A crise do Poder Judiciário brasileiro e a mediação como política pública na gestão de conflitos conforme a Resolução nº 125 do Conselho Nacional de Justiça

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[1]O presente artigo estuda as crises pelas quais o Judiciário perpassa atualmente, em contraponto com a sociedade que permanece inerte e recorrendo a ele para solucionar seus problemas enquanto deveria, primeiramente, tentar resolvê-los de outras formas que trazem resultados melhores e mais efetivos.

Auxiliando nesta necessária mudança de cultura, foi publicada recentemente a importante Resolução nº 125 pelo Conselho Nacional de Justiça, a qual dispõe sobre a política judiciária nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário, objetivando consolidar uma política pública permanente de incentivo e aperfeiçoamento dos mecanismos consensuais de solução de litígios. Por fim, analisa a mediação de conflitos como método eficaz e democrático no tratamento de conflitos sociais e no acesso à justiça.

 

1. A crise de identidade do Estado

A jurisdição é a função exclusiva do ente estatal e visa à neutralização dos conflitos de interesses existentes em face da aplicação forçada de um direito positivo. Diz-se forçada pois o Estado, ao deter a forma de poder legal, detém também o monopólio legítimo da decisão vinculante[3], na medida em que os conflitos levados ao Judiciário são direcionados ao juiz[4], terceiro que decide a lide e diz a última palavra com base na lei.

Nessa busca pela solução do conflito surge a lide processual; “todavia, tratar o conflito judicialmente significa recorrer ao magistrado e atribuir a ele o poder de dizer quem ganha e quem perde a demanda”. O maior problema da magistratura é que ela decide litígios que lhe são alheios, não levando em consideração, salvo raras exceções, o que as partes sentem e suas expectativas. “Decidem sem responsabilidade, porque projetam a responsabilidade na norma. Decidem conflitos sem relacionar-se com os outros”[5].

O âmbito de crescimento da discricionariedade do juiz é muito amplo e, por óbvio, “il grado di potere conferito dalla discrezionalità è variabile e specifico con riferimento al contesto”[6]. Deste modo, há forte conexão entre a ideia de conflito e de jurisdição, visto que os conflitantes se mantêm atrelados ao processo pelo litígio que foi originado em face de um conflito: unidos por ele, “os litigantes esperam por um terceiro que o ‘solucione’”[7].

Ocorre que esse monopólio do poder jurisdicional que dita o direito para o caso concreto de forma impositiva não é uma forma democrática de resolução de litígios; a sociedade espera que o Judiciário resolva seus problemas, dizendo quem tem mais direito ou mais razão, ou ainda, quem é o vencedor da demanda. “Trata-se de uma transferência de prerrogativas” que cria muros normativos, engessa a solução da lide em prol da segurança e acaba por ignorar a reinvenção cotidiana ou um tratamento adequado aos litígios[8].

Contudo, o Poder Judiciário apenas decide os conflitos sociais, não os eliminando, pois eles representam “um antagonismo estrutural entre elementos de uma relação social que, embora antagônicos, são estruturalmente vinculados”, enquanto que as competências jurisdicionais fixam-se nos limites de sua capacidade de absorvê-los e decidi-los, ultrapassando os próprios limites estruturais das relações sociais[9].

Com efeito, não compete ao Sistema Judiciário eliminar vínculos existentes entre as unidades da relação social, mas sim, a ele caberá, “mediante suas decisões, interpretar diversificadamente este vínculo”, podendo inclusive dar-lhe uma nova dimensão jurídica, mas não dissolvê-lo. A eliminação do conflito pelo Judiciário não ocorre porque ele estaria suprimindo a sua própria fonte ou impedindo o seu meio ambiente de fornecer-lhe determinadas demandas[10].

De outro lado, essas deficiências existentes na jurisdição são consequências das crises estatais, que nascem de um deliberado processo de enfraquecimento e se transferem para todas suas instituições. Por isso que se deve debater a crise da jurisdição a partir da crise do Estado, analisando sua gradativa perda de soberania, bem ainda “sua incapacidade de dar respostas céleres aos litígios atuais, de tomar as rédeas de seu destino, sua fragilidade nas esferas Legislativa, Executiva e Judiciária, enfim, sua quase total perda na exclusividade de dizer e aplicar o direito”[11].

A prática judicial atual vê sua atividade comprometida em face de um novo e incerto cenário em que o Estado perde sua autonomia decisória e dá margem à operação de justiças não profissionais baseadas em critérios de racionalidade material. Esta situação provoca uma crise de identidade funcional, que compreende um embaçamento do papel judicial como mediador central de conflitos, perdendo espaço para outros centros de poder, talvez até mais adequados para lidar com a complexidade conflitiva atual[12].

Nesse sentido, as demais crises que atingem o Estado e refletem, por sua vez, na jurisdição, podem ser entendidas sob diversas perspectivas. A primeira delas é a chamada crise estrutural e diz respeito ao financiamento, como infra-estrutura das instalações, de pessoal, equipamentos, custos – estes últimos não somente relativos a valores efetivamente gastos, mas também ao custo diferido que se reflete em razão do alongamento temporal das demandas. Outra, chamada de crise objetiva ou pragmática, engloba a questão da linguagem técnico-formal utilizada nos rituais processuais, bem como a burocratização, lentidão de procedimentos e acúmulo de demandas[13].

A crise subjetiva ou tecnológica, a seu tempo, se vincula à incapacidade de os operadores do direito lidarem com novas realidades fáticas que exigem não somente a construção de novos instrumentos legais, mas também a reformulação de mentalidades, mudanças de perspectivas, pois tais mecanismos lógico-formais não atendem às soluções buscadas aos conflitos contemporâneos. A crise paradigmática, por fim, repercute nos métodos e conteúdos utilizados pelo direito para a busca de um tratamento pacífico para os conflitos a partir da atuação prática do direito aplicado a cada caso, vez que o modelo jurisdicional não atende as necessidades sociais dos sujeitos envolvidos e do conteúdo das lides[14].

Ademais, a crise jurisdicional também afeta a qualidade e quantidade das lides, através da interferência de variáveis endógenas – formalização de novos direitos, normatizações nem sempre universalistas, categorias profissionais orientadas ao direito como cultura do conflito – e exógenas, as quais consistem em economias expansivas e conflituosas, ausência de uma cultura solidária, entre outros. Deste modo, em face de tal hipertrofia, a direção política do direito deve mover-se no sentido de uma jurisdição mínima contra uma jurisdição onívora e ineficaz. Porém, para que isso ocorra, ou seja, para que se possa recomeçar, “é preciso uma reconsideração ecológica da relação entre justiça e sociedade, que leve em conta o problema dentro da sociedade, onde se criam, juntos, os problemas e os remédios”[15].

Todos esses problemas desembocam na crise de eficiência da jurisdição, a qual consiste na impossibilidade de responder de um modo eficiente à complexidade social e litigiosa, evidenciando morosidade e ineficiência na prestação do serviço judicial. A junção de todas essas deficiências provoca o descrédito do cidadão pela justiça e seu consequente afastamento da mesma.

Vive-se, portanto, uma crise de organização política da sociedade em face do desmoronamento dos princípios que nortearam a organização política por vários séculos; “a população tem a maior parte de suas expectativas frustradas pela inoperância dos órgãos públicos, que não conseguem realizar suas funções e pelo agravamento das condições econômicas”, criando assim um clima de insegurança e impedindo a visão de um futuro promissor[16]. Há uma total desconexão entre o aparelho judicial e o sistema político e social em face dos problemas referidos, da complexidade dos litígios e do aumento da desigualdade social.

Esta situação não afeta somente a organização política social, mas sim, evidencia um problema muito mais profundo que atinge por consequência a produção econômica, a cultura, ambiental, entre outros. Na verdade, está ocorrendo uma profunda “crise do regime democrático, uma crise do conceito de soberania, uma crise do Estado Democrático de Direito, uma crise do esquema funcional de separação dos três poderes”. Isto significa dizer que a pós-modernidade esta colocando em dúvida antigos valores que estruturavam a sociedade gerando, assim, uma intensificação dos conflitos sociais e o pior: uma crise de confiança entre os próprios indivíduos e entre a sociedade e o Estado[17].

Desta forma, a própria lei – e sua consequente criação, interpretação e aplicação – distancia-se da sociedade em que está inserida, não correspondendo à expectativa dos indivíduos, o que só agrava a crise de confiança do cidadão no Judiciário. Tal descrédito no regime democrático em geral é comprovado pelo completo afastamento do cidadão da vida política, como a apatia generalizada da sociedade pelas eleições, desinteresse pela política em geral, oposição total aos representantes e falta de confiança na classe política de modo abrangente[18].

Esta falta de confiança do cidadão no sistema político é uma preocupante consequência da conflitualidade existente atualmente, do aumento das desigualdades sociais e das diversas crises vivenciadas pelo Estado e seu poder jurisdicional. Para tentar modificar este quadro busca-se uma mudança de cultura, mas sabe-se que esta tarefa não é fácil: o maior desafio na reconstrução da confiança do cidadão é reforçar sua participação social, desvinculando-se dos ritos processuais mas ao mesmo tempo mantendo a ideia de autoridade, e possibilitando uma convivência pacífica com uma visão positiva dos conflitos sociais.

 

2. O papel dos métodos consensuais de tratamento de litígios na busca pela cultura da paz

A conflitualidade existente atualmente ocorre tanto a nível individual quanto social e acontece de várias formas; seu caráter elástico compreende uma grande quantidade de lides, desde discussões conjugais até guerras mundiais e o terrorismo[19], por exemplo. Faz-se necessária uma mudança na maneira de ver o conflito e tratá-lo; “non c’è dubbio che abbiamo pensato troppo a lungo il conflitto nella sola prospettiva del suo superamento, della sua soluzione”. O maior desafio, ao contrário do que se pensava até agora, é aprender a conviver com tudo aquilo que se considera problemático, revendo ideias e entendendo que o litígio é uma forma de transformação social[20].

Por isso, não se deve pensar no conflito com a ideia de removê-lo, mas sim, tratá-lo adequadamente para que tenha resultados positivos. Tal tarefa não é fácil vez que se vive atualmente a judicialização dos problemas e a cultura da litigiosidade, necessitando de uma quebra de paradigmas. A utilização da expressão “tratamento” dos conflitos e não “solução” indica justamente que os conflitos sociais não são “solucionados” pelo Judiciário no sentido de resolvê-los, suprimi-los, elucidá-los ou esclarecê-los, buscando-se uma forma diferente de administrá-los[21].

Como as controvérsias estão presentes em todos os tipos de relações, uma boa forma de possibilitar a manutenção da convivência social é através de instrumentos consensuais de sua resolução, que trazem resultados eficazes e auxiliam na necessária mudança de visão. “I metodi di soluzione dele controversie sono in gran parte il riflesso della cultura ove sono inseriti” de forma que ambos – os métodos e a cultura – encontram-se intrinsecamente ligados[22].

Desta forma, a utilização de tais métodos reflete e influencia a cultura de cada local: “i sistemi di soluzione dele liti sono allo stesso tempo um prodotto della cultura, um contributo ad essa e un suo aspetto”[23]. Estes métodos ligam-se tanto com as ideias quanto às práticas sociais, ao mesmo tempo em que a cultura consiste em significados, concessões e esquemas interpretativos, que são construídos por meio da participação de instituições sociais e práticas de rotinas: “le procedure di soluzione dele controversie sono una di queste pratiche di routine”.

Referir-se à cultura para compreender métodos de solução de conflitos não é apenas uma ideia defendida por muitos autores, mas sim um desafio. Os métodos mais violentos encontram-se onde as estruturas sociais não permitem ou não facilitam o surgimento do terceiro capaz de mediar a situação, ou ainda distanciar a lide do conflito[24]. Na maior parte das sociedades existe mais de uma forma de resolver as desavenças, mas o método escolhido e usado em determinada situação dependerá da relação existente entre as partes, a natureza da lide, os custos envolvidos, entre outros fatores.

Por isso, tais instrumentos se tornam não apenas práticas para solucionar conflitos, mas também meios para dar expressão a valores, solidificar crenças e concretizar papeis sociais. “I moderni processi formali di risoluzione delle controversie condividono alcune caratteristiche essenziali. La più importante è che essi valutano il conflitto sulla base di aspetti che è possibile fissare in maniera oggetiva”. Os sistemas processuais são produtos da cultura e da sociedade em que se desenvolvem, exercendo influência sobre esta: “i rapporti sociali, le metafisiche e l’ontologia, insomma il modo di comprendere e definire l’universo, determinano e sono determinati da tutti gli aspetti dei modelli processual”[25].

A construção de uma cultura não é um processo rápido, mas sim contínuo e estreitamente ligado à confiança entre os cidadãos e entre eles com o sistema. Para que um sistema cultural se assente, “i valori, i simboli e le idee devono essere ampiamente condivisi all’interno di uma comunità e devono avere inoltre carattere transgenerazionale. I bambini devono essere socializzati o civilizzati in quella cultura”. Nesse sentido, os atores sociais devem, antes de tudo, aprender os valores e adquirir uma certa familiaridade com eles, para posteriormente compreender seu significado tradicional e daí sim interiorizarem aqueles considerados verdadeiros, corretos e justos[26].

“L’insegnamento attraverso le parole è il modo più ovvio per trasmettere le idee di una cultura alle nuove generazioni; tuttavia la loro interiorizzazione richiede qualcosa di più”, como a observação individual, a participação em eventos sociais ou cerimônias religiosas. A confiança em adultos também faz parte de todo esse processo, bem ainda a educação formal por meio da escola, transmitindo sanções e prêmios, e a utilização de princípios normativos e cognitivos[27].

Nesse sentido, os métodos alternativos de resolução de disputas (ADR – Alternative Dispute Resolution[28]) começaram a se desenvolver no século XX nos Estados Unidos por várias razões que não apenas a explosão de litigiosidade: risparmiare tempo e denaro, evitar ele giurie, proteggere la riservatezza, o cercare soluzioni più rapide. Mais do que isso, outro fator favoreceu de forma particular a utilização destes recursos, qual seja, a existência de movimentos sociais que começaram a difundir e compor uma cultura neste senso, baseados na “ipertrofia del diritto” e no “controculturalismo” [29].

A “ipertrofia del diritto” é “um eccesso di affidamento al diritto, per risolvere i molti problemi della società”, o que causa a explosão de litigiosidade e o consequente retardo da justiça em julgar os processos, enquanto que o “controculturalismo” se refere a movimentos sociais dos anos sessenta que buscavam “l’antiautoritarismo, l’anti-intellettualismo, la realizzazione di sé e della comunità”. Em suma, o argumento principal era a possibilidade dos indivíduos resolverem seus conflitos ao manter um profundo empenho pessoal em favor da comunidade em que viviam[30].

Portanto, as lutas a favor da ADR iniciaram-se baseadas num “movimento per la giustizia di comunità” e seu desenvolvimento até os dias de hoje é considerado “uma risposta a domande istituzionali, manovre politiche e movimenti culturali”[31]. Estas estratégias permitem aumentar a compreensão das partes sobre o problema por meio da construção de possibilidades a partir das diferenças, com propostas diversas daquela oferecia ao judiciário: trata-se de uma mudança de visão em que as práticas sociais elaboram uma realidade multidisciplinar, trabalhando com a diferença, envolvendo-se no conflito e dissolvendo-o, restabelecendo a comunicação rompida entre os conflitantes[32].

Tais práticas apresentam inúmeros pontos positivos, dentre os quais “aliviar o congestionamento do Judiciário, diminuindo os custos e a demora no trâmite dos casos, facilitando o acesso à Justiça; incentivando o desenvolvimento da comunidade no tratamento de conflitos e disputas” e, especialmente, possibilitando uma forma de tratamento qualitativamente melhor aos conflitos, residindo aí sua importância. Estes métodos podem ser a negociação, arbitragem, mediação ou conciliação[33].

De todas essas práticas de tratamento de controvérsias, a mediação se destaca das demais justamente porque “seu local de atuação é a sociedade, sendo sua base de operações o pluralismo de valores, a presença de sistemas de vida diversos e alternativos”, e sua finalidade consiste em “reabrir os canais de comunicação interrompidos e reconstruir laços sociais destruídos”[34].

A mediação é um procedimento que permite às partes, ao encontrarem-se com o mediador, conversar sobre o problema; “il mediatore migliora la comunicazione fra le parti, le aiuta a manifestare più chiaramente i propri interessi e a capire quelli dell’altra parte, saggia i punti di forza e quelli di debolezza delle rispettive posizioni giuridiche”, entre outras atribuições. O mediador é a pessoa que identifica as áreas de podem possibilitar um acordo, ajudando as partes a formularem hipóteses de soluções que ambas concordem e se comprometam a cumprir[35].

Logo, a mediação torna-se uma promessa verdadeira na busca por uma cultura da paz em face de sua capacidade de transformar o caráter de ambos os litigantes e da própria sociedade; “la capacità costruttiva della mediazione è basata sul suo carattere informale e consensuale”, na medida em que os litigantes consentem em definir o problema e os objetivos em seus próprios termos, confirmando a importância do conflito[36]. Com este objetivo foi publicada a Resolução nº 125 pelo CNJ, assunto abordado no próximo capítulo.

 

3. A Resolução nº 125 do Conselho Nacional de Justiça e a instituição de uma política nacional no tratamento dos conflitos

Em 29 de novembro de 2010 foi publicada a Resolução nº 125 do Conselho Nacional de Justiça, instituindo a Política Judiciária Nacional de tratamento dos conflitos de interesses e assegurando à sociedade o direito de resolver seus conflitos por meios adequados à sua natureza e peculiaridade. A Resolução é uma forma de auxiliar na necessária mudança de cultura que poderá diminuir a judicialização dos conflitos e melhorar a prestação jurisdicional, auxiliando ainda na prevenção de novos litígios e na pacificação social.

Analisando de forma geral a situação em que se encontra o judiciário brasileiro e os institutos da mediação e conciliação, as justificativas para a elaboração e publicação do documento são as seguintes: considerando que a eficiência operacional, o acesso ao sistema de Justiça e a responsabilidade social são objetivos estratégicos do Poder Judiciário e que o direito de acesso à Justiça, previsto no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal além da vertente formal perante os órgãos judiciários, implica acesso à ordem jurídica justa; além disso, cabe ao Judiciário estabelecer política pública de tratamento adequado dos problemas jurídicos e dos conflitos de interesses, que ocorrem em larga e crescente escala na sociedade, de forma a organizar, em âmbito nacional, não somente os serviços prestados nos processos judiciais, como também os que possam sê-lo mediante outros mecanismos de solução de conflitos, em especial dos consensuais, como a mediação e a conciliação.

Da mesma forma, há a necessidade de se consolidar uma política pública permanente de incentivo e aperfeiçoamento dos mecanismos consensuais de solução de litígios, e a conciliação e a mediação são instrumentos efetivos de pacificação social, solução e prevenção de litígios, e que a sua apropriada disciplina em programas já implementados nos país tem reduzido a excessiva judicialização dos conflitos de interesses, a quantidade de recursos e de execução de sentenças. Ainda, é imprescindível estimular, apoiar e difundir a sistematização e o aprimoramento das práticas já adotadas pelos tribunais e por fim, a organização dos serviços de conciliação, mediação e outros métodos consensuais de solução de conflitos deve servir de princípio e base para a criação de Juízos de resolução alternativa de conflitos, verdadeiros órgãos judiciais especializados na matéria.

A partir destas considerações, a Resolução foi publicada determinando aos órgãos judiciários – além da solução mediante sentença – oferecer outros mecanismos de soluções de controvérsias, em especial os chamados meios consensuais, como a mediação e a conciliação, bem ainda prestar atendimento e orientação ao cidadão. Por meio deste dispositivo, nota-se que o objetivo da utilização dos instrumentos referidos não busca somente desafogar o judiciário, mas também auxiliar na cogente mudança de cultura tantas vezes já mencionada no presente estudo.

Para disseminar esta cultura de pacificação social deverão ser observadas a centralização das estruturas judiciárias, adequada formação e treinamento de servidores, conciliadores e mediadores, bem como acompanhamento estatístico específico. Toda a organização ocorrerá por conta do Conselho Nacional de Justiça, o qual estabelecerá todas as diretrizes para implantação das políticas públicas, desenvolvendo e providenciando as atividades relativas à formação dos mediadores e conciliadores, capacitação dos mesmos, regulamentação de um código de ética de sua atuação, ao mesmo tempo em que buscará interlocução com diversas instituições e cooperação dos órgãos públicos competentes e das instituições públicas e privadas da área de ensino, para a criação de disciplinas que propiciem o surgimento da cultura da solução pacífica dos conflitos, de modo a assegurar que, nas Escolas da Magistratura, haja módulo voltado aos métodos consensuais de solução de conflitos, no curso de iniciação funcional e no curso de aperfeiçoamento.

Assim, deverão ser criados pelos tribunais Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos e Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania, capazes de colocarem em prática as políticas de tratamento consensual dos conflitos. Os primeiros serão compostos por magistrados da ativa ou aposentados e servidores, preferencialmente atuantes na área, enquanto os últimos serão unidades do Poder Judiciário responsáveis pela realização das sessões e audiências de conciliação e mediação que estejam a cargo de conciliadores e mediadores, bem como pelo atendimento e orientação ao cidadão, atendendo aos Juízos, Juizados ou Varas com competência nas áreas cível, fazendária, previdenciária, de família ou dos Juizados Especiais Cíveis e Fazendários.

Além disso, a Resolução também trata das competências dos mediadores e conciliadores na Seção III, determinando expressamente que somente serão admitidos mediadores e conciliadores capacitados na forma prevista no Anexo I, cabendo aos Tribunais, antes de sua instalação, realizar o curso de capacitação, podendo fazê-lo por meio de parcerias. Para tanto, o próprio documento estabelece o tipo de curso de capacitação que deve ser realizado pelos profissionais, inclusive prevendo conteúdo programático e carga horária mínima, bem ainda a necessidade de realização de estágio supervisionado. Todos ficarão sujeitos, ainda, ao Código de Ética anexado à Resolução, composto por oito dispositivos, os quais indicam os princípios e garantias da conciliação e mediação judiciais, regras que regem o procedimento de conciliação/mediação e por fim as responsabilidades e sanções previstas ao conciliador/mediador.

A Resolução nº 125 também menciona a necessidade de criação de um banco de dados sobre as atividades de cada Centro e trata da criação de um Portal da Conciliação que, dentre outras funções, publicará o Código de Ética e relatórios gerais do programa, divulgando notícias e informações acerca do assunto.

Logo, o documento é um marco nas políticas públicas relativas ao tratamento de conflitos no país, pois prevê uma atuação conjunta dos órgãos jurisdicionados, sociedade, entidades e até mesmo universidades, através de orientação e informação para toda a sociedade sobre o tema para sua posterior aplicação e consequente transformação social, estabelecendo diretrizes para implantação de políticas públicas. É certo que alguns dos dispositivos e diretrizes constantes na Resolução talvez não sejam os mais adequados – como o caso da criação de estatísticas e suas publicações – mas pode-se dizer que o primeiro passo foi dado e para um primeiro momento estas práticas já farão a diferença.

Agora resta seguir todas as deliberações existentes na Resolução nº 125 do CNJ e acreditar na boa qualidade dos serviços jurisdicionais e a intensificação, não só no âmbito do Judiciário, da cultura de pacificação social. Os instrumentos e diretrizes para a implantação de políticas públicas existem, basta utilizá-los.

 

Referências

AGRA, Walber de Moura. Republicanismo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.

BENASAYAG, Miguel; DEL REY, Angélique. Elogio del conflito. Milano: Feltrinelli, 2008.

BOLZAN DE MORAIS, José Luis; SPENGLER, Fabiana Marion. Mediação e arbitragem: alternativas à jurisdição! 2 ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.

CHASE, Oscar G. Gestire i conflitti: diritto, cultura e rituali. Roma: Laterza, 2009.

RESTA, Eligio. O Direito Fraterno. Tradução de Sandra Regina Martini Vial – Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2004.

SPENGLER, Fabiana M. Da jurisdição à mediação: por uma outra cultura no tratamento dos conflitos. Ijuí: Unijuí, 2010.

WARAT, Luis Alberto. Pensemos algo diferente em matéria de mediação. In: Justiça restaurativa e mediação no tratamento adequado dos conflitos sociais (no prelo).

 

[1] O presente texto foi elaborado a partir de pesquisa realizada junto ao projeto intitulado “Mediação de conflitos para uma justiça rápida e eficaz” financiado pelo CNPQ (Edital Universal 2009 – processo 470795/2009-3) e pela FAPERGS (Edital Recém-Doutor 03/2009, processo 0901814) coordenado pela Profª Dra. Fabiana Marion Spengler.

[3] De acordo com WARAT, Luis Alberto. Pensemos algo diferente em matéria de mediação. In: Justiça restaurativa e mediação no tratamento adequado dos conflitos sociais (no prelo), o “Estado é uma ficção perfumada que encobre, com boas esperanças e ficções que alentam esperanças, um conjunto de organizações de poder e decisão sobre a convivência. Em nome do Estado apelamos, de modo grandiloqüente, a várias situações que nos afastam das possibilidades de encontrar e decidir sobre os sentidos da própria existência”.

[4] RESTA, Eligio. O Direito Fraterno. Tradução de Sandra Regina Martini Vial – Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2004, p. 96-97: O lugar do juiz entre os conflitantes é uma questão complicada, uma vez que ele não se deixa encerrar na fácil fórmula da lei que assegura ‘distância de segurança’ das razões de um de outro. Ele vive no conflito e do conflito que ele decide, pronunciando a última palavra.

[5] Ibidem, p. 74.

[6] CHASE, Oscar G. Gestire i conflitti: diritto, cultura e rituali. Roma: Laterza, 2009, p. 87: l’aumento in verità impressionante del potere discrezionale del giudice in materia di procedura è cominciato all’inizio del XX secolo e sembra continuare anche nel XXI. Il concetto di discrezionalità del giudice, che classicamente si distingue dal concetto di diritto, costituisce una costruzione retorica, piuttosto che un processo decisionale di un genere particolare.

[7] Ibidem, p. 69.

[8] Ibidem, p. 70-71.

[9] BOLZAN DE MORAIS, José Luis; SPENGLER, Fabiana Marion. Mediação e arbitragem: alternativas à jurisdição! 2 ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 70-71.

[10] Ibidem, p. 71.

[11] BOLZAN DE MORAIS, José Luis; SPENGLER, Fabiana Marion. Mediação e arbitragem: alternativas à jurisdição! 2 ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 76-77.

[12] SPENGLER, Fabiana Marion. Da jurisdição à mediação: por uma outra cultura no tratamento dos conflitos. Ijuí: Unijuí, 2010, p. 109.

[13] Ibidem, p. 78.

[14] BOLZAN DE MORAIS, José Luis; SPENGLER, Fabiana Marion. Mediação e arbitragem: alternativas à jurisdição! 2 ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 79.

[15] RESTA, Eligio. O Direito Fraterno. Tradução de Sandra Regina Martini Vial – Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2004, p. 100.

[16] AGRA, Walber de Moura. Republicanismo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 11-15.

[17] Ibidem.

[18] Sobre a crise da cidadania vivenciada atualmente importante a leitura de VIEIRA, Liszt. Os argonautas da cidadania: a sociedade civil na globalização. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 236-237: o momento é de perda gradativa dos direitos de cidadania, em face do enfraquecimento da nacionalidade. A cidadania nacional vem sendo abalada pela formação de instituições supranacionais; além disso, a importância crescente da dimensão econômica e social na vida moderna vem enfraquecendo os laços políticos da cidadania, pois os interesses econômicos e materiais passam a prevalecer sobre os direitos e deveres cívicos do cidadão. Logo, o Estado não possui o monopólio das regras, já que há regras internacionais que deve partilhar. Por isso, o Estado-nação não é mais o lar da cidadania.

[19] BENASAYAG, Miguel; DEL REY, Angélique. Elogio del conflito. Milano: Feltrinelli, 2008, p. 17-18: una civilità vive solo fino a quando vive la sua sorella di segno opposto, la ‘barbarie’. Per questo la figura del terrorista è diventata tanto centrale nella nostra epoca. (…) Il terrorismo è diventato quindi il vero e proprio paradigma dell’altro della civilità, categoria minacciosa dell’inumano di cui la versione contemporanea della democrazia ha bisogno per potersi affermare come l’unico ordine possibile. (…) Quella del terrorista è una figura che si attaglia perfettamente al sistema in cui viviamo. Strumentalizzato dal potere molto più di quanto avvenisse in passato, egli è infatti profondamente funzionale alla democrazia dell’impero.

[20] BENASAYAG, Miguel; DEL REY, Angélique. Elogio del conflito. Milano: Feltrinelli, 2008, p. 9.

[21] SPENGLER, Fabiana Marion. Da jurisdição à mediação: por uma outra cultura no tratamento dos conflitos. Ijuí: Unijuí, 2010.

[22] CHASE, Oscar G. Gestire i conflitti: diritto, cultura e rituali. Roma: Laterza, 2009, p. 5: Tali pratiche istituzionali influenzano consideravolmente una società e la sua cultura – i suoi valori, gli ideali, le gerarchie sociali, i simboli – così come al contempo riflettono la società che le circonda.

[23] Ibidem, p. 7-10: anche il potere è in gioco quando i metodi di soluzione delle controversie si affermano, si sviluppano, vengono contestati e vengono riformati. Infatti tali metodi non sono mai neutrali rispetto ai vari gruppi sociali in competizione, anche se lo sono rispetto ai singoli individui. (…) La nozione di cultura qui usata include le idee tradizinali , i valori e le norme che sono ampiamente condivisi da un gruppo sociale. La cultura comprende proposizioni di fede che sono sia normative, sia cognitive. La cutlura comprende anche i simboli che rappresentano quelle costruzioni mentali agli occhi della popolazione (la figura della Giustizia con li bilancia, un mappamondo).

[24] CHASE, Oscar G. Gestire i conflitti: diritto, cultura e rituali. Roma: Laterza, 2009, p. 11: existe uma estreita conexão entre instrumentos simbólicos de um povo e o sistema de solução de controvérsias nele existentes.

[25] Ibidem, p. 37-38.

[26] Ibidem, p. 148-150.

[27] CHASE, Oscar G. Gestire i conflitti: diritto, cultura e rituali. Roma: Laterza, 2009, p. 150.

[28] SPENGLER, Fabiana Marion. Da jurisdição à mediação: por uma outra cultura no tratamento dos conflitos. Ijuí: Unijuí, 2010, p. 295: esta expressão é utilizada para designar todos os procedimentos de resolução de disputas sem intervenção de uma autoridade judicial. Trata-se de vários métodos de liquidação de desajustes entre indivíduos ou grupos por meio do estudo dos objetivos de cada um, das possibilidades disponíveis e a maneira como cada um percebe as relações entre seus objetivos e as alternativas apresentadas.

[29] Ibidem, p. 114-115: il movimento ADR abbia avuto sucesso, negli ultimi venticinque anni, nel cambiarei l modo in cui soggetti chiamati a formulare decisioni economiche e giuridiche ritengono di poter risolvere al meglio le controversie.

[30] CHASE, Oscar G. Gestire i conflitti: diritto, cultura e rituali. Roma: Laterza, 2009, p. 125-130: il movimento social degli anni sessenta che Charles Reich identificò con la celebre espressione ‘nuova consapevolezza’. Il modo di pensare lineare e razionale, proprio del procedimento giuridico, contrastava con la loro diffidenza nei confronti della logica, della razionalità, dell’analisi e dei principi.

[31] Ibidem, p. 130.

[32] SPENGLER, Fabiana Marion. Da jurisdição à mediação: por uma outra cultura no tratamento dos conflitos. Ijuí: Unijuí, 2010, p. 295-310.

[33] Ibidem, p. 295.

[34] SPENGLER, Fabiana Marion. Da jurisdição à mediação: por uma outra cultura no tratamento dos conflitos. Ijuí: Unijuí, 2010, p. 312.

[35] CHASE, Oscar G. Gestire i conflitti: diritto, cultura e rituali. Roma: Laterza, 2009.

[36] CHASE, Oscar G. Gestire i conflitti: diritto, cultura e rituali. Roma: Laterza, 2009.

 

Ana Carolina Ghisleni

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