON).

            Destarte, o direito de propriedade é o mais importante dos direitos reais, sendo que todos os demais institutos do mesmo ramo do direito civil são definidos como sendo exteriorização (posse), desdobramento (uso, usufruto dentre outros) ou limitação (servidão e direitos reais de garantia) do direito de propriedade (COELHO, 2006). 

4 A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E SUA INCLUSÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO
 
            A origem do princípio da função social da propriedade é controvertida, sendo que, para alguns, teria sido formulado por Augusto Comte e postulado por Leon Duguit. Diante da grande influência exercida por sua obra, Duguit é considerado o precursor da idéia de que os direitos só se justificam pela missão social para a qual devem contribuir e que o proprietário deve comportar-se e ser considerado, quanto à gestão dos seus bens, como se fosse um funcionário (GONÇALVES, 2006).
            O novel diploma do direito privado brasileiro descreve, no parágrafo 1o de seu artigo 1.228, que
o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.
 
Prossegue, o parágrafo 2o: “são defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem”. Da mesma forma, a Lex Fundamentalis, em seu artigo 5o, XXII, garante o direito de propriedade, mas requer que seja exercido atendendo a sua função social. No artigo 170, III, também determina que a ordem econômica observará a função da propriedade, impondo freios à atividade empresarial.
            Em consentâneo com o ideal preconizado pela Constituição Federal, o aludido artigo 1.228, parágrafos 1o a 5o, afasta o individualismo, coibindo o uso abusivo da propriedade, que deve ser utilizada para o bem comum. Condicionada está a convivência privada ao interesse coletivo, visto que a propriedade passa a ter função social, não mais girando em torno dos interesses individuais do seu titular.
            Efetivamente, toda propriedade, mesmo resguardado o direito do proprietário, deve cumprir função social, que é imprescindível para que se tenha um mínimo de condições para a convivência social. Trata-se de inovação de elevado alcance, inspirado no sentido social do direito de propriedade e também no novo conceito de posse, qualificado como posse-trabalho.
            A nova concepção do direito de propriedade tem sua origem marcada pela determinação da função social, geradora de trabalho e de empregos, preparada para produzir riquezas e colaborar para o bem geral da nação. Visa a propriedade hodierna a findar com a propriedade estéril e improdutiva (MONTEIRO, 2007).
A função social da propriedade vincula não só à produtividade do bem, como também aos reclamos da justiça social, devendo, logo, ser exercida em beneficio da coletividade. O princípio da função social da propriedade está atrelado, portanto, ao exercício e não ao direito de propriedade (DINIZ, 2007).
            É necessário que ocorra o uso efetivo e socialmente adequado do bem sobre o qual recai a propriedade. Deve haver o equilíbrio do direito de propriedade, como satisfação de interesses particulares, com a função social que deve cumprir, que visa atender ao interesse público e ao adimplemento de deveres para com a sociedade.
Sobre o assunto, indica Venosa (2007, p. 147) que restam patentes, nessas dicções, “princípios afastados do individualismo histórico que não somente buscam coibir o uso abusivo da propriedade, como também procuram inseri-la no contexto de utilização para o bem comum.”
            Denota-se neste contexto que a propriedade deve ser utilizada de modo adequado e socialmente eficaz, deixando de ser vista, na atualidade, como um direito, passando a adquirir também uma função e sendo considerada como um bem coletivo de adequação social e jurídica.
            Inconteste que o direito de propriedade é o mais amplo da pessoa em relação à coisa, e segundo dispõe o caput do artigo 1.228, “o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.”
Na lição do ilustre constitucionalista José Afonso da Silva:
A norma que contém o princípio da função social da propriedade incide imediatamente, é de aplicabilidade imediata, como o são todos os princípios constitucionais. Realmente, afirma-se a tese de que aquela norma, tem plena eficácia, porque interfere com a estrutura e o conceito da propriedade, valendo como regra que fundamenta um novo regime jurídico desta, transformando-a numa instituição de Direito Público, especialmente, ainda que nem a doutrina nem a jurisprudência tenham percebido o seu alcance, nem lhe dado aplicação adequada, como se nada tivesse mudado. (SILVA, 1999, p.284).
 
A função social inseriu na esfera interna do direito de propriedade interesse que pode não coincidir com o do proprietário e que, em todo caso é estranho ao mesmo. Assim, as normas constitucionais devem ser analisadas de forma a fundamentar o regime jurídico da propriedade, a sua garantia enquanto atende sua função social.
As normas de direito privado referentes à propriedade devem ser interpretadas de acordo com o texto constitucional.
Verifica-se que a Carta Magna vigente, ao adotar o Estado Democrático de Direito, prima pela plenitude do homem, vedando qualquer forma ou tipo de discriminação, consagrando a dignidade da pessoa humana[1], sendo tal valor seguido por todos os dispositivos inseridos em seu texto, devendo ser, necessariamente, também buscado pelos demais institutos jurídicos.
Nesta linha, verifica-se o princípio da função social da propriedade no corpo constitucional, tanto no inciso XXIII do artigo 5º, referente aos direitos e garantias fundamentais, como também no inciso III do artigo 170, como essência da ordem econômica, a qual visa “assegurar à todos existência digna”, culminando no bem-estar da sociedade. Logo, deve todo o sistema legal seguir as diretrizes contidas na Lex Suprema, evitando a declaração de inconstitucionalidade aos diplomas que neste aspecto lhes sejam contrapostos.

 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

                Depreende-se da pesquisa levada a cabo que o instituto da propriedade remonta desde a Antigüidade, tendo, todavia, evoluído com o passar dos tempos. Tal progresso ocorreu face à importância natural do direito de propriedade, iniciando-se apenas sobre as coisas móveis até alcançar o patamar atual, após ser objeto de estudo de inúmeros doutrinadores e sob óticas diversas, devido à sua grandiosidade desde o seu surgimento. Ocorreu, hodiernamente, alteração no enfoque adotado outrora, diante do fato de o jus proprietatis encontrar-se inserido no diploma constitucional, com o intuito de coibir o uso abusivo propriedade, além do dever de ser utilizado para o bem comum, voltado à função social da propriedade.

O direito de propriedade inserido nos textos das legislações infraconstitucionais deve estar em consentâneo com os ditames da Carta Magna, sob pena de ser declarado inconstitucional o estatuto que se contrapor à ela, devendo ser, por conseqüência, expungido do ordenamento jurídico nacional. Nesta vereda, tem-se que os institutos, tanto antigos, quanto modernos, vigentes na sociedade pátria, têm buscado coexistir com Lex Suprema, como é o caso da propriedade e o cumprimento de sua função dentro da sociedade.

Natália Taves Pires[2]
João Carlos Leal Júnior[3]
Janaina Lumy Hamdan[4]

 
 
 
 
BIBIOGRAFIA
 
BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das Coisas. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1956.
 
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2006.
 
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 22 ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
 
FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição Brasileira. São Paulo: Saraiva, 1995.
 
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Direito das Coisas. São Paulo: Saraiva, 2006.
 
LEAL JÚNIOR, João Carlos. O princípio da manutenção da atividade empresarial e a recuperação da empresa na lei 11.101/2005: um exame sob o prisma da função social, Revista Direito em (Dis)Curso, Londrina, v.2, n.1, p.79-104, jul. 2008.
 
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: Direito das Coisas. 38. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
 
PROUDHON, Pierre-Joseph. O que é a Propriedade. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
 
RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil: Direito das Coisas. 27. ed., São Paulo: Saraiva, 2002.
 
SILVA, José Afonso da. Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1998.
 
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direitos Reais. 7. ed., São Paulo: Atlas, 2007.


[1] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988. Artigo 1º, III.
[2] Mestre em Teoria do Direito e do Estado pelo Centro Universitário de Marília-SP; especialista em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito da Alta Paulista e INBRAPE; professora do Curso de Especialização em Direito Empresarial e pesquisadora da Universidade Estadual de Londrina – PR; advogada.
[3] Discente de Direito e pesquisador da Universidade Estadual de Londrina; estagiário do Ministério Público Federal – Procuradoria da República em Londrina – PR.
[4] Discente de Direito e pesquisadora da Universidade Estadual de Londrina; estagiária da Magistratura Federal – Juizado Especial em Londrina – PR.

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