A liberdade contratual entre a pessoa e o mercado na pós-modernidade. Liberdade de escolha e avaliação da realidade

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A liberdade contratual entre a pessoa e o mercado na pós-modernidade. Liberdade de escolha e avaliação da realidade[1]
 
 
Tem-se de educar a inteligência e a ação, para que dos «indicativos» se tirem os «imperativos», e tudo se desenvolva, lá fora, ao ar livre, como um «teorema em ação»”.
Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, Introdução à sociologia geral, 2ª edição, Rio de Janeiro, Forense, 1980, p. 228.
 
 
A realidade contemporânea das operações econômicas instrumentalizadas por contratos identifica uma efetiva alteração e, portanto, necessária revisão dos aspectos que envolvem a essência da liberdade contratual. A relevância fundamental atribuída pela ordem jurídica à dignidade da pessoa humana e a importância da liberdade contratual enquanto compositora do espaço fundamental de liberdade atribuído ao sujeito para seu desenvolvimento, permitem a configuração jurídica do mercado e da própria liberdade contratual presente na Constituição Federal, as quais funcionam como vetores justificadores desta necessidade.
 
Claudia Lima Marques apresenta, a partir da obra de Erik Jayme, os principais pontos de reconhecimento da pós-modernidade na Ciência do Direito[2]. O autor apresenta cinco características presentes no direito de fundo pós-moderno: pluralismo, comunicação, narração, emocionalidade do discurso («le retour des sentiments») e o revival dos direitos humanos.
 
O pluralismo manifesta-se de diversas formas. Dentre estas menciona a vasta diversidade de fontes normativas. Chama atenção também o pluralismo de sujeitos a serem protegidos. Esta pluralidade representa em alguma medida também a critica apresentada por Natalino Irti[3] quanto ao naturalismo da «pessoa», ou seja, sua consideração unitária. Há pluralidade de singulares interesses que devem ser protegidos pela ordem jurídica.
 
Característica bastante marcante assume a comunicação, compreendida como valor máximo da pós-modernidade. O ponto que ressalta é a relevância da informação nas operações econômicas. A narração, mencionada pelo autor, estabelece um ponto de contato com a comunicação. Sua expressividade estaria numa nova perspectiva metodológica para elaboração de normas jurídicas. Seriam normas que narram seus próprios objetivos.
 
A referência a emocionalidade seria representativa de certa dúvida para com o futuro. O envolvimento de uma vasta complexidade legislativa e a busca por critérios de solução externos ao direito para resolução de situações presentes. Os direitos humanos aparecem frente a esta incerteza como bases seguras, permitido uma ampla renovação de fundamentos jurídicos a partir da valorização da pessoa humana.
 
Neste contexto, é preciso reconhecer que de uma forma geral que não se pode mais sustentar com o vigor passado, notadamente em operações realizadas em mercado, a concepção de autonomia privada, entendida como auto-regramento. Natalino Irti chega a considerar o negócio jurídico, instrumento da autonomia privada, como categoria historiográfica[4]. A autonomia do sujeito limita-se a liberdade de escolha, isto é, liberdade de contratar.
 
L’autonomia è potere di determinazione del contenuto negoziale: «negoziale», appunto perchè «negoziato», cioè discusso e trattato fra le parti. Questa autonomia non appartiene al nostro tempo (non ripeterò natozaioni, svolte in altre e varie sedi), il quale conosce masse anonime di consumatori e meccanica iterazione di gesti. Non più singole parti, dialoganti e disputanti, ma categorie di consumatori; non più il negoziare sul contenuto delle clausole, ma la semplice scelta dei beni offerti; non più il mercato come luogo del «mercatare», ma come luogo di selezione di merci. Dove, insomme, il singolo preferisce una o altra merce; e l’attività giuridica si riduce fino al muto gesto. In questa semplificazione e contrazione, in questo risparmio di forme espressive, si esalta la razionalità dell’impresa: tanto precisa e lúcida, quanto meccanica e anônima[5].
 
Dois aspectos passam a ser de fundamental importância para a manutenção deste espaço mínimo. Trata-se da presença no ambiente de mercado da livre concorrência entre as empresas ofertantes de bens e serviços, além do poder de escolha ser necessariamente exercido de forma consciente. Neste ponto, a informação atua como legitimadora do exercício da liberdade contratual. Permiti, neste sentido, a manutenção de um espaço mínimo para atuação e desenvolvimento do sujeito. A manutenção de um mercado sádio tem representatividade legislativa na Lei n.º 8884/94, que trata das infrações à ordem econômica. No que toca especificamente a informação recebida pelos potenciais adquirentes de bens e serviços à disposição no mercado há normas jurídicas no Código de Defesa do Consumidor (v.g. arts. 31, 36 e 37).
 
Todavia, a realidade do mercado vem a demonstrar a insuficiência destes instrumentos. Veja-se a situação do mercado para aquisição de unidades imobiliárias autônomas em condomínio edilício.
 
Uma análise em primeira leitura do programa contratual pré-disposto por empreendedores imobiliários é suficiente para identificar diversas cláusulas abusivas. Pense-se, por exemplo, na cláusula de retenção dos valores pagos em caso de resolução contratual. Apesar de um posicionamento claro do STJ[6] é costumeiro identificar esta cláusula em contratos ainda nos dias presentes. Estes instrumentos contratuais contemplam muitas vezes multiplicidade de garantia em favor do vendedor. Por outro lado, suas obrigações não apresentam qualquer tipo de garantia, como as cláusulas que estabelecem o comprometimento com o prazo para entrega da obra[7]. Percebe-se de forma bastante clara o favorecimento da posição contratual do vendedor frente ao aderente (comprador).
 
Vale transcrever o posicionamento de Massimo Bianca, o qual embora centrado também no mercado imobiliário, tem efetivo potencial expansivo para outros mercados: “Il problema della tutela del promittente compratore in relazione a tali condizioni generali si presenta in termini di particolare gravita in considerazione della segnalata importanza primaria del bene-casa e dell’alto impegno econômico che esso comporta per l’acquirente. Si tratta tuttavia di un problema che conflisce in quello generale della tutela sostanziale dell’aderente, per il quale la dottrina reclama da tempo una riforma normativa cha altri ordinamenti hanno già realizzato atravverso soluzioni di vario tipo, volte comunque a garantire l’equa regolamentazione del rapporto[8].
 
O fato é que a complementação legislativa, especialmente o Código de Defesa do Consumidor, não consegue estabelecer uma razoável e desejável posição de igualdade na relação contratual entre as partes que operam em mercado. As cláusulas notadamente abusivas fazem-se presentes nos contratos. A saída do consumidor é não contratar e buscar um outro empreendimento, o que não traz qualquer solução, uma vez que os programas contratuais são padronizados no mercado, apresentando apenas ligeiras distinções.
 
Outra possibilidade seria exercer sua liberdade de contratar onerado por posição contratual desfavorável, porém potencialmente reconciliável em caso de demanda judicial pela incidência de normas consumeristas. Observa-se que na realidade o espaço de liberdade mínimo é algo como um cálculo de risco, no entanto não escolhido, mas sim necessário e unilateral.
 
Não se pode discutir a importância da legislação consumerista. O interessante seria deslocar um pouco o foco da atenção do regime jurídico das cláusulas abusivas, que são efetivamente reconhecidas e declaradas nulas por nossos tribunais, para uma adequação da posição contratual do sujeito aderente.
 
A centralidade nas cláusulas abusivas remete a uma atuação estática, na qual permanece ao adquirente outro encargo. A necessidade de recorrer ao judiciário nestas hipóteses são por si só significativas da distinção de posição contratual. Neste passo, ganharia relevo a atuação de órgãos legitimados para a defesa e proteção das relações de consumo em sentido lato (arts. 55 e ss, CDC). Uma atuação com maior grau de efetividade destas entidades possibilitaria maior segurança aos aderentes, diminuindo os riscos destes no exercício da liberdade contratual, oferecendo assim maior qualidade para a liberdade contratual e para o próprio mercado.
 
Pense-se ainda no mercado imobiliário. Existem diversas empresas atuantes neste mercado, realizando empreendimentos dos mais diversos portes. Estes órgãos poderiam realizar a fiscalização dos instrumentos contratuais, buscando, independente das relações entre vendedor e comprador, junto às instancias legitimadas, seja na esfera administrativa ou judiciária, promover de forma dinâmica uma aproximação maior das posições contratuais[9].
 
 
Felipe Raminelli Leonardi – Av. Pereira Barreto, 1395, Torre Norte, Sala 135, Paraíso, CEP 09190-610 – Santo André – SP – Brasil.
Fone/Fax: (5511) 4425-7165
Situação: Mestrando em Direito Civil pela PUC/SP. Monitor da disciplina Direito Comercial II na Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. Bacharel em direito pela mesma instituição no ano de 2004. Advogado de empresa privada em São Paulo.
 


[1] O presente texto é parte de monografia apresentada originariamente na disciplina Direito Civil I – Direito Civil-Constitucional do curso de pós-graduação em sentido estrito da PUC/SP, ministratada no segundo semestre de 2006 pelo professor Renan Lotufo, a quem dedico a presente publicação. Registro também meus agradecimentos ao professor Marcelo Benacchio. Críticas e sugestões ~soa bem vindas e podem ser endereçadas para felipe.leonardi@aasp.org.br.
[2] Claudia Lima Marques, Contratos no Código de Defesa do Consumidor, ob. cit., pp. 174-178.
[3] Natalino Irti, Persona e mercato, ob. cit., pp. 97-98.
[4] Irti, Natalino, Il negozio giuridico come categoria storiografica, in Letture bettiane sul negozio giuridico, Milano, Giuffrè, 1991, pp. 43-73. “Allora è preferibile di rinchiudere il negozio in una pagina di storia, e prepararsi a costruire strumenti di defesa più moderni ed efficaci” (p. 69).
[5] Natalino Irti, Persona e mercato, ob. cit., p. 103.
[6] Noticiado pelo Informativo n.º 302 do STJ: “Trata-se de ação movida pelo recorrente contra empresa construtora, objetivando a rescisão do contrato de promessa de compra e venda e o recebimento da totalidade das parcelas pagas, devido à desistência da aquisição de imóvel em empreendimento residencial promovido pela ré. A partir do julgamento do REsp 59.870-SP, DJ 7/2/2000, posicionou-se este Superior Tribunal no sentido de ser possível ao consumidor adquirente de imóvel propor o desfazimento da compra em face de impossibilidade sua no adimplemento das prestações. Também ficou definido como razoável um percentual de 25% das parcelas pagas pelo comprador para o ressarcimento das despesas administrativas, propaganda, corretagem, depreciação imobiliária (de imóvel novo para usado), desgaste pelo uso, impostos, recolocação no mercado etc alusivas à unidade residencial. Precedentes citados: REsp 196.311-MG, DJ 19/8/2002, e REsp 723.034-MG, DJ 12/6/2006. REsp 332.947-MG, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, julgado em 24/10/2006”.
[7] Envolvendo a informação veja-se modelo de cláusula: “Na hipótese de o empreendimento ora transacionado possuir um imóvel decorado, fica o comprador ciente que este imóvel foi decorado apenas para demonstração aos interessados com a finalidade de apresentar uma noção básica de como é o imóvel já mobiliado e decorado, tratando-se de Show Room. Fica o comprador ciente que os materiais utilizados neste imóvel podem ser diferentes daqueles que serão entregues no imóvel objeto deste instrumento. Todos os acessórios de decoração tais como luminárias, decoração em gesso, móveis etc não serão entregues no imóvel objeto deste instrumento. Os materiais empregados no imóvel decorado podem ter suas marcas, tamanhos e modelos diferenciados daqueles que realmente será entregue, para tanto o comprador concorda e está ciente que os materiais são aqueles constantes de memorial descritivo”.
[8] Bianca, C. Massimo, La tutela del promittente compratore nella contratazione immobiliare, in Realtà sociale ed effetività della norma, Volume secondo, Tomo I, Milano, Giuffrè, 2002, p. 430.
[9] Neste sentido a regulamentação noticiada no Estado de São Paulo da forma de oferta de bens colocados tanto na vitrine, como no interior das lojas em shopping center. Esta informação deve ser clara, compreensível de plano, caso existam condicionantes estes devem ser evidenciados.

Felipe Raminelli Leonardi

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